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3.4 CONVITE À VIAGEM

3.4.1 Deriva filopoética

As duas peças estéticas trabalhadas anteriormente, o romance O quarto século e o filme- documentário Édouard Glissant: um mundo em relação, acolhem a dimensão da deriva filopoética. A violência colonial é a imanência presente tanto no filme quanto no romance. E o lugar da estética, no trabalho de Glissant, tem a perspectiva de não ser seduzido pela isca do universal totalitário. A estética, no pensamento glissantiano, prolonga a sua filosofia, pois a criação estabelece-se nesse encontro com o belo, a arte. A filosofia, em Glissant, abre em poesia, é o lugar de inovação e da inventividade.

A resposta ao poder de matar e a recusa em morrer (necropolítica) é estética, o objetivo é viver o mundo, não apenas pensá-lo. Sentir o tremor do mundo e a palpitação do mundo. Sonhar o mundo e escrevê-lo. Mas, para além de uma resposta estética à necropolítica, é necessária uma resposta ética, por isso, na deriva filopoética, não se abre mão da filosofia. Nesse sentido, o feiticeiro Longoué, o poeta da história em movimento, necessita do filósofo que viaja no navio Queen Mary II, relacionando os confrontos e os choques entre os povos.

A relação entre a filosofia e a poesia provocam novas figuras do imaginário. Entretanto, essas figuras imaginárias são construídas a partir da imagem (paisagem) e do conceito. A paisagem é papel da poesia, enquanto conceito da filosofia. Todavia, o mundo não se encontra

por inteiro no conceito ou na imagem (paisagem). É necessário esse encontro paradoxal, do universal com o particular para a instauração da inovação, do diverso, da inventividade, da beleza, da raiva e da busca pela floresta imaginária de resistência.

É importante não perder o destaque de que a poesia é a fonte de engajamento político do filósofo Glissant. A poesia é revolta e raiva. A poética é, ao mesmo tempo, uma filosofia. O

logos e o pathos estão relacionados, não estão dicotomizados. Entre a filosofia e a poesia está

a intenção ética deste trabalho, é o lugar da deriva, no nascedouro do inominável, inclassificável, da vertigem, da solidão, do desvio e da insurreição do imaginário.

A deriva entre a filosofia e a poética, a qual denominamos de filopoética, é o lugar da renovação do imaginário. É a possiblidade do nascimento de outros imaginários, é a recusa em morrer. É o lugar do desvio do poder de matar. O nascimento do outro. E, por conta disso, chegamos ao entendimento de que é o lugar da ética. A ética do tremor.

O imaginário dos povos caracterizados pela violência da colonização, a qual perpetua nos dias atuais pelo signo da violência do racismo, é alimentado por alienações concretas. A filopoética é uma postura de crítica e criação ao imaginário racista. A importância de se produzir um pensamento afastado da perspectiva do imaginário do poder de matar tem uma intenção ética.

A crítica e a superação da necropolítica dão-se por meio do conteúdo e da forma. A concepção plural dos gêneros, tais como, poesia, ensaio e romance, enfatiza a característica do diverso na forma que Glissant mobiliza seu pensamento. A crítica ao pensamento colonial tem de ser feita em relação ao conteúdo, mas também a partir da forma. Segundo Norvat:

C’est que Glissant fait irruption dans la modernité littéraire. L’inclassable de sa philopoétique (une posture dite “postcoloniale”) lui fait considérer les mentions “roman” ou “poésie” sur les couvertures de ses livres comme pures conventions éditoriales qu’il n’a de cesse de renverser de l’intérieur; ce qui ne signifie pas pur autant qu’il soit complètement en dehors des problématiques ou états d’âme des écrivains de son temps: ceux du nouveau roman, de Butor, de Ponge, voire du “sistème” Sollers, par exemple (NORVAT, 2015, p. 158).

A crítica à herança da Ideia dá-se de maneira efetiva através da forma, não apenas do conteúdo. O Soleil de la conscience é um ensaio, com o qual o poeta e o crítico se relacionam. O homem e o filósofo estão de mãos dadas. O obstinado desejo da filosofia, dita universal, sem contexto e sem corpo, dá-se em produzir uma filosofia que tenha como sentido um sonho enganador, o universal, sem paisagem, como isca. O pensamento sem paisagem produz uma política de morte, uma estética de única paisagem, e uma ética do mesmo, tendo como fonte a

essência. Desse modo, construindo um único imaginário, na lógica do fazer morrer e deixar morrer.

A filopoética em deriva não é compreendida como uma essência, mas como uma atividade. O ser humano é caracterizado em sua história universal, enquanto a poesia é o lugar do ser humano concreto e individual, a relação entre os paradoxos, não na tentativa de resolvê- los, mas de relacioná-los: unidade e multiplicidade, estrutura e singularidade, universal e contexto. A filósofa Maria Zambrano problematiza a relação da filosofia com a poesia:

La poesia perseguia, entre tanto, la multiplicidad deñada, la menospreciada heterogeneidad. El poeta enamorado de las cosas se apega a ellas, a cada una de ellas y las sigue a través del labirinto del tempo, del cambio, aun poder renunciar a nada: ni a una criatura ni aun instante e esa criatura, ni a una partícula de la atmosfera que la envuelve, ni a un matiz de la atmosfera que la envuelve, ni a un matiz de la sombra que arroja, ni del perfume que expande, ni del fantasma que ya em ausencia suscita? Es que acaso al poeta no importa la unidad? Es que se queda apegado vagabundamente- inmoralmente a la multiplicidad aparente, por desgana y pereza, por falta de ímpetu ascético para perseguir es amada del filósofo: la unidad? (ZAMBRANO, 1996, p. 19).

A filosofia e a poesia trazem o conflito da heterogeneidade com a unidade. A filosofia tem o desejo obstinado da unidade, essa é a característica da dita violência filosófica. Enquanto o filósofo busca o uno, o poeta deseja a heterogeneidade. O poeta busca cada coisa em sua restrição. O poeta não tem como característica o obstinado desejo da questão conceitual do pensamento, mas a coisa inventada, sonhada, o que existe e o que não existe. A unidade presente na poesia é elástica. Ainda em diálogo com Zambrano: “Por eso la unidad a que el poeta aspira está tan lejos de la unidad hacia la que se lanza el filósofo. El filósofo quiere lo uno, sin más, por encima de todo” (ZAMBRANO, 1996, p. 24).

O filósofo não abre mão da verdade, enquanto o poeta não crê na verdade, não nessa verdade da filosofia moderna ocidental, a qual estabelece a dicotomia da verdade e do engano, das coisas que são e das que não são. A verdade do poeta não é fundamentada em uma totalidade arbitrária.

Segundo Zambrano (1096), a filosofia consistiria na disputa pela verdade e pela unidade. Sendo assim, a filosofia teria a unidade, a verdade e a ética. A ética pelo fato de ser esse encontro com o todo, a unidade, o universal. Todavia, o poeta não teria método nem ética. Pelo fato da poesia estar acolhida pelo multiplicidade e heterogeneidade.

Pode-se inferir que pensar na tensão da filopoética é ser imerso no imprevisível e no diverso utópico dos povos que virão. A filopoética é a utopia. A filopoética traz o entendimento de um conhecimento forjado pelas suas paisagens, pelo tremor e trepidação do mundo. Segundo

Norvat: “La philopoétique d’Édouard Glissant est la manifestation de son perspepectivisme” (NORVAT, 2015, p. 13). A noção do perspectivismo em Glissant é derivada de Leibniz e Nietzsche, uma verdade multifocal. Seguindo a leitura de Norvat (2015, p. 13), perspectivismo é “un relativisme qui met en perspective toute pensée, tout sustème de pensée par rapport aux autres doctrines concorrentes”. O que se infere com a manifestação da filopoética, enquanto perspectivismo, é a multiplicidade do real. A busca pela totalidade da realidade é um sonho enganador. A multiplicidade de mundos é a característica presente na filopoética pela recusa da totalidade arbitrária e única.

Na noção filopoética, não se estabelece uma tensão entre a filosofia e a poesia. “La poétique de la relation est toujours ainsi une philosophie, et inversement: eles se préservent mutuellement des fausses finalités. Alors nous découvrons émerveillés que la langue des philosphies est d’abord celle du poème” (GLISSANT, 2009, p. 87). O meio de expressão da filosofia é primeiro o do poema. A filopoética navega entre a visibilidade e o obscuro. A filosofia é uma poética, esse é um mergulho no mar em deriva opaca. A poética acessa a verdade por meio do barulhamento, do tremor e da trepidação do mundo.

L’infinie diversité s’évoque ou se raconte ou est illustrée ailluers, mais ele ne se dit qu’au poème Pourquoi? Parce que la parole poétique éclate dans l’inlassable éblouissement du ressouvenir des terres qui s’effondrent, ele s’alentit aussi aux ombrages des forêts, qui font em même temps caverne et lumière, dehors dedans. Le poème ainsi envahit la clarté dans l’obscur, recommençant le gest des temps premiers. Il est (il cahnte) le détail, et il annonce aussi la totalité. Mais c’est la totalité des différences, qui jamais n’est impérieuse (GLISSANT, 2009, p. 83).

A filosofia é uma poética, porque, com a poética, é possível imaginar a diversidade infinita do Todo-o-Mundo. A filopoética é o canto do diverso em deriva nos arquipélagos. O diverso não é o mesmo que estéril. Na filopoética, há o desejo da relação em movimento, todavia, a relação em pausa tem a obstinada vontade do mesmo.

O mesmo é o imaginário do poder de matar, no qual a miséria interminável, tão mortal como os massacres, é concretizada pela política de morte.

A poética do ser não tem sentido no trabalho de Glissant. A poética do diverso mobiliza o seu pensamento. E os autores que influenciaram a perspectiva do diverso, em sua poética, precisamente na literatura, foram: Victor Segalen, William Faulkner e Saint-John Perse24.

24 A discussão sobre a influência desses três autores no trabalho de Glissant encontra-se no livro de Manuel Norvat, Le Chant Du Divers. Introduction à la philopoétique d’Édouard Glissant, no primeiro capítulo, intitulado

O diverso, a mundialidade, é uma categoria muito presente no entendimento da filopoética. No pensamento de Glissant, relacionam-se a ciência e o sonho, a ficção e a utopia, o imaginário e o real. É a característica de um pensamento crioulo.

A crioulização acolhe o paradoxo, não busca uma síntese entre o imaginário e o real, ou a ciência e o sonho. Os elementos diversos são colocados em relação. A relação é a quantidade infinita de todas as particularidades do mundo. Nesse sentido, a relação pode ser entendida como uma forma de universal. Mas um universal que não busca a monotonia do mundo, que seria a mundialização, caracterizado como antidiverso. É um universal diverso, a mundialidade. No entanto, o combate à mundialização não se dá pela troca da palavra mundialidade, mas pelo imaginário.

A mundialidade pode ser vista com a imaginação, entretanto essa nova região do mundo, o Todo-o-Mundo, sempre escapa e se afasta. Mas o único modo de conceber a totalidade-mundo é pelo imaginário.

O imaginário cria a realidade dos arquipélagos e das paisagens. E essa criatividade não busca verdade do todo, pois “rien n’est vrait tout est vivant” (GLISSANT, 2009, p. 106). O que é vivo mobiliza o ato poético e o ato político. A beleza que falta à vida convida o filósofo a uma viagem solitária (solidão existencial) e a uma mobilização solidária do mundo (solidariedade poética).

A deriva filopoética, na sua relação paradoxal, tem a característica de se aproximar do todo, mas, no mesmo instante, afasta-se das visões globais. É o diverso que lança a vertigem das multiplicidades, mas com a imagem do horizonte, do encontro do céu com o mar ou a terra.

A deriva filopoética busca reconstruir a memória. É uma poética histórica de disputa do imaginário. A memória e o esquecimento fazem parte do mesmo imaginário, por isso, a filopoética é um modo de imaginar e de acessar o imaginário do pensamento-mundo.

A crítica e a superação da violência, do poder de matar, não se darão apenas produzindo conceito ou mudando os conteúdos. Criar conceitos é necessário e urgente, todavia, além de criar conceitos, há de fecundá-los com a imaginação. Dessa maneira, não se pensa apenas o mundo, mas se sonha e se escreve o mesmo, vive-se, experimenta o mundo e sente suas fragilidades.

4 FILOSOFIA AFRODIASPÓRICA COMO ARQUIPÉLAGO DE LIBERTAÇÃO

Figura 7 – Mapa conceitual: Filosofia afrodiaspórica como arquipélago de libertação

VOODOO quando a África bate seus tambores está matando o ego e renascendo os eguns. desde a Costa do Marfim, desde o Tanganica até o Mali, toda a ancestralidade vibra entre as estrelas e o chão. (MARANHÃO, 1989, p. 54).

Nos dois capítulos anteriores, foi debatida a dimensão da necropolítica como um imaginário problematizado desde os arquipélagos textuais das filosofias africanas, as quais foram consideradas tendo como univocidade o “paradigma liberdade” na recusa em morrer ao necropoder. E, também, os arquipélagos textuais do filopoeta Édouard Glissant para guerrear nas paisagens dos imaginários.

Os arquipélagos africanos mobilizam o primeiro capítulo, e, no segundo, o arquipélago da Martinica mobiliza uma perspectiva de filosofar habitado pelo tremor e barulhamento das paisagens. Portanto, neste capítulo, Filosofia afrodiaspórica como arquipélago de libertação,

pretende-se problematizar o imaginário da necropolítica, através de um Brasil filopoético habitado pela deriva filosófica africana e afrodiaspórica. A poética será uma chave de revolta e resistência contra o “deixar morrer e fazer morrer” no arquipélago da libertação, para isso mobiliza uma filosofia que relacione a singularidade irredutível, que é habitada pela força poética da terra e que tenha a paisagem como ação. É uma ecopolítica.