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Nos capítulos precedentes, privilegiei a leitura e a análise de três filmes que, a meu ver, partilham um aspecto comum: nestes títulos (são eles Cabra Marcado para Morrer, O

Fio da Memória e Peões), o vínculo entre a memória individual e a memória social me pa-

rece forte o suficiente para compor um referencial em torno do qual gravita grande parte dos relatos documentados por Coutinho. Em outros termos, com freqüência a narrativa do vivido se encontra entrelaçada a um sentimento de pertença a um grupo ou comunidade maior, ou orientada pela existência de um passado comum vivenciado pelos entrevistados. No caso específico das obras abordadas, podemos esboçar um resumo deste passado: o en- gajamento nas lutas camponesas e o envolvimento na realização de uma obra cinematográ- fica interrompida arbitrariamente por interdição política, seguida da conseqüente imersão na clandestinidade (Cabra); as cicatrizes da escravidão, o estigma do preconceito e a iden- tidade reconstruída a partir de fragmentos (O Fio da Memória); e a militância sindical no âmbito de uma greve singular na história do operariado brasileiro, acompanhada do poste- rior alijamento do universo fabril em virtude das reconfigurações no mundo do trabalho (Peões). Convidados a falar de si e da experiência pretérita que os irmana, num exercício que, por vezes, se aproxima dos procedimentos da história oral, os sujeitos destes filmes se entregam a um ato rememorativo onde a afirmação da singularidade não raro é acompanha- da de um revigoramento dos laços sociais (ou, no mínimo de uma evocação de tais laços).

Para o presente capítulo, que sinaliza o desfecho de nossa investigação, proponho um empreendimento analítico diferente. Nesta etapa da pesquisa, serão igualmente avaliadas três obras de Coutinho – Santo Forte (1999), O Fim e o Princípio (2005) e Jogo de Cena (2007). No entanto, diferentemente da trilogia anterior, o foco central da análise aqui não será a emergência do par memória individual/memória social a entrelaçar cada depoimento. De forma prévia, podemos inferir que nestes títulos as entrevistas se tornam menos circuns- critas a um eixo temático e a uma vivência comum partilhada pelos personagens, culminan- do em encontros caracterizados por um menor controle (nos dois primeiros filmes, o impre- visto e o acaso se convertem em forças criativas atuantes) e uma maior abertura para o “ou- tro”; um contexto propício, portanto, à fabulação. Estimulado pela conduta agenciadora do cineasta, pela escuta deferente e pela duração da tomada, cada sujeito é instigado a falar de si e de sua trajetória, tecendo um relato de notáveis intimidades, ao mesmo tempo confes-

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sional e inventivo, pura potência do falso que suscita a reelaboração de si diante da câmera – memória em permanente deriva, bifurcação de devires.

Todavia, como sugere Ecléa Bosi, temos consciência de que o registro de uma memó- ria pessoal, ainda que colhida de forma isolada, inevitavelmente tangencia uma experiência social, familiar ou grupal – em outras palavras, é impossível estabelecer uma clivagem en- tre o indivíduo e a cultura, isolando-o dos processos de socialização e de seus núcleos de convívio e interação (1999, p. 37). Reconhecemos, portanto, que, nestes três filmes, o social de algum modo se externaliza na fala dos sujeitos entrevistados – ou seja, esta memória em deriva e articulada num encontro mais aberto (sem rígida demarcação temática) também evoca o par indivíduo e sociedade. De modo análogo, poderíamos dizer que, embora te- nhamos privilegiado a análise deste par nos capítulos preliminares, isto não significa afir- mar que nos títulos ali investigados inexistisse manifestação fabular. Se aqui privilegiamos um ou outro recorte é por entender que a delimitação proposta, em consonância com os aspectos mais relevantes de cada obra, contribui para enriquecer nossa leitura dos docu- mentários selecionados para o estudo, sem culminar em dogmatismos (em posições dema- siado fechadas ou pretensiosas).

Avancemos, então, no que parece ser a singularidade distintiva da tríade privilegiada no corrente capítulo. Ao destacar a ênfase no papel criativo do acaso, a valorização do im- previsto e das derivas narrativas, e o menor controle nos títulos já referidos, minhas impres- sões iniciais dialogam com as considerações de Duccini e Xavier. Em artigo onde avalia a dimensão autoral no cinema de Eduardo Coutinho, Duccini reconhece um progressivo “dé- ficit de controle” em alguns de seus filmes recentes, proporcionado pela elaboração de dis- positivos que comportam o imponderado, e uma maior abertura para a dimensão performá- tica dos sujeitos abordados. Este movimento, segundo a pesquisadora, teria início em Santo

Forte, se contrairia em Peões, para, depois, novamente se intensificar em O Fim e o Princí- pio – não à toa, o segmento consagrado a este documentário, em seu ensaio, ganha o perti-

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Em debate realizado no Centro Cultural São Paulo147, e do qual também participara Jean-Claude Bernardet, Xavier nos introduz alguns temas que seriam aprofundados em ar- tigo onde analisa procedimentos pontuais do cinema de Coutinho (texto ao qual nos remete- remos posteriormente). Na avaliação do ensaísta, Coutinho se destacaria no documentário brasileiro por se converter numa espécie de paradigma da concentração do método da en-

trevista – cada um de seus filmes representaria um esforço para expandir as potencialidades

deste recurso, seja pela duração ou pela escuta generosa, estimulando, pois, os personagens abordados a assumir parte do controle da situação e a desenvolver um livre trânsito em ce- na. No limite, sua proposta teria como pressuposto a ativação de fissuras ou de momentos fugidios que escapam à vigilância dos sujeitos quando filmados, e a convocação do impon- derável como forma de minimizar qualquer conduta programada – em outros termos, quan- to mais o acaso e o aleatório são solicitados à cena, mais as personagens mergulham em sua própria experiência, saem do premeditado e a tomada nos surpreende148. Xavier reconhece que esta guinada radical teve início em Santo Forte, em virtude de sua maior flexibilidade temática e abertura à alteridade, movimento que se desdobrou em Babilônia 2000 (2001), atingindo, por fim, o “vôo-livre” vislumbrado em Edifício Master (2002)149

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Em consonância com a leitura de Xavier e Duccini, mas também avançando em al- guns pontos, vislumbramos na tríade delimitada para análise neste capítulo um movimento singular na cinematografia de Coutinho – um percurso cujos indícios já foram mapeados previamente, mas em torno do qual podemos tecer outras especulações. No que se refere à reinvenção da entrevista e à rarefação de procedimentos narrativos em prol de uma estilísti- ca quase minimalista, partilho da opinião de Mesquita, para quem Santo Forte, na verdade, constitui um marco do documentário brasileiro contemporâneo, reverberando e estimulando

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- Parte do conteúdo deste debate se encontra disponível no site da revista Contracampo, no endereço http://www.contracampo.com.br/53/ismailbernardet.htm [acesso em 08 de maio de 2011]. Na transcrição, infelizmente, consta apenas a data do evento (15 de agosto), mas não o ano de sua realização. O foco do en- contro foi a centralidade da palavra e da entrevista no documentário brasileiro contemporâneo.

148 - Este ponto de vista ou leitura da prática do documentário é convergente, diga-se de passagem, com mui- tas das opiniões defendidas por Comolli (2009) em sua defesa do risco do real e da inscrição verdadeira. 149 - Embora a transcrição do debate não precise a data de sua realização, podemos deduzir, pelas considera- ções de Xavier, que ele é anterior a 2004. Tal dedução, é fato, baseia-se em nossa leitura da obra de Coutinho. Explico: Peões, lançado àquele ano, promove um recuo neste procedimento marcado pela temática mais fle- xível, privilegiando outro caminho onde a memória social e a experiência pretérita a conectar os sujeitos a- bordados são novamente aspectos relevantes. Em sua fala, Xavier não se refere a este filme. Por outro lado, o ensaísta também não faz alusão a O Fim e o Princípio, documentário que, em nossa opinião e também na de Duccini, apresenta maior liberdade e flexibilidade do que o Master.

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o ímpeto criativo de outros diretores (2006, p. 13 a 17). Obra basilar da trajetória recente de Coutinho, os fundamentos ali empregados, de certo modo, fecundaram a produção posterior do cineasta. O que não significa afirmar a inexistência de diferenças temáticas e estilísticas entre este filme e os títulos que lhe sucederam – na verdade, do meu ponto de vista, Couti- nho parece ter radicalizado seus procedimentos a cada nova produção. Por outro lado, San-

to Forte me parece, se não inaugurar, pelo menos aprofundar outra experiência memorialís-

tica no cinema de Coutinho – precisamente aquela manifesta no ato de fabulação, situação na qual o sujeito, agenciado pelo cineasta, inventa outros devires para si150.

Já O Fim e o Princípio (2005), a exemplo de Boca de Lixo, é a obra de Coutinho que mais aposta no improviso e na indeterminação como fomentadores do ato criativo (o que Duccini chamou de radicalidade do acaso); não obstante, é também aquela onde a oralida- de se manifesta com maior vigor, expondo sua expressividade e encadeamentos narrativos próprios. Tal como abordei no segmento final do capítulo anterior, o privilégio outorgado à fala e à oralidade no cinema de Coutinho já está evidente em Cabra Marcado para Morrer, mas parece encontrar sua justa medida a partir de Santo Forte e, sobretudo, nesta produção de 2005. Em tais filmes, o cineasta, além de referendar a prática interativa/interventiva, confirma sua predileção pelo documentário mais focado nos personagens do que numa uni- dade temática – ratifica seu interesse pela eloqüência narrativa dos sujeitos ao recapitular fragmentos de suas histórias de vida. Em minha avaliação, O Fim e o Princípio também sinaliza um claro desejo, por parte do diretor, de reinventar sua trajetória artística – em cer- to sentido, nesta obra, ele já promove inovações consideráveis. O seu próprio título, aliás, não ilustraria este processo de transição? O fim de um modelo supostamente exaurido (ou que já atingira seu ápice nos trabalhos antecedentes); o princípio de algo novo?

Tamanha inquietação culminaria na ousada aposta executada em Jogo de Cena, obra que, abertamente, estilhaçava o dispositivo inaugurado em Santo Forte, explicitando o teor

150 - Neste parágrafo e no anterior, referi-me a Santo Forte como o documentário que inaugura novos proce- dimentos no cinema de Coutinho, deflagrando uma curva criativa que encontraria sua melhor expressão em

Edifício Master. Bem, mas se este último título radicaliza o que fora iniciado no primeiro, por que não adotá-

lo como recorte para o presente capítulo, em vez da obra anterior? Certamente, Master renderia um estudo prolífico; todavia, acredito que igual elogio é cabível a Santo Forte. Além disso, reconhecer o documentário de 2002 como um filme que melhor emprega certos procedimentos estilísticos não significa considerá-lo uma obra de maior envergadura. Em certa medida, na delimitação proposta, também entra em jogo minha predile- ção pela produção antecedente, juntamente com sua condição privilegiada de baliza inaugural deste processo de reinvenção do cineasta.

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de ficcionalização que permeia seu documentário de encontro (poderíamos dizer que Cou- tinho forja um novo dispositivo para desmascarar o anterior – espécie de mágico que aceita partilhar conosco os truques lapidados em anos de ofício). Com sua ambígua conjugação de ficção e efeitos de real, com seus enquadramentos rigorosos e invasivos, Jogo de Cena des- cortina o teatro que subjaz no ato fabulador, num exercício de coragem que externaliza para o público a alquimia manifestada nos títulos precedentes – o que metaforicamente chamei de “vôo-livre” dos personagens (analogia, claro, tecida do ponto de vista do espectador). Em interessante artigo, Xavier antecipa esta revelação e nos confidencia que o Jogo de Ce-

na sempre esteve presente na obra recente de Coutinho; sua observação é pontual e perti-

nente151. Porém, a ousadia do cineasta neste filme reside justamente em publicizar seu pro- cedimento criativo para o espectador, explicitando o que permanecia implícito e colocando em questionamento não somente o seu dispositivo e a prática da entrevista, mas, em certa medida, o próprio documentário, enquanto domínio que ambiciona apreender alguma pre- tensa verdade152.

Adentremos agora em novas digressões para precisarmos alguns dos procedimentos empregados por Coutinho e, assim, descortinarmos a situação singular que aflora em decor- rência de sua prática cinematográfica. No segmento final do capítulo anterior, destaquei a crítica pontual de Teixeira à prática sedimentada por parte do documentário moderno de substituir o monólogo autoritário do realizador, recorrente no formato clássico deste domí- nio, por uma partilha da fala/enunciação (o ambíguo “dar a voz ao outro”). Apesar da apa-

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- A agudeza premonitória de suas observações desponta primeiramente no artigo Indagações em torno de

Eduardo Coutinho e seu Diálogo com a Tradição Moderna, publicado originalmente no catálogo da Mostra

“Eduardo Coutinho: Cinema do Encontro”, organizada por Cláudia Mesquita e por Leandro Saraiva, no Cen- tro Cultural Banco do Brasil (CCBB), de São Paulo, em outubro de 2003. O mesmo texto, com pequenas revisões, foi publicado em MIGLIORIN, Cezar (org.). Ensaios no Real. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2010. Um ensaio posterior trás uma versão condensada de algumas das idéias articuladas no primeiro texto. Conferir: XAVIER, Ismail. Documentário e Afirmação do Sujeito: Eduardo Coutinho, na Contramão do

Ressentimento. In: CATANI, Afrânio Mendes... [et al], (organizadores). Estudos Socine de Cinema: ano IV.

São Paulo: Editora Panorama, 2003, pp 163-171.

152 - Ilustrativas dos impasses suscitados por Jogo de Cena são as breves considerações de Jean-Claude Ber- nardet, publicadas em seu blog, quando da estréia da obra no circuito exibidor – são excertos que mais nos desafiam do que propriamente esclarecem os dilemas identificados. Segundo ele, a produção “solapa todo o cinema de entrevista, inclusive os filmes recentes de Eduardo Coutinho”. Logo em seguida, ressalta: “este filme revela uma coragem extraordinária por questionar a obra do próprio cineasta”. Por fim, a conclusão dilacerante: “Como fica quem acreditava que a fala dos entrevistados nos filmes do Coutinho era a expressão de sua subjetividade?”. In: http://jcbernardet.blog.uol.com.br/cinema/arch2008-01-13_2008-01-19.html [ori- ginalmente publicado em 14 de janeiro de 2008]. [acesso em 08 de maio de 2011].

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rente generosidade implícita nesta guinada, Teixeira a considera uma falácia – no limite, ela não promove uma ruptura considerável com o modelo enunciativo precedente (2003, p. 164 a 170). Nos filmes já analisados e, sobretudo, na tríade que será investigada neste capítulo, o “dar a voz ao outro” desponta como procedimento evidente; todavia, no cinema de Couti- nho, como já explicitei, sua prática não se encontra alicerçada em interesses contraditórios, suspeitos; tampouco, fundamentada numa crença de total reciprocidade (como se o cineas- ta, ao subir o morro, pudesse se despir de sua “visão de mundo” para se “confundir” com o “outro” da favela). Em seus documentários, as regras do jogo são reformuladas: o que de- marca a partilha da fala e converte os personagens abordados igualmente em sujeitos do ato comunicativo é a escuta deferente, não acompanhada de julgamentos ou juízos de valor sobre o entrevistado (pelo menos em grande parte dos encontros registrados), e o tem- po/duração de cada entrevista, generoso o suficiente para permitir o arrefecimento dos laços de vigilância e de desconfiança acionados pela cartilha dos noticiários e do espetáculo mi- diático (regidos quase sempre pela pressão do relógio e pela produção/exibição de imagens banalizadas). Portanto, o “dar a voz ao outro” encontra, no cinema de Coutinho, uma com- plexa configuração – usando a terminologia empregada por Teixeira e Deleuze, o que o documentarista faz é interceder ou agenciar os sujeitos abordados, estimulando-os a sair da identidade cristalizada no cotidiano e a elaborar novos devires para si. Gesto que solicita certo nível de reciprocidade e de mútua transformação, uma vez que pressupõe alguma si- multaneidade: afetar o “outro” também é igualmente se deixar ser afetado por ele.

Tal agenciamento e passagem culminam, pois, no afloramento do ato fabular. No ca- pítulo antecedente, ao discorrer sobre a primazia da oralidade no cinema de Coutinho (uma arte centralizada na eloqüência narrativa dos sujeitos), recorri à noção de fabulação empre- gada por Deleuze153 para melhor entender este processo de transfiguração vivenciado em cena pelos personagens abordados pelo documentarista. Este fenômeno, é fato, pode ser identificado nos títulos já analisados, particularmente em Cabra Marcado para Morrer,

Boca de Lixo e Peões, mas encontra sua melhor expressão nos filmes selecionados para este

capítulo. Em sintonia com as considerações de Deleuze, em tais obras verificamos uma maior confiança na força criativa do acaso (testemunhamos um menor controle por parte do

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diretor e a convocação do improviso a pontuar os encontros); além disso, o vínculo indiví- duo e sociedade não mais se encontra no foco das entrevistas – em outros termos, os sujei- tos não são incitados a falar a partir de uma experiência ou passado comum. A fabulação, por conseguinte, é suscitada pela emergência de um novo tipo de memória a reconfigurar a fala dos personagens e a estimular suas passagens a outros devires. Inventariada por Deleu- ze, tal memória parece conjugar ecos de Henri Bergson, de Marcel Proust e de Walter Ben- jamin (em seus ensaios sobre o autor de Em Busca do Tempo Perdido). E, a julgar pelos documentários de Coutinho, não raro é acompanhada de certo viés performático e exibicio- nista, o que assinala uma transição do estético para o ritualístico nos encontros orquestrados pelo cineasta.

A dimensão teatral e perfomática implícita nesta passagem a novos devires e derivas da memória é pormenorizada por Bezerra. Em diálogo com Deleuze154, ele sugere que “fa- bular é colocar a palavra em ato na produção de um discurso que ultrapassa a expressão verbal e cotidiana do corpo para se chegar aos gestos de um corpo cerimonial”. Em sua opinião, grande parte das personagens abordadas por Coutinho vivenciaria esta experiência na tomada, o que o leva a identificar a existência de um comportamento circular no set: “a

espontaneidade gera o improviso e este é um estímulo à memória do presente das pessoas,

viabilizando, assim, a exploração de associações livres na produção dos atos de fala” (2009, p. 83, grifos originais). “Por ser gerada em um corpo-mídia”, acrescenta Bezerra, “a fabu-

lação é audiovisual e envolve certo grau de teatralidade”. Em outras palavras, “a expressão

espontânea dos atos de fala conquista ainda mais expressividade pelo desempenho teatral das pessoas por intermédio da entonação da voz, das expressões faciais, dos gestos e postu- ras do corpo” (2009, p. 83, grifos originais).

Segundo o pesquisador, não raro essa teatralidade é cômica ou irônica; outras vezes, melodramática ou trágica; e, eventualmente, desponta como exibicionismo. Recorrendo às considerações de Benjamin sobre Proust, Bezerra observa que essa dimensão teatral se constrói numa combinação entre memória, esquecimento e invenção, “pois o importante, para o autor que rememora, não é o que ele viveu, mas o tecido de sua rememoração” (Ben- jamin apud Bezerra, 2009, p. 83). Todavia, nos esclarece Bezerra, de nada adianta o prepa-

154 - Aqui me parece evidente seu diálogo com o capítulo 8 de Imagem-Tempo, intitulado “Cinema, Corpo e Cérebro, Pensamento”.

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ro do set e a disposição de ambas as partes para o jogo (cineasta e personagem) se o sujeito entrevistado não dispuser de uma experiência de vida para narrar – em outros termos, sua fala não decorre de simples invenção ou performance agenciada pelo diretor; no limite, ela tangencia um chão de experiência vivida que constitui um solo fértil para o ato fabular (pensemos aqui na frase de Coutinho mencionada no capítulo anterior: “a personagem tem que ter uma base no real, para você subir para o imaginário e voltar”). Tal exigência permi- tiu que Bezerra chegasse a seguinte constatação: excetuando-se um ou outro entrevistado, no geral, as personagens abordadas pelo diretor têm mais de 30 anos; ou seja, detêm um passado que serve como ponto de partida, ou um pré-roteiro, para sua atuação baseada na “memória do presente”155

. Por fim, conclui ele: “o que está em jogo para o cinema atual de Coutinho é, basicamente, a memória da vida privada e suas implicações públicas ou não” (2009, p. 83).

Todavia, é preciso esclarecer que esta memória privada não é domínio exclusivo do indivíduo, embora se manifeste através dele. Na verdade, ela também tangencia algo do mundo e de sua comunidade; como observara Deleuze (2009, p. 183), o ato fabular contri- bui para a reinvenção de uma nação. Trata-se, pois, de um ato de fala que revela algo da

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