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No livro A Sociedade do Cansaço, o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han defende a tese de que se deixou para trás toda a negatividade de uma sociedade disciplinar, que pariu ao longo do século XX loucos e delinquentes, e adentrou-se de vez na sociedade do desempenho, marcada pela interação, a hiperatividade – com todos os seus excessos de estímulos e distrações que corroem a atenção pela reiteração do ruído – e o constante compromisso do desempenho como algo impositivo, o que, atualmente, tem gestado depressivos e/ou fracassados.

Neste ambiente societário, Han afirma a imposição do desempenho na sociedade vigente como o estopim para o surgimento da depressão em massa. Pois, diz ele, “O que torna doente, na realidade, não é o excesso de responsabilidade e iniciativa, mas o imperativo do desempenho como um novo mandato da sociedade pós-moderna do trabalho” (HAN, 2017, p. 27).

A proliferação das doenças psíquicas tem, seguindo o pensamento de Han, uma relação direta e umbilical com essa sociedade da velocidade e sua obsolescência constante39 em que o imperativo do sucesso e da alta performance ganharam as consciências. O crescimento a nível epidêmico dos gurus da felicidade [coaches] e dos templos neopentecostais alicerçados no discurso da prosperidade financeira são alguns desses atores escolásticos na formação e sedimentação das consciências do desempenho.

Seguindo a tese de Han, percebe-se que a cobrança recorrente por desempenho deixou de ser exclusividade de um poder mandatário. Ela não é mais realizada por esse olhar panóptico das sociedades de controle do século XX, exposta, por exemplo no romance 1984, de Orwell, que exercia o constante papel de

39 Obsolescência constante é um conceito trabalho pelo filósofo Gilles Lipovetsky ao investigar, in O

Império do Efêmero, o sistema da moda, o qual vive em perpétua renovação, incorporando assim a dinâmica do capitalismo e sua incessante velocidade para imprimir a novidade descartável. “O novo, afirma Lipovetsky, revela-se um imperativo categórico da produção e do marketing, a nossa economia marcha segundo o forcing e a sedução insubstituível da mudança, da velocidade, da diferença”. Por trás dessa novidade, que sumariamente transforma-se em velharia, esconde-se o cansaço.

75 cobrança sobre os deveres políticos e funcionais dos seus cidadãos, mas por um olhar internalizado. Sendo assim, cada indivíduo passou a ser seu próprio vigia, fazendo das autocobranças a ordem do dia. Segundo Han, ninguém quer ficar para trás, ser uma peça descartável na engrenagem da sociedade do desempenho e, por isso, termina inoculando em si o “vírus” da autovigília, desempenhando o duplo papel de explorado/explorador.

Nessa lógica haniana, cada um traça para si um bedel particular que lhe lembra numa voz constante, imperiosa e ininterrupta que se não acertar o passo no ritmo do desempenho, estará condenado a enfileirar a fila dos derrotados. Para Han, a questão é que nem todos estão preparados intelectual e psicologicamente para pagar o alto preço para estar na sociedade do desempenho e o resultado é um curto-circuito neuronal com o surgimento e a proliferação dos traumas psíquicos.

Ainda na tese de Han, o paradoxo é que aos aclamados “vencedores” dessa sociedade, o cansaço não é menor, talvez seja até maior, uma vez que o carrossel nunca para de girar, uma meta alcançada leva invariavelmente a uma outra, não há espaço para o repouso, o sentimento de satisfação absoluta jamais é alcançado, não há uma linha a ser cruzada, para cada desafio vencido projeta-se outro ainda maior, pois imagina-se que não há limites nem impossibilidades nessa sociedade da positividade.

O sentimento de ter alcançado uma meta definitiva jamais se instaura. Não é que o sujeito narcisista não queira chegar a alcançar a meta. Ao contrário, não é capaz de chegar à conclusão. A coação de desempenho força-o a produzir cada vez mais. Assim, jamais alcança um ponto de repouso da gratificação.40

Os sinais dessa sociedade do cansaço estão presentes, por exemplo, no aumento desenfreado do consumo mundial de ansiolíticos que funciona como muletas para amparar os corpos atropelados pela necessidade frenética do desempenho, ou ainda como anteparo para amortizar os infartos da alma decorrentes dessa urgência ou carência de ser, porque nessa sociedade não se pode parar41, então recorre-se a esse tipo de encapamento psíquico que permite ao usuário continuar sendo esse sujeito funcional e capaz de integrar a sociedade do desempenho. E assim, aponta Han, marchamos nessa toada em que “a vida

40 HAN, 2017, p. 85.

76 equipara-se à de mortos-vivos”, onde “estão (estamos) por demais vivos, para morrer, por demais mortos para viver”42.

De alguma forma, minha falência autoral, que resultou na morte deste dramaturgo, tem, sim, a ver com essa sociedade do cansaço. Um cansaço que se manifesta, primeiramente, num esvaziamento do fazer artístico pela dinâmica serializada desse fazer. Uma espécie de sisificação artística em que, no campo da linguagem, a arte dramatúrgica passou a ser, na maioria das vezes, esse lugar de pactuação e conformação dos sentidos estabelecidos. E aqui, ou neste caso, não se trata apenas de um lamento pela perda da aura da obra de arte, como alertou Benjamin em A Obra de Arte na Era de Sua Reprodutibilidade Técnica, mas de uma sensação de que fui inteiramente envolvido por essa engrenagem afeita a agradar ou entreter perenemente seus consumidores. Uma dramaturgia a serviço das regras tradicionalmente estabelecidas.

Esse tipo de cansaço leva, irremediavelmente, a um outro, que é a obrigatoriedade de tecer linhas de empatia com o público, de satisfazê-lo, terminando por encontrar nessa audiência saciada a cobrança pelo desempenho, como se um autor só passasse a ser reconhecido como tal quando faz sucesso. E uma vez alçado a esse patamar, o cansaço não cessa, ao contrário, só aumenta. Pois não se espera desse “autor” nada menos do que a “qualidade” artística alcançada na obra anterior, fetichizando a ideia de autoria, quase que forçando aquele que escreve a acreditar na real existência desse autor (trataremos mais a frente desse tema). Como, então, encarar essa morte por conta do cansaço?