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Na Casa Viviane acontecem uma vez por mês as reuniões do grupo feminista “Ativas no Mundo: reconstruindo saberes”, composto principalmente por mulheres que trabalham ou trabalharam na Casa. O objetivo do grupo é pensar políticas afirmativas de gênero para a região. Nas reuniões discutem feminismo, políticas para as mulheres, gênero e outras demandas relacionadas que surgem das experiências. Eventualmente, mulheres são convidadas a ministrar palestras e organizam ações na região. Os membros não são fixos, há rotatividade. Nesses encontros estão presentes as gerentes de ambos os serviços, Casa Viviane e Casa Anastácia, e outras mulheres da região, também feministas. Elas observam alguns desafios com relação à atuação do serviço (CDCM). Um deles seria a falta de formação para as profissionais dos serviços de atendimento à mulher, cujo tema tem se tornado cada vez mais complexo; buscam aprimoramento e a efetivação de um tempo para rever o trabalho.

A Casa Viviane atende, em média, 100 mulheres por mês. Busca não agendar atendimento para todos os dias, à exceção daquelas mulheres que chegam pela primeira vez, pois é impossível dar continuidade aos casos a fim de resolvê-los. Alguns Centros de Defesa atendem todos os dias sem descanso, outros espaços escolhem um dia da semana para reuniões pedagógicas e formação, e nesse dia não atendem. Mas, a Casa Viviane e Casa Anastácia ainda não têm um feedback da AVIB – responsável pelo convênio com a prefeitura, para reservarem um dia da semana para as trabalhadoras fazerem formação. Para elas, esse tempo de parada é importante para pensar na atuação. Segundo Thatiane Coghi Ladeira70: “Admite-se que seria um erro as profissionais acharem que devem atender o máximo de pessoas, pois não há profissionais suficientes para a demanda, precisaria duplicar a equipe técnica”. O único momento que as profissionais têm de auxílio para discutir os casos mais complexos é o momento de supervisão com Marilda de Oliveira Lemos71. Essa supervisão não faz parte das diretrizes de execução do serviço determinada pela SMADS, por isso, o convênio não arca com esse custo. Marilda vem de forma voluntária, recebe apenas ajuda de custo para o deslocamento, pois vem de outro município, Pirajuí. Marilda tem grande experiência na área de enfrentamento à violência contra a mulher, foi atuante na região do ABC e ajudou Renata Carvalho da Silva (primeira gerente) a fundar a Casa.

70 Thatiane Coghi Ladeira é formada em Serviço Social, feminista, branca, moradora da Zona Leste, presidenta da AVIB e foi gerente da Casa Viviane de 2009 a 2013.

Ambos os Centros de Defesa questionam a carga horária da advogada, de apenas 20 horas semanais, pois o valor atribuído pelo convênio com a SMADS para o salário não arca com uma carga horária maior. Afirmam ser este apoio insuficiente para a demanda, e para instruir as mulheres sobre os recursos da lei. A todo o momento questionam as dificuldades e limites do Centro de Defesa para resolver os problemas das mulheres da região. Alguns Centros de Defesa e Convivência da Mulher estão submetidos à Secretaria da Mulher e outros à SMADS. A Casa Viviane está subordinada à SMADS. Para o grupo, isso traz benefícios e também dificuldades. A crítica à Secretaria da Mulher se deve ao fato de esta receber um orçamento baixo; por outro lado, o benefício da Secretaria de Assistência é o fato de ter um orçamento maior. Porém, não elabora políticas para as mulheres e não trata a questão das desigualdades de gênero.

Mesmo sendo feministas, criticam o movimento feminista por não atentar para a Secretaria da Assistência. Retomemos o relato de Thatiane Coghi Ladeira:

O trabalho da Assistência acaba se voltando pra quem? Para as mulheres, e o movimento feminista não olha para a Secretaria de Assistência no sentido de cobrar, de exigir assembleias públicas. O movimento feminista está muito longe das mulheres populares, não vê as questões destas mulheres. (informação verbal)

Fabiana Pitanga72 endossa: “O movimento feminista está muito distante das mulheres reais, essas mulheres não acompanham as discussões que o movimento traz, algumas discussões são muito intelectualizadas”. Assim como Fabiana, bell hooks (2013) critica a teoria feminista que não consegue conversar com a prática social. Para ela nenhuma teoria que não possa ser comunicada numa conversa cotidiana pode ser usada para educar o público. Os esforços das mulheres negras e de outros grupos minoritários para desconstruir a categoria “mulher” e a luta em reconhecer que o sexo não é o único fator que determina as construções de feminilidade, produziu uma revolução no pensamento feminista, questionando e perturbando as bases da teoria feminista hegemônica. Mesmo assim, ainda há o pressuposto de que a teoria não é prática social. Retomaremos esse debate ao discutir o trabalho das profissionais com as usuárias.

O tema das Delegacias de Defesa da Mulher (DDM) é recorrente nas reuniões, por ser um ponto gritante. As DDMs são criticadas por não terem preparação para trabalhar com a

Lei Maria Da Penha, e não focarem a mulher. Roseane Ribeiro Arévalo73 questiona indignada: “Pra que a Lei Maria da Penha? Se ela não é aplicada, se a mulher é agredida e fica no abrigo, agora com o novo artigo os filhos também podem ficar no abrigo e o agressor fica na rua?”. Keli Oliveira Rodrigues aponta: “Como a Lei faz sete anos e nada mudou? As delegacias não trabalham de acordo com os artigos da Lei e a mulher é maltratada, não adianta”. Elas se mostram preocupadas com os rumos que vão desenhando as políticas para as mulheres: “não anda e são muitos os retrocessos”, aponta Keli. Segundo ela, os órgãos de justiça não cumprem o seu papel e ao invés de promover os direitos das mulheres, tendem a recusá-los, além de criminalizá-las:

As reuniões com a DDM (Delegacia de defesa Mulher) são muito difíceis, o delegado ou a delegada tende a dificultar o atendimento recusando os procedimentos previstos na Lei Maria da Penha, por exemplo, não toma as medidas protetivas, não orienta a mulher sobre os procedimentos que precisam fazer. (informação verbal) Segundo Keli, certa vez, o delegado diante de um caso de violência disse: “Eu também bato na minha mulher”. E completa: “É com essas pessoas responsáveis em cumprir a lei que precisamos lidar diariamente”. As profissionais ficam perplexas com as injustiças e imaginam como estariam estas mulheres sem o acompanhamento da Casa, sozinhas não conseguiriam nenhum atendimento.

As críticas e preocupações que elas trazem são significativas para pensar a Lei Maria da Penha e as representações do judiciário sobre a violência contra as mulheres. Pesquisa74 realizada a partir da análise de sentenças proferidas após a vigência da Lei 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha, com o intuito de compreender como os magistrados percebem o universo da violência contra as mulheres e como suas concepções pessoais podem ou não influenciar suas decisões, em detrimento da referência legal, tem sido conclusiva:

Pode-se afirmar que os magistrados percebem a violência contra as mulheres como elemento constitutivo das relações entre gêneros, como um fato que não oferece perigo para elas e que não se enquadra no estatuto jurídico, não configura crime. Há uma naturalização do lugar social definido para as mulheres pela sociedade

73 É feminista, negra, atuante na Marcha de Mulheres, na qual também participa do coletivo de Lésbicas e Bissexuais e, na Casa Viviane ocupa a função administrativa.

74 Ver PORTO, Madge e COSTA, Francisco P. Lei Maria da Penha: as representações do judiciário sobre a violência contra as mulheres. Estudos de Psicologia, Campinas, 2010.

patriarcal e a consequente invisibilidade das várias formas de violência por elas sofrida, o que dificulta o acesso à justiça (PORTO & COSTA, p. 479, 2010). Segundo Porto & Costa (2010) foram coletados 15 processos enquadrados na Lei Maria da Penha, estes continham 20 vítimas e 24 situações enquadradas como crimes, tanto de lesão corporal quanto de ameaça. Foram determinadas 15 absolvições, oito condenações e observada uma desistência. Nesses processos, há decisões proferidas por juízes dos dois sexos. Na análise foi observada a justificativa do/a juiz/a quanto à sua decisão, neste espaço onde há uma expressão mais livre do/a juiz/a podem se identificar representações sobre o tema. Em alguns momentos os magistrados negam a violência sofrida pela mulher e em outros negam a lei.

A não efetivação da Lei e o péssimo atendimento nas DDM prejudicam o trabalho realizado nos Centros de Defesa, pois desestimulam a mulher em situação de violência a buscar a efetivação do seu direito e a possibilidade de exercer a plena cidadania, o que leva ao sentimento de injustiça da vítima e a reafirmação de seu lugar subalterno em relação aos homens. O que a Casa pretende descontruir junto às mulheres, o judiciário reafirma. Dessa forma, Porto & Costa (2010, p.484) observam: “Enfim, o magistrado pensa o universo das relações mediadas pela violência fora de seu contexto, a partir de uma referência pessoal, ou mesmo, de um modelo idealizado do que deveria ser a relação entre mulheres e homens”.

Nas reuniões, as mulheres articulam ações para enfrentar estes desafios, entre eles, cobrar e impor da 7º DDM - delegacia de referência da região, o atendimento correto e a efetivação da Lei. Algumas usuárias reclamam da negação do atendimento nesse estabelecimento. Nessas ações participam todas as mulheres ligadas ao serviço, desde as profissionais às usuárias. Algumas ações foram organizadas junto à mobilização do dia 25 de novembro75 que é o Dia Internacional de Combate à Violência contra a Mulher. Nessa data foi lançada a Campanha “16 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência contra as Mulheres”. A campanha mundial, iniciada em 1991, ocorre anualmente e tem por objetivos revelar as

75 Esta data foi estabelecida no Primeiro Encontro Feminista Latino-americano e do Caribe realizado em Bogotá, na Colômbia, 1981, em homenagem às irmãs Mirabal. Las Mariposas, como eram conhecidas as irmãs Mirabal – Patria, Minerva e Maria Teresa – foram brutalmente assassinadas pelo ditador Trujillo em 25 de novembro de 1960 na República Dominicana. Neste dia, as três irmãs regressavam de Puerto Plata, onde seus maridos se encontravam presos. Elas foram detidas na estrada e foram assassinadas por agentes do governo militar. A ditadura tirânica simulou um acidente. Minerva e Maria Teresa foram presas por diversas vezes no período de 1949 a 1960. Minerva usava o codinome “Mariposa” no exercício de sua militância política clandestina. Este horroroso assassinato produziu o rechaço geral da comunidade nacional e internacional em relação ao governo dominicano, e acelerou a queda do ditador Rafael Leônidas Trujillo. Fonte: <http://jornalggn.com.br/fora- pauta/dia-internacional-de-combate-a-violencia-contra-a-mulher>. Acesso em: 15 jan. 2014.

dimensões do feminicídio, isto é, denunciar o aumento do número de casos de mortes de mulheres por razões de gênero. Assim foi decidida, em parceria com a Rede Leste – Rede de Prevenção e Enfrentamento da Violência Contra a Mulher, a realização de um ato em frente 7ª DDM localizada na região de Itaquera (Zona Leste).

O Ato foi organizado pela Casa Viviane, que tem a Delegacia como referência devido à localização, e por isso presenciou inúmeros casos de negligência, tais como, negação da efetivação dos Boletins de Ocorrência (B.O.), a não aplicação e orientação da Lei Maria da Penha e, por consequência, das medidas protetivas que visam assegurar a vida das mulheres. “São estúpidas no atendimento e as mulheres saem pior do que quando chegaram à delegacia, inviabilizando a resolução do problema”, conta Keli. O Ato reuniu toda equipe e algumas usuárias da Casa Viviane, as equipes da Casa Anastácia, Casa Cidinha de São Mateus e algumas mulheres da Marcha Mundial de Mulheres - movimento feminista.

No início do ato as mulheres estavam com medo e muito receosas. Foi uma tarde muito chuvosa. As ativistas panfletavam na rua, abriam faixas nos faróis, entregavam panfletos nos carros e se revezavam para falar ao microfone denunciando o péssimo atendimento da DDM. Uma usuária dizia ao microfone: “Minha filha veio até está delegacia e não foi atendida, disseram que ela teria que procurar uma delegacia em Ermelino, lá não tem delegacia especializada”. E, reclamavam: “A Delegacia especializada no atendimento à mulher atende outras demandas que não estão relacionadas à violência de gênero, ou seja, atende tudo e não atende nada” (informação verbal).

Algumas frases dos cartazes e faixas que foram divulgados no ato: “Em briga de marido e mulher se mete a colher”, “O feminismo não mata ninguém. O machismo mata todos os dias”, “Por mim! Por nós! Por todas! Pelo fim da violência contra a mulher e meninas. Todo o nosso apoio à Lei Maria da Penha” e, “A violência contra a mulher não é o mundo que a gente quer”.

As coordenadoras dos serviços entraram na delegacia para protocolar uma carta- denúncia, elaborada conjuntamente. Elas foram bem recebidas e deixaram a carta com a intenção que a Delegada se abrisse para o diálogo e entendesse as especificidades das mulheres. E, diziam: “A luta é para que as mulheres sobrevivam!”. Antes do ato iniciado às 16 horas, a equipe da Casa Viviane fez panfletagem na estação de trem de Guaianases às 07 horas, horário de maior frequência de pessoas, para sensibilizar para a importância da data (25 de novembro).

As profissionais avaliaram bem as ações nos 16 dias de ativismo, principalmente por terem contado com boa participação das usuárias e das profissionais da Casa, e criticaram a

atuação dos demais Centros de Defesa que não compareceram. Só na Zona Leste existem oito CDCM. Compareceram ao ato apenas as mulheres das Casas Viviane e Anastácia e somente duas dirigentes de outras duas Casas. Também foi criticado o fato de na CPMI76 – da Violência Contra a Mulher, só ter comparecido a Casa Viviane. As demais Casas também foram criticadas por não terem um princípio de luta, de militância, por não se fazerem presentes nos eventos mais importantes de reivindicação. Para as profissionais, o diferencial do CDCM Viviane dos Santos é ser também um espaço de luta e de militância, fato que não ocorre em todos os Centros de Defesa.