• Nenhum resultado encontrado

Seguem trechos de um texto referente ao trabalho realizado na disciplina Poéticas Contemporâneas, também ministrada pela professara doutora Karina Dias no primeiro semestre de 2017. Minha proposta era levar os colegas da turma para assistirem o nascer do sol de um deter- minado meio fio da Universidade de Brasília, de onde tínhamos uma vasta visão e proximidade do horizonte. Distribuí espelhos e pedi que os quebrassem, para que as imagens fossem multiplicadas. Levei-lhes a seguinte questão, pedindo que respondessem por escrito em pequenos papéis distribuídos: qual a distância entre seu corpo e o amanhecer? Algumas respostas encontram-se entre aspas no texto a seguir.

Sem designação ou “Como se fosse

uma madrugada qualquer”

Impossível nomear o que sinto ao amanhecer. Sem designação. Uma paisagem cotidiana que me busca querendo transcender o olhar ordinário.

Tragadas de ar frio. Baforadas. Suspiros enfumaçados. Qual a distância entre o meu corpo e o amanhecer? “É como estar à beira d’água”.

Aonde eu estiver, a contradição de um amanhecer me persegue até o ponto de um constante desassossego. Inquietação que me serve de condução a improváveis paisagens.

“A medida da minha insônia”: “360 dias e uma madrugada”. É possível encontrar um outro olhar para o mesmo de sempre? (Tento dizer alguma coisa quanto à potência do clarear do dia que me persegue).

Caminhadas ao amanhecer.

(12 pessoas sentadas no meio-fio de uma calçada da UnB. Em silêncio. Um espelho encostado na árvore e um caco de espelho na mão de cada um. Um enquadramento. Esperando o sol. Olhando querendo ver.)

O sono. (Aquele que não me vem).

O escuro encosta em mim. Sou negra noite de madrugada, vendo as luzes da cidade. Sóis? Artifícios do olhar?

Tensão da imensidão imaginada do céu d’além nuvens! Além eu. Só. Entre.

“Três inspirações, uma expiração, um sussurro, 583 piscadas de olho - a distância entre meu corpo e o amanhecer”.

Há mais evidente ao clarear, quando o sol se anuncia ainda sem poder ser visto, o mistério dos vapores, gazes, nuvens intensas

que nos embaçam a vista, ao mesmo tempo que nos apontam outros mundos. Como se fosse possível viver em camadas de tempo diversos. Como se fosse possível desmanchar-se num voo de asas abertas ao infinito de uma existência. A materialidade se dilui. “E o próprio universo acaba se desmaterializando para se tornar duração, uma pluralidade de ritmos de duração que também se superpõem em profundidade, de acordo com níveis de tensão distintos.” (LAPOUJADE, 2013, p.11).

O tempo de um amanhecer. Alguns minutos. (“São oito passos precisos de cauda de boto cor de rosa”)

“1783 km”

Um oco profundo de eternidade e finitude ao mesmo tempo, revelando uma latitude plausível da existência. Passar da

escuridão às sombras delineantes de figuras aparentemente reais que permitem tanto o sonho quanto o devaneio (ou mesmo a loucura). Evidenciam-se as latências de uma paisagem adormecida pelas sombras. Os fantasmas ficam tão visíveis que se desmancham na luz.

Mostrar-se ou esconder-se? Talvez esparramar-se por sobre tudo… Diluir-se na paisagem. Transformar-se em cinzas (férteis)! Despedaçar-se em mil pedaços. Espelho quebrado. Virtualmente mais real que o palpável.

Necessidade de concretizar uma multiplicidade em mim. (Será que os espelhos queimam?)

O horizonte sempre parece anunciar algo… logo ali. Vários. Além… O horizonte é o cume inalcançável. Em minhas caminhadas na janela………. Ou me equilibrando no meio fio das calçadas da Unb,

posso manipulá-lo no meu enquadramento como uma linha que se desloca pela necessidade estética e emocional do meu olhar. (“É a medida do que cresce dentro”). Algo a superar. Algo a personificar ou concretizar em ações fotográficas (ou de outra ordem).

O horizonte prolonga meu ombro. (Nascerá um sol em mim?) O sol derrete as coisas no meu olhar com sua luminosidade intensa.

Espectador efêmero de um espetáculo eterno, o homem levanta os olhos para o céu e os fecha para sempre; mas, durante o instante rápido que lhe é dado, de todos os pontos do céu e desde a beirada do universo, um raio consolador parte de cada mundo e vem tocar seu olhar para lhe anunciar que existe uma relação entre a imensidão e ele, e que ele está associado à eternidade” (DE MAISTRE, 2009, p. 105).

A eternidade de um instante. A eternidade do silêncio.

“Silêncio superlotado, imobilidade vibrante, tensa como um arco. […] Imobilidade surda, tudo está parado. Tudo está uniforme, amortecido. É um silêncio de descanso de tela, de parêntese forrado de algodão, branco, suspenso” (GROS, 2010, p.66).

Único. Sinfonia.

Mesmo com todo o receio de acordar o que dorme e adormecer o que nunca descansa, os pássaros surgem gorjeantes pelo céu dos nossos olhos. A princípio tudo parece apenas um cochicho. Pschhss… o silêncio avoluma-se atento aos sons que parecem clarear com o dia.

“A distância entre meu corpo e o amanhecer é a distância do quadrado do que ouço até o centro do círculo do que vejo.”

O grande mistério do mundo.

Sonoridades de luzes iluminadas de nuvens no céu amanhecente. Epiderme eriçada por fluxos de sensações inomináveis. Corpo água parada, com correntes que represam e não carregam para o mar. Claridade insistente nas entrelinhas... como se não fosse possível segurar o amanhecer... grande tensão de forças. O dia se estabelece nublado... mas vem. Pássaros orquestram o amanhecer em quedas suicidantes pelo ar.

Gorjeios múltiplos.

“A distância entre o meu corpo e o amanhecer é o canto dos

passarinhos ou onde a vista alcança ou o primeiro gesto do acordar, o apertar dos olhos, o silêncio que prevê o barulho, é a vontade de estar aqui e acolá”.

Sinto-me movida pela memória. Não uma memória passiva, mas uma memória encarnada, corporificada. Uma memória que me movi- menta. Personagens mil que se levantam, como aquela figura de casaco cinza, espelho e uma malinha vermelha. Só não sei quem ser... Preciso saber? Da mala saem papéis, canetas, espelhinhos... Enquadramentos possíveis da paisagem. Camadas e mais camadas de possibilidades. Emanações.

Uma memória que se transforma em ação. Realização. Que esboça contornos de imagens. Delineia a potência do presente. “Não se deve julgar que as lembranças alojadas no fundo da memória lá permaneçam inertes e indiferentes. Elas estão na expectativa, estão quase atentas” (DELEUZE apud LAPOUJADE, 2013, p. 22).

David Lapoujade, relendo o filósofo Henri Bergson (1859-1941), fala-nos de uma memória-espírito que

não é a memória daquilo que percebemos no presente; não é a memória daquilo que fomos, é a memória daquilo que somos e nunca deixamos de ser, mesmo que não tivéssemos conhecimento disso. É ela que imagina o tempo, que abre e fecha o futuro. Sua presença, às vezes até sua insistência, explica-se por que existe no passado – e, portanto, também no presente – alguma coisa que de certa maneira não foi vivida. (LAPOUJADE, 2010, p. 22).

A memória-espírito como um virtual que insiste em atualizar-se (como veremos no capítulo 3), desenhando em mim aquela figura vista nas fotos e muitas outras possibilidades de existência. Talvez o amanhecer sugira uma transição, uma possibilidade de recomeço, uma situação limite entre a noite e o dia, entre o ser e o não ser.

Entre mundos? Entre.

Posso medir a saudade?

Posso medir o espaço da dor? (Ela tem um lugar) Posso medir o amanhecer no meu corpo?

Qual a dimensão do lugar que a gente ocupa? É sempre margem. Beira de. Não existe o centro.

Como se posicionar?

Quanto a finalização do trabalho, após o nascer do sol nos reuni-

mos próximos a uma árvore onde eu havia colocado um espelho. Cada um leu sua resposta a minha questão e jogou seu papel dentro de um recipiente de alumínio, onde os queimei junto com cacos de espelho e pontas de cigarro. Observamos em silêncio. Fogo. Efêmero. Divididos ou multiplicados, todos rapidamente viraram cinzas. Obviamente, os cacos de espelho sobreviveram. Ainda não sei o que fazer com eles. Estão dentro da malinha vermelha da mulher de casaco cinza até os pés, junto com alguns objetos, que não sei porque estavam lá.

Este trabalho ocorreu no início de julho de 2017, a partir das cinco horas e cinquenta minutos da manhã de uma sexta feira nublada.

Tentando localizar o leitor diante do que foi apresentado até aqui, ressalto que alguns textos podem parecer etéreos demais, porém acredito que farão sentido ao final do trabalho (ou não tenham exatamente que fazer sentido algum...). Pretendo que eles, junto com as fotografias, possam promover outras camadas de compreensão da presente tese.

No capítulo a seguir, nos debruçaremos sobre a personagem ten- tando observar, na sequência dos acontecimentos, como considerá-la diante da minha experiência dos últimos anos e em relação às noções teatrais que se estabelecem na contemporaneidade.

.

Documentos relacionados