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2. PERSONAGEM

3.3 O VIRTUAL E O ATUAL

O real assemelha-se ao possível; em troca, o atual em nada se assemelha ao virtual: responde-lhe.

Pierre Lévy

Impossível falar de tempo e memória sem buscar compreender na filosofia contemporânea o que é o real e o que é o virtual. Grossei- ramente, poderíamos defini-los como aquilo que existe, que possui uma materialidade, e aquilo que não existe, que não possui concretude

e que é da ordem do abstrato, do inacabado. O atual nos aproxima da ideia de real, no entanto, atual e virtual são reais, embora existam de maneirasdiferentes. Há vários modos de existência.

Estamos falando em multiplicidades. As multiplicidades são compostas por virtuais e atuais. Estes elementos não são puros, em existências concomitantes contagiam-se e constituem um universo.

O atual está sempre rodeado de imagens virtuais. São partículas cercadas de uma névoa de virtuais que surgem de circuitos coexisten- tes. Partículas atualizam ondas de virtuais, o que não significa uma concretude material. Uma percepção é como uma partícula e está envolta em uma névoa de imagens virtuais. Segundo Deleuze, elas “são lembranças de ordens diferentes: diz-se serem imagens virtuais à medida que sua velocidade ou sua brevidade as mantém aqui sob um princípio de inconsciência” (DELEUZE, 1996, p. 50).

Pierre Lévy, filósofo estudioso destas questões, nos conta a origem da palavra virtual:

A palavra virtual vem do latim medieval virtualis, derivado por sua vez de vitrus, força, potência. Na filosofia escolástica, é virtual o que existe em potência e não em ato. O virtual tende a atualizar-se, sem ter passado no entanto à concretização efetiva ou formal. A árvore está virtualmente presente na semente. Em termos rigorosamente filosóficos, o virtual não se opõe ao real mas ao atual: virtualidade e atualidade são apenas duas maneiras de ser diferentes (LÉVY, 1998, p. 15, grifo meu).

O virtual é a potência que nos rege. Quando acreditamos na vir- tualidade da vida podemos pensar que ela não é fechada em si mesma, definitiva. Percebemos que estamos sempre em devir. Estamos sempre buscando um encontro de forças para a geração de potência. “Com os virtuais, toda realidade se torna inacabada” (LAPOUJADE, 2017, p. 61). É como se a existência ocorresse através de suas diversidades.

Vivemos tentando definir e fechar circuitos, como se estivéssemos nos defendendo da instabilidade e efemeridade da vida. Queremos ter certeza de alguma coisa, quando na verdade o domínio não é da ordem do possível/impossível. “Todo atual rodeia-se de círculos sempre renovados de virtualidades, cada um deles emitindo um outro, e todos rodeando e reagindo sobre o atual” (DELEUZE, 1996, p. 49).

As imagens virtuais não se separam do objeto atual e vice-versa. “Objeto e imagem são ambos aqui virtuais, e constituem o plano de

imanência onde se dissolve o objeto atual” (DELEUZE, 1996, p.50,

grifo meu). Há um exemplo interessante de Souriau, da imagem de uma ponte sobre um rio com seu arco partido ao meio, ou inacabado, que virtualmente pressentimos inteira no plano de imanência (SOU- REAU apud LAPOUJADE, 2017, p 36). Pode ser que a ponte nunca seja concertada, mas a potência da sua completude existe. O esboço claro está ali quase visível. Os virtuais existem como proposição de ação. Eles instigam à ação. Pressionam para adquirir existência plena, o que

nem sempre acontece. Existe algo neles como uma expectativa ou uma exigência de realização.

Lapoujade (analisando a filosofia de Souriau sobre os modos de existência) observa que os virtuais:

Eles precisam de outro ser – um criador – que agirá para que possam ter uma existência maior e diferente. Inversamente, o criador precisa dessa nuvem de virtuais para criar novas realidades, ele se alimenta da sua incompletude. Ou seja, são os virtuais que introduzem um desejo de criação, uma vontade de arte no mundo. Eles são a origem de todas as artes que praticamos (LAPOUJADE, 2017, p.38, grifo do autor).

Como podemos não acreditar na existência dos virtuais? É im- perativa a sua noção para o trabalho da atriz. Como identificar essas existências mínimas, invisíveis?

O plano de imanência comporta, ao mesmo tempo, o virtual e sua atualização. Já o atual é o objeto da atualização. “A atualização do virtual é a singularidade, ao passo que o próprio atual é a individuali- dade constituída” (DELEUZE, 1996, p.51). Pois, o atual é o momento presente que passa, e, quando passa, retorna a uma virtualidade. Mas, enquanto atual, ele é transformador. O passado é virtual.

[...] a distinção entre o virtual e o atual corresponde à cisão mais fundamental do Tempo, quando ele avança diferenciando-se segundo duas grandes vias: fazer passar o presente e conservar o passado. O presente é um dado variável medido por um tempo contínuo, isto é, por um suposto movimento numa única direção: o presente passa à medida que esse tempo se esgota. É o presente que passa, que define o atual (DELEUZE, 1996, p. 54).

Distinguir o atual do virtual como a cisão mais fundamental do tempo é buscar compreender que o presente é um movimento que

passa, supostamente indo em direção ao passado, que o conserva ao mesmo tempo que devêm um futuro. Questiono-me se o atual pode ser considerado um instante, o movimento de um instante.

Como já dito anteriormente, o virtual não se opõe ao real, mas ao atual. As virtualidades não são dadas, são um constante porvir. Lévy afirma que o virtual é:

como o complexo problemático, o nó de tendências ou de forças que acompanha uma situação, um acontecimento, um objeto ou uma entidade qualquer, e que chama um processo de resolução: a atualização (LÉVY, 1998, p. 16).

A atualização é fazer o virtual tomar forma. É criação. É “invenção de uma forma a partir de uma configuração dinâmica de forças e de finalidades” (LÉVY, 1998, p. 16).

Todo este universo filosófico pode nos ajudar na compreensão do processo criativo de uma atriz. A nossa memória é virtual e pode se

atualizar. A atualização pode implicar um ato criativo. E a criação só ocorre através de processos de singularização do sujeito.

O que acontece quando me permito, em um processo criativo, o surgimento de uma personagem? É preciso compor com meu corpo um estado de ser “outro”, sendo “eu” mais intensamente. A personagem existe nos virtuais da atriz e atualiza-se segundo demandas da proposta criativa cênica. Em geral, buscamos características que nos distingam da personagem, numa clara necessidade de nos mantermos sob controle, enquanto, muito provavelmente, fugimos do que não consideramos aceitável em nós. É preciso abrir-se à percepção de novos virtuais em si. Através de um trabalho consciente de observação e atenção às materialidades que nos instigam, produzimos rizomáticamente a personagem. Tomamos consciência de um processo. Nosso corpo lhe oferece visibilidade/existência através da atualização de virtuais, que vão surgindo segundo nossas experiências reais e fictícias. A persona- gem existe enquanto potência e se atualiza pelo encontro entre a atriz

e todas as outras materialidades (entre elas o texto dramático, ou não) que ali se colocam na proposta criativa cênica.

Quando falo em personagem primordial, me refiro a imagens vir- tuais de minha história pessoal, que não são exatamente conscientes, nem exatamente reais, nem exatamente minhas, pressionando para se atualizarem. E os virtuais que a compõem intensificam meus dese- jos, movimentam linhas de fuga e promovem forças latentes na atriz. Durante a realização de um trabalho, a personagem aciona memórias que se atualizam no corpo da atriz, potencializando-o. Permitir a atu- alização de seus virtuais é vivenciar o seu processo de individuação. É favorecer ações singulares. É entrar em fluxo com forças criativas.

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