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4.2.2 “Não Declaração de Danos”: Renda e Núcleo Familiar no Caso da Concessão do AFE

4.2.3 Descabimento da Exigência do Cadastro Prévio para Fins de Concessão do AFE

Dentre os pedidos de AFE analisados, 10,1% foram negados pela Fundação Renova sob a alegação de ausência de cadastro. Tal posicionamento se baseia, sobretudo, na Cláusula 138 do TTAC, a qual estabelece que para concessão do auxílio financeiro emergencial “será necessário cadastramento e verificação da dependência financeira da atividade produtiva ou econômica”.

Ocorre que tal Cláusula não pode ser interpretada de forma isolada, sem considerar as demais cláusulas contratuais do TTAC e dos Acordos que o sucederam e as previsões e funcionamento dos Programas implementados pela Fundação Renova além do contexto fático do processo reparatório do Rio Doce e a situação de vulnerabilidade das pessoas atingidas. Ademais, o próprio procedimento de Cadastro enquanto programa da Fundação Renova (PG01) é um programa que está atrasado e paralisado desde o mês de janeiro de 2018, inviabilizando que seja considerado como parâmetro restritivo para o reconhecimento de outros direitos.

Originariamente, de acordo com a Cláusula 19 do TTAC, o Cadastro deveria ter sido finalizado em oito meses desde a sua assinatura, ou seja, no mês de novembro de 2016. Não obstante, até o presente momento, cerca de 90 mil pessoas estão aguardando análise da solicitação de cadastro, estima-se que represente todo o volume de pessoas já cadastradas desde 2015, gerado pela paralisação do cadastro desde janeiro de 2018182.

182 Informações extraídas do RMM da 43ª Reunião Ordinária da CTOS. Segundo informado são 26.681 solicitações de cadastro não iniciadas. Segundo os cálculos da Fundação Renova, as solicitações abrangem núcleo familiar, o que geraria o dado de cerca de 90 mil pessoas aguardando cadastramento. Esse dado também pode ser extraído do quantum de 53% de taxa de atendimento aos manifestantes (Indicadores, tabela 1.4, p. 7). FUNDAÇÃO RENOVA, RMM

Conforme apontado pelo relatório do Cadastro Socioeconômico realizado pela Fundação Getulio Vargas183, as pessoas atingidas que solicitam o ingresso no Cadastro Socioeconômico aguardam em média 194 dias para terem o seu pedido inserido no sistema e 75% dos manifestantes cadastrados aguardaram até 228 dias para terem o pedido analisado184. Ainda, visto que a recomendação de retomada imediata do cadastro indicada na Nota Técnica 32/2019 da CTOS não foi cumprida, conforme Nota Técnica n. 41/2019 da CTOS que acusa o descumprimento da Deliberação n. 277 e recomenda a notificação da Fundação Renova, não há previsão de retomada do cadastro dos atingidos.

Segundo indicado na mesma Nota Técnica n. 41/2019, “[...] quanto à determinação de pronta retomada do cadastramento, a Fundação Renova não nega a paralisação do cadastro e reforça que segue discordando do prazo. No ofício acima referenciado, de maio de 2019, indica que “considera incoerente a retomada imediata do cadastro antes da conclusão dos aprimoramentos da Fase 2” (§58), do que se denota ser incontroverso o descumprimento das recomendações finais 1, 2 e 3, constantes na NT nº 32/2019” (NT 41/2019-CTOS/CIF, p. 4-5).

Tais informações demonstram que o condicionamento da concessão do AFE ao cadastramento acabou por se tornar um impeditivo para a evolução do AFE e reconhecimento de novos danos e impactos, dada a falta de celeridade e eficiência do procedimento cadastral, contraposto ao caráter emergencial do auxílio financeiro e a situação de vulnerabilidade das pessoas atingidas que é aprofundada na demora na obtenção de uma reparação integral.

Se, de fato, o cadastro tivesse sido finalizado em oito meses da assinatura do TTAC e todos as pessoas atingidas estivessem, atualmente, cadastradas, a falta de cadastro provavelmente não teria sido colocada como fator de inelegibilidade na análise dos pareceres do AFE. Contudo, devido a impossibilidade da Fundação Renova de analisar todos os pedidos de cadastro dentro do prazo previsto, o cenário que existe hoje é de um grande número de manifestantes aguardando resposta do cadastro – e consequentemente, impedidos da sua elegibilidade a programas essenciais como o AFE e o PIM.

43a CTOS janeiro/2020, p. 5. Sobre a paralisação cumpre observar o gráfico 1.1. da p. 4, a respeito da evolução da taxa de atendimento às manifestações.

183 FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS. Análise do Cadastro Socioeconômico. 2019. São Paulo: FGV, 2019.

Isso significa dizer que as pessoas que tiveram o seu pedido de AFE negado por ausência de cadastro não necessariamente estão inertes e deixaram voluntariamente de tomar as providências necessárias para se cadastrar, tendo em vista cerca 50% dos pedidos de cadastro não foram até o momento analisados, o que inviabiliza a concessão de auxílio para metade dos solicitantes. Logo, deixar de fornecer um auxílio com caráter emergencial devido a uma demora procedimental e unilateral da Fundação Renova acaba por esvaziar o propósito do AFE num contexto de desastre (vide capítulo 3 sobre programas de transferência de renda e o contexto do AFE).

Ademais, a Fundação Renova estabeleceu em seus procedimentos parâmetros restritivos para definir quem poderia prosseguir no processo de cadastramento, pontuando serem elegíveis quem declarasse danos e impactos previstos em uma lista prévia supostamente elaborada com base no TTAC185 e inelegíveis os que relatassem danos que não se enquadram nesta lista, tais como: i) danos relacionados a interrupção do abastecimento de água em área urbana; II) danos relacionados à qualidade da água fornecida por empresa de tratamento; III) danos declarados de saúde, especialmente as de natureza psicológica; IV) danos declarados as comunidades tradicionais; V) dano moral; e VI) dano relacionado exclusivamente a lesão corporal186.

Trata-se de um filtro prévio de elegibilidade que foi implementado no Programa de Cadastro que não encontra qualquer previsão no TTAC e que acaba por excluir do direito ao cadastramento pessoas que sofreram determinados tipos de dano e que potencialmente teriam direito à reparação também. Consequentemente, tais pessoas não conseguem acessar os demais Programas Reparatórios da Fundação Renova, a exemplo do AFE, gerando um efeito em cascata de falta de acesso à justiça e potencialização de vulnerabilidades.

Além disso, na Cláusula 138, o TTAC prevê que para que seja concedido o AFE é necessário um “cadastramento e verificação da dependência financeira da atividade produtiva ou econômica”, mas sem a vinculação expressa do cadastramento aos moldes do PG01 – o Programa de Levantamento e Cadastro dos Impactados (descrito nas cláusulas 19 a 30). Cumpre dizer que essa interpretação e a desvinculação do PG01 já

185 FUNDAÇÃO RENOVA. Procedimentos para Tratamento de Manifestações de Novos Cadastros, s/data.

186 O objetivo do “Protocolo de Avaliação de Impactos é apresentar os componentes utilizados para a elaboração do Parecer de Avaliação de Impacto”. Esse parecer avalia se os impactos declarados pelos entrevistados da Cadastro Integrado – CI estão enquadrados no que o TTAC concebe como pessoas diretamente impactadas pelo rompimento da barragem de Fundão, localizada no município de Mariana – MG (Anexo IV ao Ofício n. OFI.NII.102019.8014 de 2 de outubro de 2019, p. 4).

foi usada em outros cadastramentos emergenciais específicos - como nas experiências da Comunidade Remanescente de Quilombo do Degredo187, de Povos Indígenas188 e com a própria lista inicial de faiscadores aqui descrita.

Por fim, cumpre dizer que especialmente com relação a essas exceções relacionadas a povos tradicionais e indígenas, o TTAC dispõe que: “ o atendimento a que se refere este PROGRAMA [proteção e recuperação da vida dos povos indígenas] deverá respeitar as formas próprias de organização social, costumes, usos e tradições dos povos indígenas KRENAK, TUPINIQUIM e GUARANI” (Cláusula 40) e com relação a outros povos e comunidades tradicionais, “o atendimento emergencial e aquele que decorrer de programa, caso sejam necessários na forma desta subseção, deverá respeitar as formas próprias de organização social, costumes, usos e tradições das comunidades [...]” (Cláusula 47)189.

Sendo assim, a atenção aos modos de vida e organização social das comunidades indígenas e tradicionais orienta a execução dos programas, adequando-os à realidade desses territórios. Ambos os programas PG01 (Cadastro) e PG21 (AFE) demandam uma adaptação às realidades locais e se moldam, a esses ambientes de tradicionalidade, em que atividades econômicas são realizadas informalmente e de forma plural. Essa adaptação, como explorado no histórico deste documento (item 1) foi reconhecida pela Fundação Renova nos anos de 2016 a 2018, que elaborou Plano de Atendimento e contratou consultorias especializadas para a aferição dos indivíduos e danos experimentados pelas comunidades de garimpeiros e pescadores artesanais. A partir de 2018 a Fundação Renova passa a opor-se a esse reconhecimento coletivo, restringindo-se a uma leitura isolada da Cláusula 138 do TTAC.

Como se demonstra neste tópico, essa leitura é contrastada por duas perspectivas: i) a inadequação do Cadastro enquanto critério de elegibilidade pela sua paralização e comprometimento do reconhecimento de atingidos em larga escala no território, e ii) pela condição de tradicionalidade dessas comunidades e seu enquadramento em processos coletivos de autorreconhecimento e identificação de danos.

187 Plano de Atendimento Emergencial para Degredo - Fundação Renova - versão preliminar de 2017 e final de 2018 e NT 04/2018 da CT-IPCT.

188 Vide os documentos constitutivos dos acordos com os povos indígenas: TAC Krenak, TAC Comboios, TAC Tupiniquim Guarani.

189 Reforça-se a leitura do TTAC que reafirma: “CLÁUSULA.51: Compreende-se por Povos e Comunidades Tradicionais os grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuam formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e