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Descabimento da Exigência de Certificação da Comissão Estadual para o Desenvolvimento Sustentável dos Povos e

REQUISITOS DO AFE

3 VALIDADE DAS LISTAS DE AUTORRECONHECIMENTO COLETIVO DE COMUNIDADES TRADICIONAIS

3.3 Descabimento da Exigência de Certificação da Comissão Estadual para o Desenvolvimento Sustentável dos Povos e

Comunidades Tradicionais de Minas Gerais (CEPCT-MG)

Conforme já mencionado, em 5/12/2019 a Fundação Renova emitiu ofício em resposta à Nota Técnica CT-IPCT n° 08/2019 (OFI.NII.122019.8480) em que menciona a necessidade de buscar apoio do poder público para construir uma análise da tradicionalidade dessas comunidades com base nas políticas nacional e estadual de povos e comunidades tradicionais. Afirma expressamente ser preciso identificar “evidências” da tradicionalidade para que possam assim considerar os faiscadores e pescadores artesanais tradicionais.

Ocorre, no entanto, que a legislação e as boas-práticas previstas em decisões internacionais sobre o tema não identificam a exigência de análise técnica para aferir a tradicionalidade de uma comunidade, tampouco no que diz respeito à coleta de evidências para comprovação dessa condição. Primeiro, pela natureza da criação de certificação, que tem o condão de ampliar o acesso das comunidades tradicionais aos seus direitos, nunca de limitá-los, tal qual se depreende do texto e da justificação de motivos da Lei Estadual de Minas Gerais 21.147/2014, em especial do art. 3º e dos incisos XIII e IX do art. 4º, VIII e IX da Lei, que tratam dos seus objetivos e dispõe sobre a “ênfase no reconhecimento, no fortalecimento e na garantia de seus direitos territoriais, sociais, ambientais e econômicos”, assim como do Decreto Estadual 46.671/2014 que cria a Comissão Estadual para o Desenvolvimento Sustentável dos

99 A criação do Projeto Piloto Pescador de Fato se deu face a necessidade de definição de critérios mais adequados à realidade das comunidades de pescadores artesanais nos territórios atingidos, passando a prever três possibilidade comprobatórias da pesca artesanal: Conjunto 01: alternativas legais de comprovação; Conjunto 02: histórico – declaração de dois pescadores testemunhas, formulário, questionário e documentos acessórios que comprovem a condição de pescador profissional “de fato”; Conjunto 03: voz/autonarrativa – na ausência de tais documentos acessórios, o pescador pode apresentar uma narrativa escrita ou audiovisual sobre a sua atividade pesqueira antes do rompimento (FUNDAÇÃO RENOVA. Relatório Técnico: Projeto Piloto – Pescador de Fato. Atualização 1.3, junho/2018, págs. 4-8). A divisão entre os três possíveis “conjuntos de evidência” foi mantida nas atualizações seguintes do Relatório.

Povos e Comunidades Tradicionais de Minas Gerais e estabelece, dentre uma de suas competências, a emissão de “Certidão de Autodefinição para reconhecimento formal dos povos e comunidades tradicionais de Minas Gerais, quando solicitado”.

Em especial, a necessidade de uma certificação estatal ou supra estatal ou a vinculação das provas a essas validações vai na contramão da Convenção n° 169 da OIT, do Decreto 6.040/2007 que institui a Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais - CNPCT, da Lei 21.147/2014 de MG que institui a Comissão Estadual para o Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais de Minas Gerais – CEPCT-MG e das normas e princípios de garantias dos direitos humanos e autodeterminação dos povos.

O meio legítimo para se verificar a tradicionalidade de um povo ou comunidade é por meio da autodeclaração desse povo e/ou comunidade. Tanto estudos técnicos como a perícia antropológica podem apenas corroborar com a análise e o autorreconhecimento. Sendo assim, não é o escopo de perícias técnicas nestes casos a legitimação individual e/ou a aferição de validade na determinação da tradicionalidade – seja ela individual ou coletiva. Sendo assim, a tradicionalidade é observada e vivenciada a partir da coletividade, da comunidade. E, por isso, não são considerados como válidos ou exigíveis os meios de prova documentais na comprovação do pertencimento à comunidade pelos seus membros100.

Além disso, questiona-se a exigência da Fundação Renova em relação à melhor interpretação da legislação por ela mencionada como justificativa para o critério. Cumpre reiterar que a referida Comissão Estadual para o desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais de Minas Gerais foi criada pelo Decreto Estadual 46.671/2014, sendo instalada somente em outubro de 2015101, isto é, um mês antes do desastre, por isso tempo insuficiente para a reunião dos grupos tradicionais no território dado seu escopo. Ainda, cumpre observar que o decreto prevê o mapeamento de tais comunidades e a Lei nº 21.147/2014102 prevê a realização de busca ativa pelo poder público no sentido de formalizar o seu autorreconhecimento com vistas à regularização de seu território, revelando que esse processo de formalização, além de recente, não é estático.

100 Como já visto, a Corte IDH entende que a questão de identificação dos membros do povo deve ser resolvida pelo povo em questão em conformidade com seus próprios costumes, e não pelo estado ou pela Corte. Caso del Pueblo Saramaka. Vs. Suriname. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 28 de noviembre de 2007, § 164.

101 Escola de Formação em Direitos Humanos de Minas Gerais (EFDH) – UFMG. Proteção, Promoção e Reparação dos Direitos das Comunidades Tradicionais. 2016.

Por fim, cumpre reforçar que a premissa central da elaboração das políticas com vistas a formalizar a existência dos povos e comunidades tradicionais tem o condão de ampliar o seu acesso a direitos, nunca de limitá-los, tal qual se depreende do texto da Lei 21.147/2014, em especial do art. 3º e dos incisos XIII e IX do art. 4º, VIII e IX da Lei, que tratam dos seus objetivos e dispõe sobre a “ênfase no reconhecimento, no fortalecimento e na garantia de seus direitos territoriais, sociais, ambientais e econômicos”.

Nesse sentido, a possibilidade de certificação não deve ser entendida como condição à concretização desse direito, mas como uma das ferramentas aptas a viabilizá-lo. Vale salientar que tanto a Política estadual, quanto o Conselho foram constituídos com o objetivo de ampliação dos direitos de povos tradicionais, e não como mais uma barreira para o seu reconhecimento. Esse entendimento pode ser compreendido do próprio texto de justificativa da Lei 21.147/2014, que conclui:

Ao final da mencionada audiência pública, concluíram os presentes que é necessária a criação, no âmbito do Estado, de uma política de desenvolvimento sustentável dos povos e comunidades tradicionais, em sintonia com a política nacional já existente, como forma de integrar esforços e ações de governos103.

Ademais, a certificação visa garantir segurança jurídica à questão territorial aos povos e comunidades tradicionais de modo que não sejam sobrepostas unidades de conservação aos territórios ocupados tradicionalmente pelas comunidades.

Em resumo, a Certidão pela Comissão Estadual de Povos e Comunidades Tradicionais de MG é desejável à comunidade para fins de ampliação de seus direitos e de segurança jurídica, mas não necessária para o reconhecimento dos faiscadores; isso porque: (i) já são atendidos pelo PG04 e possuem representação na CT-IPCT; (ii) a Fundação Renova já os reconheceu enquanto tradicionais em seus documentos primários e secundários – via consultorias especializadas - em especial no Plano publicado no ano de 2017; (iii) a Lei estadual do Estado de Minas Gerais para os Povos e Comunidades Tradicionais é protetiva, não restritiva em termos de direitos; (iv) os órgãos Ministério dos Direitos Humanos (MDH) por meio da Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) - SEPPIR/MDH e a Secretaria de Estado de

103 Brasil. Lei 21.147/2014. Justificativa. Disponível em: HYPERLINK "https://www.almg.gov.br/atividade_parlamentar/tramitacao_projetos/texto.html?a=2011&n=883 &t=PL"https://www.almg.gov.br/atividade_parlamentar/tramitacao_projetos/texto.html?a=2011& n=883&t=PL.

Desenvolvimento Social (Sedese) - SEDESE/MG já reconhecem faiscadores como tradicionais.

Por fim, nota-se do retratado que a Fundação Renova oferece tratamento desigual às comunidades tradicionais e povos indígenas, ferindo o princípio constitucional da isonomia. Segundo o TTAC, os PG03 e PG04 são destinados a todos os povos indígenas e comunidades tradicionais atingidos pelo Desastre. Em especial, expressamente na Cláusula 50, o TTAC acolhe a possibilidade de reconhecimento de novas comunidades tradicionais e à ampliação deste grupo. Ainda, as comunidades tradicionais e povos indígenas também não são elegíveis ao PG01 – Programa de Levantamento e Cadastro dos Impactados – visto que devem possuir meios de identificação coletivos e planos próprios de mensuração de danos e de reparação que respeitem seus modos de vida e a legislação aplicável.

Essa prática já é aplicada no caso de povos indígenas atingidos e com a Comunidade Remanescente Quilombola de Degredo (CRQ Degredo). No entanto, os faiscadores e pescadores artesanais autodeclarados tradicionais, apesar de terem se declarados enquanto comunidade tradicionais, estão sendo tratados individualmente, sem que lhes sejam assegurados os meios de identificação coletivo, o que fere a garantia da autodeterminação coletiva e as autonomias dessas comunidades.

3.4. Descabimento do Argumento da Irregularidade da Atividade