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4. METODOLOGIA PARA ELABORAÇÃO DO INVENTÁRIO

4.1. Descrição iconográfica: diante da lacuna do documento a fala do objeto

diante da lacuna do documento a fala do objeto

A descrição iconográfica é parte fundamental na metodologia de inventário de esculturas religiosas, pois dá o título à obra, ou seja, é o principal item de sua identificação. Portanto, entender a fundo a iconografia dos santos é essencial para que a identificação dessa tipologia de bens seja feita de forma correta.

Segundo Réau (2005), a palavra “iconografia”, em sua origem etimológica – eikon, imagem, e graphein, descrever –, significa a descrição de imagens. Iconografia é o estudo descritivo da representação visual de símbolos e imagens, tal como se apresentam nas obras de arte. Porém, esse sentido se torna restrito, pois um estudo iconográfico não deve se limitar à descrição das imagens, mas também se ater à sua classificação e interpretação, principalmente no que concerne à arte cristã.

Conforme Panofsky (1892-1968), a "iconografia é o ramo da história da arte que trata do tema ou mensagem das obras de arte em contraposição à sua forma" (1979, p. 47). A iconografia “[...] implica um método de proceder puramente descritivo, ou até mesmo estatístico" (Id., Ibid., p. 53). A análise iconográfica, mais do que as experiências práticas, requer uma familiaridade com conceitos e temas específicos que podem ser adquiridos por meio de fontes literárias dirigidas às imagens, histórias ou alegorias que analisamos numa obra de arte. Contudo, o autor ressalta que as fontes literárias não asseguram a exatidão da análise; além das fontes literárias, teremos que utilizar o nosso conhecimento da história dos estilos, isto é, comparando as várias maneiras de como o motivo foi representado ao longo da história por outros artistas. Essa investigação, nomeada pelo autor como História dos Tipos, visa à “[...] compreensão da maneira pela qual, sob diferentes condições históricas, temas ou conceitos foram expressos por objetos e eventos” (Id., Ibid., p. 65).

Podemos afirmar, de acordo com Myriam Oliveira (2000), que a partir do século XII as características gerais da iconografia dos novos santos passaram a ser estabelecidas nas cerimônias de canonização. Além de símbolos comuns a todos os santos, atributos de uso geral foram criados como identificadores da classe integrada por cada santo, como é o caso da palma do martírio ou do livro. Fora esses atributos gerais, outros atributos específicos referentes a passagens na vida de cada santo definiam sua individualidade a fim de possibilitar

sua identificação nas representações artísticas, apontando seus aspectos particulares. Ao longo dos séculos, diferentes símbolos e atributos foram creditados pela devoção popular e acrescentados ao modelo original concebido pela devoção oficial da igreja.

Para o procedimento de identificação das imagens, é necessário proceder a uma avaliação e interpretação que devem levar em conta: as características fisionômicas e anatômicas, a indumentária, os atributos coletivos e os atributos individuais.

De acordo com Jorge Tavares (2001, p. 181), esse processo de identificação pode ser mais complexo quando: por vezes, as imagens perdem os atributos ou a legenda que as identifica, e, nessa altura, tornam-se indecifráveis na maioria dos casos. Outras vezes, o artista não executa a imagem com o rigor necessário, ou perde-se um indicativo esclarecedor, e a identificação da imagem torna-se difícil ou de interpretação controversa. Há ainda o caso de troca de atributos, por acidente, ignorância ou ação bem-intencionada, de que resultam equívocos ou erros de interpretação. É importante, portanto, que se faça uma análise cautelosa antes de tomar decisões, ou então somente designar a ordem religiosa, grupo ou algo identificável na imagem estudada.

É necessária a análise presencial e minuciosa de cada santo em seus diversos ângulos e detalhes, utilizando métodos e instrumentos de análise – análises a olho nu e com lupa de mão, assim como toda sua documentação fotográfica, para se ter maior fidelidade ao estudo iconográfico de uma coleção.

Para que a iconografia seja identificada de forma correta, é necessário, em um primeiro momento, proceder a um minucioso levantamento bibliográfico. As referências bibliográficas se constituem aqui em dicionários iconográficos e hagiográficos, artigos e estudos sobre a iconografia dos santos no Brasil, assim como livros com referências fotográficas de acervos constituídos de esculturas religiosas – principalmente brasileira e portuguesa do período barroco –, para estudo comparativo.

Depois dessa etapa, foram realizadas as atividades de compilação dos dados iconográficos de cada santo: pesquisa, dentre as invocações identificadas na coleção, das diversas formas de representação e de todos os atributos e características dos santos estudados. Nesse momento, elaboramos uma espécie de dicionário iconográfico que define as características dos santos presentes na coleção. (Cf. APÊNDICE A.5).

Outra forma de validar a pesquisa iconográfica foi a comparação visual com as imagens já identificadas nas diversas publicações consultadas, tornando assim possível formar um repertório visual comparativo das representações encontradas na coleção com aquelas já designadas por especialistas.

Dentre as obras bibliográficas consultadas, observaram-se algumas divergências. De um lado, foi observada a visão dos autores religiosos, e de outro, dos especialistas, baseando-se em dados concretos, mas também, e principalmente, dentre estes, notaram-se alguns desencontros entre latino-americanos e europeus, notadamente por algumas invocações locais. Os santos registrados nas obras de referência em sua maioria europeias – dicionários iconográficos e hagiográficos – sofreram transformação iconográfica, sobretudo devido à regionalização das devoções.

Mesmo dentre as obras brasileiras, notou-se uma divergência em algumas invocações, principalmente naquelas do ciclo mariológico46, mas também na invocação de santos de

caráter mais popular, fator que dificulta às vezes a identificação devido à simplificação das representações.

Como resultado de reconhecimento do inventário anterior, detectamos alguns problemas de identificação, principalmente de confusão entre a iconografia de alguns santos, a falta de identificação de outros e a afirmação de invocações das quais não temos elementos suficientes para validá-las. Verificamos também que alguns erros de interpretação iconográfica se devem ao fato de a colecionadora haver comprado os santos já com as invocações errôneas.

No conjunto das imagens da coleção foram encontrados mais de cinquenta santos e invocações. Neles estão representados os santos de maior apelo popular e facilmente reconhecíveis – como Santana, Santo Antônio, Menino Jesus, São João Batista, Cristo Crucificado e diversas invocações de Nossa Senhora – principalmente Nossa Senhora da Conceição. Mas também são encontradas figuras menos conhecidas, como a de Santa Gertrudes, São João Nepomuceno, entre outros.

Mesmo após todo o estudo iconográfico realizado, cerca de vinte imagens da coleção estudada não foram identificadas. Isso se deve à perda de atributos, às características únicas

de representação – não encontradas na bibliografia até aqui estudada –, e aos problemas de conservação, que causam dificuldade na fruição integral das peças.

Enfatizamos a diferença encontrada entre as representações mais eruditas, que seguem fielmente os modelos apontados pela "oficial" iconografia cristã, e aquelas mais populares, que sofrem a interferência de diversas questões: a falta de modelos originais, a imaginação dos artistas e falta de apuro técnico, a simplificação das formas e iconografias, assim como as lendas populares e regionais sobre a vida de cada santo.

Um fato importante a ser destacado é que, diante da lacuna do documento, "a iconografia é de auxílio incalculável para o estabelecimento de datas, origens e, às vezes, autenticidade; e fornece as bases necessárias para quaisquer interpretações ulteriores" (PANOFSKY, 2007, p. 53).

Por ser um fator intrínseco ao objeto, a iconografia caracteriza-se como colaborador fundamental para sua identificação, pois as características composicionais e iconográficas são qualificações e propriedades inerentes à obra de arte. Uma interpretação realmente exaustiva do significado intrínseco ou conteúdo poderia até nos mostrar técnicas características de um país, período ou artista [...] (Id., Ibid., p. 52). Uma observação iconográfica sujeita a uma interpretação e identificação escrupulosa das imagens ou outros motivos expostos na obra que estamos a examinar, pode nos proporcionar um correto estabelecimento de datação, origem e, muitas vezes, a autoria da obra de arte.