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O DIABO NO UNIVERSO ULTRAMARINO: DO PACTO MATERIAL À SUPERSTIÇÃO

1.6 A descriminalização do pacto

Ainda que, segundo Evergton Sales Souza, a feitiçaria não tenha sido o principal alvo de perseguição pela Inquisição portuguesa, ela não passou despercebida aos olhos dos teólogos portugueses. Ao contrário do que possa parecer, a quase nula existência de uma literatura que faça referência direta à questão da bruxaria, e consequentemente da demonologia, como atenta Laura de Mello e Souza, não pode nos levar a supor que a questão era desconhecida ou mesmo menosprezada pelas autoridades eclesiásticas portuguesas. Para o autor, isso seria apenas um indicativo de que a feitiçaria não era um problema central para a sociedade lusa. Afinal, os

44 tratados referentes ao assunto não eram desconhecidos, vide suas citações por diversos intelectuais portugueses em suas obras.73

Ainda que em nações como França e Inglaterra observamos, segundo o autor, desde meados do século XVII, o refluxo da demonologia, em Portugal, a ideia de pacto mantivera-se por muito tempo, a despeito dos poucos casos, inalterada.74 É somente a partir de meados do século XVIII que observamos um questionamento direto à realidade da bruxaria, tanto é verdade que, no Vocabulário português e Latino, de Bluteau, publicado no início do século, o verbete “feiticeiro” ainda aparece com uma definição bastante tradicional, atestando que, a despeito dos que negam sua existência, existem provas e certezas da existência da magia tanto na razão quanto na experiência e nas sagradas escrituras. Além disso, podemos observar diversos exemplos e ampla literatura que atestam, entre os meios letrados, a permanência na crença do poder do diabo, bem como na materialidade das implicações de sua invocação e dos reais efeitos provenientes do estabelecimento do pacto com um ser humano, sendo, nesse sentido, os Processos inquisitoriais um bom exemplo.75

No entanto, como aponta Evergton Sales Souza, a partir da segunda metade do século, podemos observar o desenvolvimento de uma nova concepção a respeito dos efeitos materiais da intervenção diabólica entre os meios letrados, expressa, principalmente, no novo Regimento

do Santo Ofício da Inquisição, impresso em 1774. Este exacerba uma mudança clara na maneira

de encarar a questão do pacto demoníaco, atestando que as influências do racionalismo ilustrado começavam a atingir o seio do Santo Ofício. O Regimento, no que tange a questão da feitiçaria, buscou extirpar a crença na realidade dos poderes de feiticeiros, sortilégios, adivinhadores, astrólogos judiciários e maléficos. Além disso, em algumas passagens mais explícitas, condenou o abuso da inocência das pessoas na difusão de acontecimentos sobrenaturais e especulativos. Assim, o Tribunal passou a deixar de lado ideias que há dois séculos guiaram suas ações com relação às artes diabólicas, evidenciando a adoção de ideais mais racionalistas.76

A publicação da obra Defesa de Cecilia Faragó, accusada do crime de feitiçaria, de Giuseppe Raffaeli, em 1775, nesse contexto, constitui-se como um marco dessas discussões. Para Evergton Sales Souza, o livro questionava ideias até muito pouco totalmente aceitas entre

73 SOUZA, Evergton Sales. Catolicismo ilustrado e feitiçaria no mundo português. In: FURTADO, Júnia Ferreira;

RESENDE, Maria Leônia Chaves de. Travessias inquisitoriais das Minas Gerais aos cárceres do Santo Ofício: diálogos e trânsitos religiosos no império luso-brasileiro (sécs. XVI-XVIII). Belo Horizonte: Fino Traço, 2013. p. 313.

74 Idem, p. 313-314. 75 Idem, p. 314. 76 Idem, p. 316.

45 os intelectuais lusos. Raffaeli compara a feitiçaria a histórias fantásticas, relegando-a ao campo das superstições.77 E diz:

Passaram os tempos, em que se rendia cega, e profunda idolatria às extravagantes Disquisições Mágicas de Martinho Del-Rio. As grandes luzes que atualmente ilustram a Pátria afortunada não consentem que só os Católicos da França e da Itália leiam na língua materna as verdades do primeiro e terceiro capítulo desta Obra. Deve chegar a todos esta verdade, fundada nas santas Escrituras.78

Segundo o autor, apesar de autorizar a impressão da obra, a Mesa Censória portuguesa achou por bem promover um exame mais profundo devido à delicadeza do tema do qual tratava. O parecer resultante da análise dessa obra, redigido pelo frei José da Rocha, é essencial para a compreensão da mudança da sensibilidade religiosa com relação à interpretação da feitiçaria no fim do século XVIII em Portugal.79

Consciente da falta de unanimidade sobre o tema, o relator procurou elencar os principais argumentos tanto dos que eram contrários à obra quanto dos que eram favoráveis. Lista, de acordo com o autor, os argumentos dos que acreditam nas artes mágicas como tributárias dos poderes de satã, criticando-os logo em seguida e demonstrando o quanto eram frágeis as provas que procuravam atestar a realidade da feitiçaria. Dessa forma, frei José da Rocha buscava mostrar que não havia nada que comprovasse a existência da arte mágica, fosse nas Sagradas Escrituras, nos cânones conciliares ou nas bulas papais. Nesse intuito, o censor expõe algumas explicações que permitem o esclarecimento do novo estatuto que justificaria a coerção dos praticantes de magia.80 Assim, para o autor, está clara a filiação do frei ao pensamento católico-ilustrado lusitano, bem como sua preocupação em manter as ordens social e política. Afinal, era somente nesse campo que os feitiços poderiam causar efeitos reais.81 Ou seja, dar fim à crença no poder dos feiticeiros não era pôr fim aos processos legais, fossem eles eclesiásticos ou civis, contra os praticantes dessas artes, que poderiam ameaçar o equilíbrio e a tranquilidade do corpo social. Além disso, frei José da Rocha, também, refuta o pacto demoníaco, o qual, para ele, não passava de uma invenção dos teólogos escolásticos. Essa atribuição pode indicar, na perspectiva de Evergton Sales Souza, o pouco apreço do frei pela escolástica, bem como sua harmonia com o projeto reformador promovido pelo Marquês de

77 Idem, p. 317.

78 RAFFAELI, Giuseppe. 1775, Prefação, s/p., apud, SOUZA, 2013, p. 317. 79 Idem, p. 317-318.

80 Idem, p. 321-322. 81 SOUZA, 2013, p. 322.

46 Pombal em Portugal, que subjugou a Inquisição por completo aos poderes da Coroa.82 Outro traço marcante da influência iluminista católica sobre o frei José da Rocha é, conforme o autor, a relação que faz sobre a ineficácia da magia na resolução dos problemas de quem a realizava. Afinal, os feiticeiros continuavam pobres e sob o julgo dos executores da justiça. Além disso, esse detalhe explicita que a crença nas superstições estava vinculada principalmente aos ignorantes e pobres.83

Evergton Sales Souza aponta que o movimento das luzes católicas ocorrido no século XVIII, mais que dar continuidade ao intuito de enquadrar os fiéis do ponto de vista religioso, representou um reforço nesse sentido. Na busca pela racionalização religiosa, a reação contra a cultura e práticas populares asseverou-se.84 No entanto, essa característica está longe de representar uma secularização da sociedade portuguesa. Não parece cabível supormos que havia, por parte dos responsáveis pelas reformas pombalinas, tamanha clareza a respeito dessas questões, o cuidado de frei José da Rocha em não assumir uma posição completamente cética é prova disso. Afinal, não havia interesse que suas ideias soassem como um processo de afastamento do catolicismo. Nessa ótica, em nenhum momento, nega a existência do diabo, apenas põe em causa sua ação pela interferência de feiticeiros. Assim, em momento algum, a Mesa Censória perde de vista sua importância e cumpre o seu papel: instrumento das políticas reformadoras no Reino. Consciente de seu papel, não assume posicionamento radical, prezando sempre pela moderação em suas decisões, mas sem deixar de abrir espaço para novas ideias que estivessem de acordo e que contribuíssem com o projeto reformador, evitando, assim, colocar em causa a paz estabelecida no Reino. Dessa forma, segundo o autor, ao discutirem a tema da feitiçaria, os deputados não se limitaram apenas ao conteúdo do livro e às ideias que defendiam em si, mas avaliaram os efeitos que a publicação de uma obra que colocava em causa a existência da feitiçaria poderia causar, demonstrando o perfeito alinhamento com o pensamento católico ilustrado.85

Cabe destacarmos ainda que, na visão do autor, nem mesmo entre os deputados da Mesa havia consenso sobre a posição assumida pela obra de Raffaeli ainda que por maioria ampla de votos tenham autorizado sua impressão.86 Mesmo que a intenção das autoridades fosse mudar o pensamento a respeito da feitiçaria, isso não acontecia de forma automática. É preciso percebermos que, apesar de boa parcela dos setores da sociedade aceitar essa mudança, ela não 82 Idem, p. 323. 83 Idem, p. 324. 84 Ibidem. 85 Idem, p. 324-325. 86 Idem, p. 317.

47 esteve isenta de resistências. De acordo com o autor, há uma dicotomia entre o que as autoridades pregam, ou seja, o discurso, e a assimilação por todos os setores da sociedade.87 Mesmo dentro da própria Inquisição, as concepções combatidas pelo livro de Raffaeli e por boa parte dos deputados da Mesa Censória continuavam a existir. Prova disso é a existência de alguns processos contra feiticeiros em fins do século XVIII.88

Em suma, o Regimento de 1774 alterou definitivamente a maneira como o Tribunal passaria a encarar a feitiçaria. Vista, a partir de então, como superstição, na prática, os feiticeiros, ao invés de serem questionados sobre a presença de pacto, passaram a ser inquiridos sobre as falsidades que assumiam na tentativa de ludibriar as pessoas. Isso demonstra, segundo o autor, que daquele momento em diante a Inquisição passou a combater a crendice baseada apenas na superstição e na ignorância, alinhando-se, assim, ao racionalismo cético. Acreditava- se que, ao se tratarem tais questões com seriedade, atestava-se sua veracidade. Dessa maneira, seria mais inteligente relegá-las ao ridículo, pois, desse modo, perderiam sua importância e, provavelmente, cairiam em desuso da mesma forma que ocorreu entre as nações mais desenvolvidas intelectualmente da Europa.