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desejo e projecto: da ausência à presença do objecto

A impossibilidade de se ser satisfeito é a marca principal do Desejo metafísico. O próprio desejo deseja tudo aquilo que está para além do que simplesmente o pode vir a completar: o objecto do desejo é o Desejado que, ao invés de cumular, estimula e, portanto, ele é assim uma espécie de entidade animada pelo desejável que é revelação. Sendo o desejo um desejo do absolutamente outro ele próprio mede a infinidade do infinito, não coincidindo portanto com uma necessidade insatisfeita dado que se coloca para além da satisfação e da insatisfação - é da ordem da infinitude, de "(...) um futuro sem balizas sobre mim"46. Enquanto

princípio gerador que se fixa num todo inerente ao fazer, ao agir e ao criar, o Desejo pertence quer à realidade social do sujeito, quer à singularidade que o diz incontável e quer ainda àquilo que não se reduz a uma simples que Ortega y Gasset considera sobre a situação a que o estudante é confinado, num contexto em que a necessidade do saber o obriga ao fingimento: "(...) seria encantador que, ser estudante, significasse sentir uma vivíssima urgência por este ou por aquele saber. Mas na verdade, é estritamente o contrário: ser estudante é ver-se alguém obrigado a interessar-se directamente por aquilo que não o interessa ou que, em última análise, o interessa apenas de forma vaga, genérica ou indirecta." (p.94). "(...) quanto mais o saber aumenta, quanto mais se enriquece e especializa, mais longínqua será a possibilidade de que o estudante sinta uma necessidade imediata e autêntica desse saber." (p.98). "(...) o estudar é, portanto, um fazer humano que se nega a si mesmo, que é simultaneamente necessário e inútil. Há que estudar para alcançar um certo fim, mas afinal esse fim não se alcança desse modo. É justamente por isso, porque as coisas são simultaneamente verdade - a necessidade e a inutilidade - que o estudar é um problema." (p.100).

parte de um todo, antes ao que evita a conversão desse mesmo todo num sistema fechado que o conduziria à indiferenciação. Desejo de um lugar, ele dá o lugar à existência de comportamentos insondáveis numa latitude existencial que, no entanto, se quis dizer natural(izada), isto é, desejo que também teve e tem de contar com a interdição, sobre o aviso de que os comportamentos que estão na sua base encaram sempre um padrão fundamental, essa Lei que traça os limites do aceitável, a numeração da moral e do prazer.

Ao contrário do Desejo, a satisfação da Necessidade é vista como algo que cumula um vazio. Todavia, também é possível, na esteira de Emmanuel Levinas, entendermos a necessidade na lógica da transcendência da realidade, o que quer dizer que existem necessidades que não são precedidas de um sofrimento ou de uma carência, precisamente porque residem num ser que tem em si a ideia de infinito. Do mesmo modo que o autor considera que o Desejo é absolutamente não- egoísta (porque se constrói com o Outro), admite-se que a necessidade é o primeiro movimento do Mesmo, é também uma dependência em relação ao outro, mas que é atravessada - a dependência - pelo tempo: a necessidade manifestada pela dependência do outro é mais uma suspensão ou um adiamento da própria dependência e, por isso, contém em si a ideia de possibilidade de, "(...) pelo trabalho e pela economia (...) quebrar a ponta de alteridade de que depende a necessidade."47. É portanto nesta linha

que podemos pensar uma necessidade que será também o tempo do trabalho, uma relação com um objecto numa determinada relação tempo- espaço. Mas precisamente por se encontrar ligada a uma lógica de trabalho, aliás como Levinas assinala, e por evocar um estatuto de dependência em relação ao mundo (tenho fome, sinto frio, preciso de abrigo, quero coisas, etc.), a necessidade acabará por ser responsável pela separação do ser necessitado em relação às "anónimas ameaças" do mundo que conhece, tornando-o assim como que num ser subjectivamente independente desse mesmo mundo - sujeito capaz de assegurar a satisfação das suas inteiras necessidades, reconhecidas como materiais, e 47 id.,p. 101

por isso mesmo, susceptíveis de satisfação: as necessidades estão em meu poder, constituem-me enquanto sujeito e não enquanto dependência de um Outro.

Como foi ainda há pouco referido, Levinas assegura então que a necessidade manifestada pela dependência do objecto é mais uma suspensão ou um adiamento da própria dependência que é o tempo de que ela mesma necessita e que lhe é fornecido pelo Desejo. Mas, por outro lado, ao admitir-se que a necessidade "(...) atesta o vazio e a falta do necessitado, a sua dependência em relação ao exterior, a insuficiência do ser necessitado, precisamente porque não possui de todo o seu ser..."48,

supõe-se que pela sua existência, ainda que representada, ela torna-se numa espécie de exigência do sujeito, aparecendo, de facto, na aspiração e na resposta à carência que o sujeito é. Assim sendo, a necessidade não pode ser entendida apenas na base de que serve a cumulação do vazio, ou seja, ela não poderá ser assumida no quadro de uma alegada passividade (porque sobrevive à custa do objecto que a anima), nem será tampouco a pura realização de uma liberdade (porque também é dependência). Por

outras palavras,

"(...) conceber a necessidade como simples privação é captá-la no seio de uma sociedade desorganizada, que não lhe deixa um tempo, nem consciência."49

quando a verdadeira posição do sujeito consistirá em saber interromper essa sociedade, em cessar a organização de um tempo através do empreendimento de novos começos: o desconhecido de uma sociedade que me é possível captar deixa de fazer parte desse desconhecido outro para passar a integrar as minhas próprias forças, tornando-se neste eu, que é a condição de um sujeito. Este sentido de Necessidade diz-se muito próximo então de um reaparecimento da sua percepção mais associado a um

sentido que dificilmente a coloca no apoio ao Desejo; porque o Vazio faz a antecipação da própria satisfação da necessidade.

Mas foi certamente nas perturbações de uma Psicanálise ainda algo secreta, mas paradigma revolucionário do inicio do séc. XX, que a importância do conceito de Desejo passou dos silêncios de uma Ciência Normal para os quotidianos de um público também ele culturalmente normalizado, insistente e voraz na mistificação das palavras, mas audaz na cristalização desse conceito que a Ciência se revela incapaz de objectivar. E por isso, tudo aquilo que provoca e antecede o contraste com o mito no qual um sujeito e uma sociedade convivem nas confidências de uma sublimação perfeita, torna-se objecto de cepticismo para aquela que é considerada a "ciência indiscreta" do sujeito, tomando o exemplo dos termos de MarcuseSQ; porque o que Freud deseja acima de tudo, ao analisar o Desejo, é quebrar a (sua) retórica.

Assim, quanto ao facto de o desejo adivinhar uma concepção de sujeito que é desejo de outro desejo, concepção revestida, além disso, nas estruturas trágicas do destino e da proibição imersas na dimensão cultural, a ciência psicanalítica é hoje considerada uma ciência de ruptura face à predominância das crenças numa ideia de sujeito que seria exclusivamente dotado de uma racionalidade consciente, controladora, por isso, de toda e qualquer força pulsional (ou, na linha freudiana, do desejo). Percorrendo os "rostos inanimados" dos objectos, tendo o signo do inconsciente, o desejo coloca-se para além das marcas da satisfação e da s» Marcuse, Ludwig (s/d). Freud e a Psicanálise. Lisboa: Livros do Brasil. Sobre esta indiscrição, Marcuse escreve, contudo, que a resistência de Freud à auto-psicanálise - dar de si o seu elemento mais indiscreto - acaba por tornar aquela "ciência indiscreta", uma ciência preconizada por esse mesmo Freud que lamentava o facto "(...) da boca sempre se cala[r] ao dizer o mais íntimo", num forte instrumento de usurpação do mundo tímido dos outros, sempre no silêncio de quem o deseja usurpar. Transcrevemos aqui uma passagem sobre a atitude de Freud perante as tentativas de intromissão na sua vida privada: "Não suportava que o fitassem com insistência; era esse também o motivo pelo qual se sentava por detrás da cadeira do paciente. Preferia causar uma impressão desfavorável a sacrificar fosse o que fosse da sua vida espiritual. Eis porque, e unicamente por isso, não se punha para ele o problema em se deixar psicanalisar. Uma das suas desculpas era a seguinte: «ainda sou de opinião que para um homem sonhador que não seja demasiado anormal, a auto-análise, ajudada pela interpretação dos sonhos, é quanto basta». Doutra vez escusou-se alegando que todos os psicanalistas eram seus discípulos o que o impossibilitava de se submeter a uma análise. 0 homem cuja psicoterapia tem por fundamento a entrega do mais recôndito, dos mais íntimos segredos, não estava disposto a realizar por si próprio essa entrega." (pp. 24-25).

insatisfação e a sua nomeação revela-se impensável. O seu movimento aproxima-se do indizível, fenómeno que em Sarte só pode existir "(...) como consciência não-posicional de si mesmo no mundo"5*, ou em Lacan como

experiência subjectiva que

"(...) implica sempre no âmbito de si mesma a emergência de uma verdade que não pode ser dita, já que o que a constitui é a palavra, e seria preciso de alguma maneira dizer a própria palavra, o que é, propriamente falando, o que não pode ser dito enquanto palavra. (...) A palavra não se pode apreender a si mesma, nem apreender o movimento de acesso à verdade, enquanto verdade objectiva. Ela apenas a pode exprimir - e isto, de um modo mítico."52

Ao contrário da necessidade, o Desejo reúne como que uma presença inapreensível que lhe dá essa imagem da infinitude, porque se o considerarmos, por um lado, na transcendência, isto é, no momento em que o sujeito se volta para um desejado invisível que implica uma outra ordem de relações com o que não lhe é dado e do qual ele não possui ideia, e por outro, na interrogação, ou seja, na interpelação do objecto, o Desejo antecipa uma formulação da realidade a superar-se e a completar- se. De facto, a dimensão projectual do Desejo não está apenas relacionada com a (auto)projecção do sujeito no objecto que deseja, mas também com o sentido da acção que por si é desenvolvida sobre uma determinada realidade presente. O Projecto, que não é senão o desejo do Futuro, implica uma permanente vigia sobre as condições de realização do Presente, no sentido do aclaramento do que (lhe) é ausente, por ura lado, e do "culto" da acção cumpridora do (lhe) que falta, por outro.

As condições de possibilidade de interacção entre sujeito-objecto, pela via do Projecto, contêm por isso a antecipação enquanto modo de se representar o que falta e que é, por isso, insuficiente. O intuitivamente esperado é, neste sentido, intrínseco a um tipo de conduta que antecipa o futuro e este, mediante a realização de um acto, seria o que se espera 51 Sartre, Jean-Paul, op. cit., p. 481

realizar e cumprir. Há, portanto, n a s origens fundadoras do projecto aquilo que Alfred Shutz diz ser representações intuitivas que não são senão as fantasias que o projecto de u m a acção representa; sendo assim, o projecto não é n u n c a a realidade de u m a actividade em si. Formulado n a base de u m a intencionalidade, o projecto possui sempre u m a conexão com o significado d a relação do sujeito com o que interpreta como sendo o algo a completar, não sendo então possível que se pense o projecto como u m todo finalizado, j á que, pelos actos a cumprirem-se, ele vai-se realizando de m o m e n t o a m o m e n t o face ao futuro. É de acordo com este sentido que Shutz a d i a n t a que u m a acção carece sempre do significado que lhe é impregnado pelo projecto que a. define. O facto de existir u m a tendência para a p e n a s se considerar o meio necessário e presente n a formulação de u m projecto - isto é, u m acto cumprido - como se este fosse respeitante a u m fim ou a u m acto total, retira toda a dimensão subjacente ao

significado que, p a r a o autor, não fosse ele u m fenomenologista, é

premissa de compreensão d a unidade da acção, sempre subjectiva, a existir no projecto. É particularmente esclarecedora a ideia exposta por Shutz, segundo a qual

"(...) o projecto de uma acção realiza-se, em princípio, independentemente de toda a acção real. Todo o projecto de acção é mais uma fantasia da acção, isto é, uma fantasia da actividade espontânea, mas não a actividade em si mesma. É um quadro prévio de carácter intuitivo que pode incluir a carência ou não, e se a inclui, pode tratar-se de uma crença positiva ou negativa, ou dotada de qualquer grau de certeza.""

Tratando-se de u m a representação d a acção, o Projecto antecipa a realidade de acordo com o Desejo de tornar presente a realidade dos próprios objectos. Por estar ligada ao futuro, a antecipação é vazia no que toca à s u a qualidade de protensão, porque carece do objecto que a poderá realizar. Nesta medida, o que define o desejo e a acção do projecto é u m

» Shutz, Alfred (1993). La Construction Significativa dei Mundo Social: introduction a la sociologia comprensiva. Barcelona: Ed. Piados Ibérica, p. 89

tipo de conduta que antecipa o futuro em forma de pretensão vazia e este é apenas o que ainda vai ser realizado, uma esperança de acção cumprida: por outras palavras, Desejo e Projecto re-apresentam constantemente o objecto, a partir de uma não-presença, isto é, o Vazio do próprio objecto.