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Deriva 1. Uma realizadora à procura de uma personagem

1.4. Desencontros entre uma realizadora e as potenciais personagens

Todas as nove mulheres com as quais conversei sobre o projeto mostraram interesse em participar dele. Com cada uma, vislumbrei realizar um filme diferente. Poderia, facilmente, rascunhar um guião para nove diferentes longas-metragens. Cheguei, inclusive, a esboçar alguns deles. Finalmente, avizinhava-se a possibilidade de ser acompanhada por alguém que

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construiria o filme comigo. Seria, ao meu ver, uma questão de tempo até que as relações estabelecidas começassem a se fortalecer. Esclareço que não considerava um problema se mais de uma pessoa decidisse trabalhar ao meu lado, pois o mais importante, naquela altura, era ter os sins proferidos por uma ou mais das pessoas com as quais matinha contacto. No meu entendimento, seriam necessários pequenos ajustes para se efetivar uma criação partilhada entre duas, três ou mais pessoas.

Sugeri a cada uma delas, então, que nos encontrássemos mais vezes e fossemos construindo, conjuntamente, um argumento para o filme. Planeava ouvir delas o que importava sobre a sua profissão; as técnicas que precisaram desenvolver para exercerem o ofício; os seus posicionamentos em relação a legalização do trabalho sexual. Solicitei, também, que me fizessem perguntas sobre o trabalho da realização; as ferramentas envolvidas na construção de um filme; as minhas ideias iniciais sobre o filme que faríamos juntas. Foi, então, que surgiu o terceiro obstáculo desta deriva. Pouco a pouco, a maioria das mulheres e eu fomos afastando-nos.

Relativamente a quatro delas, existia uma limitação de ordem económica: a falta de recursos financeiros que as pudessem trazer a Lisboa. Mas existiram também restrições pessoais de ambos os lados. No caso delas, o interesse inicial não se sustentou diante das mazelas das suas vidas quotidianas ou, então, elas evidenciavam que as escolhas e propostas para o argumento deveriam ser de minha responsabilidade. Mas a dispersão originada por mim foi ainda mais prejudicial: acriticamente, comecei a estipular uma hierarquia entre as mulheres que havia conhecido.

Em nome da suposta relevância para o filme que seria criado, comecei a ter predileção por uma ou outra pessoa com quem havia conversado. A justificativa para tal atitude pautava- se na crença de ser imprescindível que eu nutrisse algum tipo de interesse específico por aquela que não deixaria de ser a personagem de um filme que eu também realizaria. Afinal, até aquela altura, tinha sido isso o que havia apreendido com a prática fílmica. Assim, num primeiro

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momento, a minha inclinação voltou-se para as que possuíam um interesse pelo ativismo a favor do trabalho sexual. Seriam duas as que poderiam trazer tal característica ao filme, ambas residentes no Brasil. Mas com a falta de recurso financeiro, trabalhar com elas tornou-se inviável. Busquei, então, outras temáticas que pudessem me interessar.

Uma vez que, nos últimos anos, por conta dos meus filmes predecessores, havia me aproximado dos estudos relativos à identidade de género, encontrei um lugar promissor em tais questões. Diante deste meu interesse particular, uma das pessoas residentes em Portugal foi uma das minhas predileções. Cláudia Martins, mulher trans44, acompanhante de luxo, tornou-se a pessoa ideal para realizar o filme ao meu lado. Ela possuía maior recurso financeiro que eu; tinha vivido na mesma cidade na qual eu nasci — a ponto de conseguir pronunciar o português com o mesmo sotaque que o meu —, possuía, também, um discurso construído, nitidamente, influenciado por um percurso académico. Ademais, foi a única pessoa que mostrou total desprendimento quando soube que eu precisaria aprender as técnicas do trabalho sexual. Sem nenhuma observação restritiva quanto a isso, disse-me que estaria disponível a me iniciar na profissão.

Todas essas particularidades, pareciam poder auxiliar a diminuir a subordinação do saber dela diante do meu, problema que necessitaria, certamente, continuar a ser tratado no processo que se aproximava. Confiante que havia encontrado a personagem para o filme, acordamos em iniciar os encontros para desenvolvermos juntas um argumento, pensarmos sobre as imagens que poderíamos construir a partir da permuta das ferramentas das nossas duas profissões.

Devido ao excesso de trabalho de Cláudia Martins, optamos por iniciar a elaboração do argumento por meio de videochamadas. Em duas semanas, foram dois os encontros, com cerca de quinze minutos cada. Ambas as conversas foram interrompidas constantemente por

44O termo trans é uma abreviatura do vocábulo transgénero ou transexual. Uma mulher trans é uma pessoa que se identifica — nas diferentes esferas que constituem a sua vida — como sendo do género feminino, embora, ao nascer, tenha sido designada como pertencente ao género masculino.

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chamadas telefónicas de clientes. Evidenciou-se, então, a necessidade de encontros presenciais, de preferência num estúdio, para que pudéssemos estar próximas das câmaras, dos microfones, para investigarmos as possibilidades de iluminação, de adereços, de guarda roupa.

Marcado o primeiro ensaio em estúdio, Cláudia Martins não apareceu. Até aquele instante, nenhum gesto dela havia feito com que eu suspeitasse de uma desistência planeada. No dia do tal encontro em estúdio, ela havia enviado mensagens de texto a dizer que se atrasaria, mas que chegaria a tempo de nos encontrarmos. Em momento algum, depois do ocorrido, Cláudia Martins voltou a responder às minhas mensagens ou telefonemas.

Evidenciou-se, assim, que o facto de ela ter concordado preteritamente em fazer o filme apresentava-se como uma falsa solução para o problema enunciado anteriormente: conseguir ser a outra da outra. O projeto não tinha se tornado nosso, continuava a ser tão somente meu. E por isso, independente de qual fosse o motivo que a tivesse feito desaparecer, a justificativa fundamental encontrava as suas bases no facto do projeto nunca ter chegado a ser dela.

Por mais que soubesse ser necessário ser escolhida por uma das mulheres contactadas por mim, dobrando-me às suas premissas e por mais que elas dissessem estar dispostas a construir o filme comigo, a naturalização dos papéis que deveríamos desempenhar à partida — realizadora e personagem —, nos impedia de ocupar o lugar uma da outra. A identificação naturalizada dessas duas funções precisaria ser ultrapassada para que fossem escavadas frestas para outros tipos de dinâmicas surgirem. Mas eu não tinha pista alguma de como efetivar tal superação e o pior, a travessia encontrava-se interrompida, pois já não éramos duas a construir o argumento. Sem uma personagem interessada pela realização, a construção fílmica perdia o seu propósito.

Diante de um estúdio reservado para os ensaios e um segundo para o início das filmagens, além de um cronograma, que a essa altura contava com quatro meses de atraso, não via outra alternativa a não ser renunciar ao projeto. Como alguns haviam prognosticado, o filme que pensara construir parecia impossível de ser realizado. Do mesmo modo, a

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investigação intentada estaria em risco de ser extinguida, uma vez que ela só fazia sentido diante da fabricação fílmica. Naquele momento crítico, com a ajuda da pequena equipa45 que me acompanhava, afigurou-se a necessidade de, antes da derrocada final, serem identificadas outras possibilidades para se encontrar uma pessoa para construir o filme comigo. Ainda se todas as promessas se esgotassem, eu poderia reflexionar sobre a impossibilidade de realizar um filme da forma como a pretendida aqui, fixando-me, assim, somente na vertente textual da investigação.