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Deriva 1. Uma realizadora à procura de uma personagem

1.2. O primeiro fragmento da bússola: o efeito de estranhamento

Do teatro, tomei emprestado o primeiro mote que compôs parte da bússola que guiou esta travessia investigativa. Tal mote, partiu do efeito de estranhamento proposto por Bertolt Brecht, mas não se limitou a ele, uma vez que os deslocamentos exigidos por cada deriva, pressupuseram também desvios nos motes que as ampararam. Em todo o caso, torna-se imprescindível explicitar o legado deixado por Brecht para esta investigação.

Embora praticada por outros encenadores, foi Brecht quem sistematizou, nas primeiras décadas do século XX, uma rede de pressupostos cênicos que juntos comporiam o que ele chamou de Verfremdungseffekt34. Nas palavras dele: «o teatro tem que fazer com que o público fique assombrado, o que conseguirá se utilizar uma técnica que distancie de tudo o que é familiar» (Brecht, 1978, p.117). Diametralmente oposto ao chamado teatro dramático, o desafio que Brecht propõe a si e às atrizes e atores é o de criar espetáculos onde se torna claro que o que ocorre no palco se trata de uma representação teatral e não da vida propriamente dita.

Por meio de uma série de expedientes cénicos, o intuito é que as pessoas da plateia se distanciem emocionalmente da história representada no palco para que, assim, possam ter uma postura mais crítica diante das mazelas sociais retratadas em tais espetáculos. As interrupções, ocorridas ao longo da apresentação, são geradas por qualquer elemento que compõe um espetáculo teatral: texto, cenografia, adereços, maquiagem, composição sonora

34 No original em alemão, o Verfremdungseffekt. também conhecido por V-Effekt. Em língua portuguesa, pode ter as seguintes traduções: efeito de distanciamento (grafia do Brasil), efeito de distanciação (grafia de Portugal), efeito de estranhamento ou, ainda, Efeito V. Indico, a esse respeito, a compilação de textos de Brecht editados pela Nova Fronteira, com o título de Estudos sobre Teatro (1978).

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ou atuação. Assim, tais interrupções tornam-se responsáveis por levar a uma observação atenta e distanciada de práticas naturalizadas em sociedade. A esse respeito, referencio um dos poemas de Brecht, intitulado Nada é impossível de mudar (2009, p. 90):

Desconfiai do mais trivial, na aparência singelo.

E examinai, sobretudo, o que parece habitual. Suplicamos expressamente:

não aceiteis o que é de hábito como coisa natural, pois em tempo de desordem sangrenta,

de confusão organizada, de arbitrariedade consciente, de humanidade desumanizada,

nada deve parecer natural

nada deve parecer impossível de mudar

Desse modo, com o efeito de estranhamento, Brecht intenta, nas palavras de Alexandre Mate «possibilitar ao espectador uma crítica fecunda, dentro de uma perspectiva social» (2005, p. 74), com o objetivo de distanciar a pessoa da situação social apresentada no palco e, assim, «tornar extraordinário (não-natural ou desnaturalizar); [...] mostrar o mundo como passível de ser mudado. Instaura a dúvida e faz com que o natural possa ser revisto» (Idem, p. 11).Por meio de hiatos instaurados pela encenação, as pessoas da plateia seriam convidadas a permanecerem alertas e a posicionarem-se criticamente diante dos acontecimentos cênicos.

Como Walter Benjamin menciona em seu O que é teatro épico? Um estudo sobre Brecht, «o que está acontecendo [hoje com o teatro] é, simplesmente o desaparecimento da orquestra. [...] o palco ainda ocupa na sala uma posição elevada, mas [...] ele transformou-se em tribuna» (1987, p. 78). Não há dúvida que Brecht foi um dos representantes de maior destaque do teatro como tribuna evocado por Benjamin, uma vez que, ao desenvolver estratégias rumo a um tipo de teatro chamado por si por épico, Brecht considera ser responsabilidade das fazedoras e fazedores de teatro incitar um pensamento crítico naqueles que assistem aos espetáculos. Em outras palavras, para Brecht existia uma nítida separação entre quem deve

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levar a consciência ao outro — nesse caso, as pessoas que se encontram no palco — e as que devem ser conscientizadas — as situadas na plateia.

De maneira insubordinada, mas, ainda assim, seguindo os pressupostos do efeito de estranhamento formulados por Brecht, propus, então, um deslocamento da ideia original dele, rumo às especificidades desta investigação. Assim sendo, ao invés de objetivar que o efeito de estranhamento afetasse a outra pessoa, aquela apartada do processo de criação, almejei encontrar mecanismos para se estranhar os processos naturalizados pela prática cinematográfica. Considerava que, uma vez, sendo capaz de espantar-me diante daquilo que me parecia ser habitual no campo fílmico — ao invés de oferecer uma visão crítica para as pessoas da plateia ou para a pessoa atuante —, poderia efetivar minha própria emancipação. Somente então, poderia ser capaz de acompanhar a emancipação da outra pessoa.

Desde esse ponto de vista, o papel que eu deveria desempenhar enquanto realizadora, não seria mais o de suprimir a distância entre o meu saber acerca do aparato fílmico e a ignorância da personagem a esse respeito. Também, não caberia a ela tão somente se expor diante da câmara. Se é verdade que «o sujeito [filmado] sabe que ser filmado significa se expor ao outro» (Comolli, 2008, p. 81), aqui, o mostrar-se não equivaleria mais a um prestar-se ou um oferecer-se ao olhar da realizadora ou do realizador, tão pouco a personagem estaria apartada dos meios de fabricação fílmica. Antes, a pessoa atuante seria possuidora de um olhar privilegiado, aquele capaz de ver, com um certo distanciamento, a sua própria imagem refletida no convexo da lente da câmara apontada para si, ao mesmo tempo que testemunharia a realizadora sentada em sua cadeira a questionar aspetos que, até então, lhe pareciam naturalmente condizentes com o fazer cinematográfico.