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O Desenho como base educacional, técnica e industrial: o caráter prático e profissional do seu ensino

OS VÁRIOS DESENHOS DE RUI BARBOSA NA ORGANIZAÇÃO RUDIMENTAR DESSE SABER ESCOLAR

2.4 As finalidades pedagógicas e sociais do Desenho em Rui Barbosa

2.4.2 O Desenho como base educacional, técnica e industrial: o caráter prático e profissional do seu ensino

Ao perceberem potencialidades em todas essas recomendações anteriores, muitos países abriram espaço para o ensino do Desenho na educação popular, após metade do século XIX, por meio de reformas de instrução elementar. Seu poder foi tão imprescindível que alcançou até os institutos técnicos, as escolas de ofícios, os ginásios etc. Era o desenho a base do sistema de instrução escolar. Como demonstração da veracidade de todo esse poderio, Rui Barbosa cita vários países que avançaram nessa “corrida” instrucional, a partir da implementação do Desenho nas escolas primárias. Exemplos disso foram a Alemanha, a França, a Áustria, a Inglaterra, a Hungria, a Prússia, os Estados Unidos, entre outros. Apresentando resultados significativos na produção industrial por causa da inserção do desenho e da arte, esses países reconheceram o desenho como um instrumento educativo, princípio fecundante do trabalho e umas das bases primordiais da cultura escolar e propulsoras do desenvolvimento econômico dos Estados (BARBOSA, 1946).

Todavia, Rui Barbosa percebe que, no Brasil, o movimento de difusão do ensino do Desenho ocorreu de forma atrasada e lenta. E uma das primeiras críticas feita por ele, a partir da leitura do relatório da exposição de 1876 na Filadélfia, baseou-se na ingenuidade de achar que dispor de excelentes professores especiais de desenho, ter bons cursos e boas escolas fossem elementos suficientes para resolver o problema. A gravidade era ainda maior.

[...] vivemos ainda, no Brasil, sob o domínio do erro crasso que vê no desenho uma prenda de luxo, um passatempo de ociosos, um requinte de distinção, reservado ao cultivo das classes sociais mais ricas, ou à vocação excepcional de certas naturezas privilegiadas para as grandes tentativas de arte. Não percebem que, pela simplicidade das suas aplicações elementares, ele tem precedência à própria escrita; que representa

um meio de fixação, reprodução e transmissão de ideias indispensável a todos os homens, e especialmente indispensável às classes laboriosas [...] (BARBOSA, 1946, p. 108-109).

Por essa citação, percebemos que o Desenho, além do que fora explicitado anteriormente, estava a serviço da formação de “classes laboriosas”, ou seja, a serviço das classes trabalhadoras. Era, portanto, elemento imprescindível da cultura geral em todos os graus e base de toda educação técnica e industrial. Nessa “nova sociedade”, além do saber ler, escrever e contar, era necessário saber desenhar. Por exemplo: para o operário, a aprendizagem do desenho era tão necessária quanto a leitura e a escrita. Entendimento este reforçado por Wanderhagen (1880), em relatório apresentado em 1880 no congresso internacional de ensino em Bruxelas: “[...] a eles [os operários] o desenho é mais necessário do que uma e outra [leitura e escrita]; visto como pode-se saber o ofício, e ser hábil artífice, sem ler, nem escrever; mas não, sem compreender o desenho” (WANDERHAEGEN apud BARBOSA, 1946, p. 122, grifos do autor).Em consonância com o que já foi verificado pelas pesquisadoras Mormul e Machado (2013), Rui Barbosa acreditava que o ensino do Desenho “teria papel fundamental no desenvolvimento da indústria e, consequentemente, o Brasil deixaria de ser fundamentalmente agrícola, ou seja, a introdução do ensino de Desenho iria promover a expansão da indústria nacional” (MORMUL; MACHADO, 2013, p. 285).

Em concordância também com Souza (2000), o entusiasmo de Rui Barbosa pelo ensino do Desenho fazia eco à opinião dos industriais, dos pedagogos e de autoridades do ensino dos países mais avançados, que viam a potencialidade de escolarização desse saber profissional para o crescimento econômico do próprio país. Em outras palavras, “a esse conteúdo foi atribuída uma finalidade essencialmente prática que se ajustava às necessidades da indústria e da arte [...] Tratava-se, sobretudo, do domínio de uma aprendizagem técnica, profissional” (SOUZA, 2000, p. 18, grifos nossos). Neste caso, notamos que houve, por parte de Rui Barbosa, um enorme interesse em transformar culturas profissionais, atreladas notadamente às profissões dos industriais, operários e artistas, em cultura escolar para o alcance da população menos instruída. Neste contexto de natureza formativa, o desenho era visto como um lugar da precisão, uma necessidade intrinsecamente social para a preparação e formação deste homem moderno. Essa é, sem dúvidas, uma finalidade marcante na apropriação revelada pelo reformador baiano cujo ensino do Desenho se ligava à vida prática, entendendo-o como um saber que deveria dar suporte à economia nacional, à prosperidade do país.

[...] fundamental do saber em Desenho seria embasar um ensino técnico, servindo assim de suporte à industrialização do país e, como conhecimento disciplinarizado, reunia as possibilidades para promover as mudanças necessárias ao país. O Desenho ensinaria o indivíduo a ver, a pensar, a comunicar, a produzir, e ensinaria a encarar a vida, a inventar e a libertar a mente. Requisitos próprios para o bom desenvolvimento do produto final que auxiliaria a economia nacional (TRINCHÃO, 2008, p. 381).

Parece-nos que esse despertar para o papel que poderia exercer o ensino de algumas matérias do curso primário, como o Desenho, numa sociedade que necessitava escolarizar, instruir e civilizar sua população (FARIA FILHO, 2000), trouxe consigo impactos importantes para a educação pública. Em meados do século XIX, segundo Valdemarin (2004), a escola sofreu críticas que foram além do seu aspecto metodológico. Na opinião dessa autora, a ineficiência dessa escola provocou também

[...] uma defasagem em relação ao desenvolvimento econômico, que explicaria, até mesmo, o alto nível de desemprego e os baixos salários então existentes, uma vez que o trabalho industrial demanda indivíduos letrados e capazes de raciocinar rápido e criativamente. Afirma-se ainda que a escola tem uma função essencial para a política e estabilização do regime republicano dado que, com o sufrágio universal, o Estado necessita de cidadãos que saibam ler, escrever, compreender e pensar, sendo ainda capazes de perceber as virtudes da organização social alcançada até aquele momento, aspectos dos quais a instituição escolar tem descurado. Essas críticas, embora apontem suas falhas, consideram a escola primária como a peça fundamental para a difusão do sistema de valores burgueses, devendo a eles adequar-se cultural e economicamente (VALDEMARIN, 2004, p. 103-104).

Portanto, é no contexto desse processo crescente de desenvolvimento econômico, já bem-sucedido em alguns países europeus, que a escola brasileira se vê confrontada a repensar os seus valores. Como afirmou a supracitada autora, a demanda social reclamava cidadãos letrados, capazes de raciocinar rápido e criativamente; que lessem, escrevessem, compreendessem e pensassem. Ou seja, que a escola tivesse a função de contribuir socialmente para a formação integral desses cidadãos.

Souza (2000) nos dá uma pista de que nas disputas e debates que marcaram a configuração do currículo do ensino primário e secundário no Ocidente, no decorrer do século XIX, “estiveram em jogo a substituição de uma cultura literária pela cultura científica no ensino secundário e a difusão de conhecimentos úteis de natureza social, moral e cívica no ensino primário” (SOUZA, 2000, p. 14, grifos nossos). O ensino secundário, de cultura geral, servia de formação das elites enquanto que o segundo, o ensino primário, esteve voltado para a formação de trabalhadores (SOUZA, 2000).

Mais adiante, tomando como suporte teórico o estudo de Hébrard (1990), Souza (2000) explica que em relação ao ensino primário, assim como ler, escrever e contar foram resultados da escolarização de saberes profissionais,

[...] pode-se dizer que, no século XIX, assistimos à escolarização de vários outros saberes sociais, além do conhecimento científico, como, por exemplo, a ginástica, a música e o canto, os valores morais e cívicos, desenho, a escrituração mercantil, os sistemas de pesos e medidas, as noções de horticultura e arboricultura, os trabalhos manuais, a higiene, a puericultura, a economia doméstica, entre outros (SOUZA, 2000, p. 15, grifo nosso).

A citação acima só reafirma aquilo que vem sendo dito neste capítulo: o ensino do Desenho em Rui Barbosa, além de ser visto como um saber escolarizável, leva consigo características de um ensino prático, de formação para a vida. Essa era, portanto, uma forte representação de que uma das finalidades do ensino do Desenho consistia em atender as demandas de ordem mais prática, mais profissional, sem caráter de um saber avançado. Marca indelével da concepção do rudimentar.

Deste modo, Rui Barbosa entendia o ensino do Desenho como uma base para a instrução técnica, artística, industrial e educacional, visto que a faculdade de desenhar é também um resultado da educação. Para ele, o elo estabelecido entre a escola primária e a Escola Normal Nacional deveria ter como objetivo “[...] fornecer aos adultos, o curso completo do desenho elementar, desde as primeiras bases geométricas até o desenho ornamental e o de figura; tudo subordinado ao caráter de aplicação industrial que domina todo este sistema” (BARBOSA, 1946, p. 195). Baseando-se no movimento que se generalizou pelos Estados Unidos, Rui Barbosa chegou à seguinte conclusão: “negar, portanto, um lugar inauferível e de primeira plaina ao desenho na escola popular desde os graus mais elementares, é dar cópia de uma ignorância absoluta, ou de uma incompetência incurável no exame dos elementos da questão” (BARBOSA, 1946, p. 140).

Constatamos, portanto, que a importância do que é ensinado para a vida prática se constituiu como um veio fértil para a defesa do ensino do Desenho em Rui Barbosa. Advogando que o ensino deste saber era essencial para o crescimento econômico do país, Rui Barbosa rompe definitivamente com a ideia de que o Desenho deveria servir de base para conceitos mais avançados, isto é, mais de ordem cientifica, com caráter de ciência. Para ele, o ensino do Desenho deveria proporcionar conhecimentos úteis para a vida dos alunos na busca por uma formação pessoal e integral do sujeito com possibilidades de aplicação desse conhecimento nos afazeres do dia a dia. Sendo assim, Rui Barbosa esteve muito mais ligado à corrente empirista

da qual fizeram também parte Basedow e Pestalozzi, grandes ícones do movimento da pedagogia moderna baseada no método intuitivo ou lições de coisas. Rui Barbosa inaugura uma novidade que é pensar no saber Desenho a partir dos rudimentos, ou seja, com vínculo na vida prática e não mais como elementos, como aquele que é dependente do avançado, de caráter propedêutico.

Neste caráter terminal do ensino do Desenho em Rui Barbosa, as finalidades de ordem pedagógica e social apontadas dizem muito sobre a expertise em assuntos educacionais desse autor. Assim, ao incorporar um discurso internacional baseado em leituras estrangeiras e tendo em vista a defesa por uma educação para as massas populares e de uma consequente modernização do Brasil, em face do seu atraso na comparação a outros países, Rui Barbosa assinala o ensino do Desenho como essencial para pensar o nosso progresso e desenvolvimento social, econômico e, sobretudo, educacional.

Esse ambicioso projeto de modernização do país encabeçado por Rui Barbosa “colocava a escola como central na formação da realidade educacional entendida como inserção na sociedade capitalista” (SOUZA, 2009, p. 82). No entanto, o que se esperar desta escola e do ensino do Desenho no período da chamada Primeira República (1889-1930) no qualgovernantes e representantes do setor oligárquico de São Paulo investem na organização de um sistema de ensino modelar (CARVALHO, 2000) constituído pelos grupos escolares? Portanto, como nesse contexto de reordenação dos tempos e espaços escolares, de ampliação do currículo e de redefinição do lugar ocupado pela escola (VIDAL, 2006), o ensino do Desenho continua aparecendo nas normativas oficiais do período? Com as mesmas finalidades anteriores? A resposta a tais questões será dada por meio da documentação levantada do Estado de São Paulo.

CAPÍTULO 3

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AJUSTE DO OLHO E DA MÃO VERSUS DESENHO DO NATURAL: OS