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O ensino do Desenho como facilitador e auxílio às outras matérias da escola primária

OS VÁRIOS DESENHOS DE RUI BARBOSA NA ORGANIZAÇÃO RUDIMENTAR DESSE SABER ESCOLAR

2.4 As finalidades pedagógicas e sociais do Desenho em Rui Barbosa

2.4.1 O ensino do Desenho como facilitador e auxílio às outras matérias da escola primária

Sobre o primeiro item da lista anterior, conforme Rui Barbosa: “[...], as aptidões, de que depende o seu estudo [referindo-se ao desenho], são comuns a todos os entendimentos, e de uma vivacidade particularmente ativa nos primeiros anos da existência humana” (BARBOSA, 1946, p. 109, grifos nossos). Isto é, independente de aptidão, todo mundo poderia, de fato, acessá-lo. Portanto, essa defesa de que o Desenho poderia ser ensinado a todos, sem exceção, desfazia, assim, a ideia de que somente os espíritos mais esclarecidos teriam condições de aprendê-lo. A isso alia-se o que foi declarado no item 3, já que com o auxílio dele, bastariam os materiais mais simples e o menor emprego de força física, para discernir fácil e rapidamente o que o menino por si só seria capaz de fazer.

Já em relação ao segundo item, é válido destacar a crítica sobre o lugar que ocupava o ensino do Desenho na escola primária brasileira nos anos oitocentistas. Para o intelectual baiano, nos programas em voga (ao que tudo indica remetendo-se à Lei de 1827 e ao Decreto instituído por Leôncio de Carvalho em 1879), a leitura e a escrita formavam o primeiro estágio do ensino.

Com base em Walter Smith, grande organizador do ensino do Desenho em Massachusetts, Rui Barbosa insiste nesta ideia.

No desenho e na escrita o bom êxito depende da mesma faculdade, - a faculdade de imitação, sendo porem, o desenho, como mais simples, nos seus elementos, do que a escrita, mais facil de adquirir do que ela. Está hoje amplamente demonstrado que quem pode aprender a escrever, pode aprender a desenhar, e onde estas disciplinas se ensinam simultaneamente, uma à outra se ajudam [...] (SMITH apud BARBOSA, 1946, p. 113, grifos do autor).

Isto é, “o homem escreveu, está claro, antes de ler. A leitura pressupõe necessariamente a escrita” (BARBOSA, 1946, p. 64). No entanto, para Rui Barbosa, o homem das cavernas ainda não possuía “a arte de fixar, e transmitir os pensamentos pela escrita” (BARBOSA, 1946, p. 64). Até se chegar à escrita alfabética como temos hoje, na ordem do desenvolvimento humano, na progressão natural das coisas, o desenho teve o importante papel de preceder a escrita, uma vez que dominada pelo instinto da curiosidade

[...] a criança não o é menos pelo gênio da imitação. Todos os meninos desenham, por um natural pendor dos mais enérgicos instintos dessa idade. Modelar formas, e debuxar imagens: eis a primeira e a mais geral expressão da capacidade criadora nas gerações nascentes. Cabe, pois, ao desenho, no programa escolar, precedência à escrita, cujo ensino facilita, e prepara. Racionalmente, naturalmente, à leitura antecede a escrita, e à escrita o desenho e a modelação (BARBOSA, 1946, p. 64 grifos nossos).

Fazendo alusão aos vigentes programas de ensino, considerando-os demasiadamente sobrecarregados, Rui Barbosa esclarece que, da forma como lecionados, tanto a leitura, a escrita, a gramática quanto o cálculo elementar, tinham uma função de um alimento indigesto. Por quê? “Porque nem na organização do programa, nem no método que o executa, se respeita, se acompanha, se encaminha a natureza. Haveis de educar o menino, como a natureza educou o gênero humano” (BARBOSA, 1946, p. 51).

Ao considerar o desenho como algo acessível a todos os homens e não somente um privilégio dos artistas por vocação ou profissão, Rui Barbosa defendia, como é possível constatar na citação anterior, uma relação mais próxima entre o desenho/modelação e a escrita. É possível inferir que caberia ao ensino do Desenho precedência à escrita de modo a facilitar e

preparar o aluno para o ensino deste outro saber. Em tese, modelar formas já daria ao aluno mais precisão na execução dos movimentos considerados mais simples. No entanto, não era somente a escrita que ganhava o auxílio do desenho. Da mesma maneira, esse mesmo ensino do Desenho deveria participar do estudo dos saberes aritméticos, geométricos, geográficos etc. Desse modo, constatamos que o saber desenhar não era simplesmente um saber artístico ou industrial, ele também se tornou escolar, uma estratégia de ensino, porque era visto como “pré- requisito” para outros saberes já escolarizáveis. Entendemos o ensino do Desenho como “pré- requisito” para outros saberes já escolarizáveis, como a leitura e a escrita, um elemento de introdução, parte integrante das primeiras matérias do curso primário.

Assim como o desenho, a modelação também deveria anteceder a escrita. Neste caso, Rui Barbosa complementa essa ideia a partir da escrita de outro texto. De acordo com ele,

[...] o dia em que o desenho e a modelação começarem a fazer parte obrigatória do plano de estudos na vida do ensino nacional datará o começo da história da indústria e da arte no Brasil. [...] Semear o desenho imperativamente nas escolas primárias, abrir-lhe escolas especiais, fundar para os operários aulas noturnas desse gênero, assegurar-lhe vasto espaço no programa das escolas normais, reconhecer o seu professorado a dignidade, que lhe pertence, no mais alto grau de escala docente, par a par com o magistério da ciência e das letras, reunir toda essa organização num corpo coeso, fecundo, harmônico, mediante a instituição de uma escola superior de arte aplicada, que nada tem, nem até hoje teve em parte nenhuma, nem jamais poderá ter, com academias de belas-artes, - eis o roteiro dessa conquista, a que estão ligados os destinos da pátria. Não é uma aspiração do futuro; é uma exigência da atualidade mais atual, mais perfeitamente realizável, mais urgentemente instante. Só o não compreenderão os incapazes de perceber a importância suprema da educação popular (BARBOSA, 1882, p. 16, grifos do autor).

Em suma, de acordo com o item 4, das defesas de Rui Barbosa sobre o ensino do Desenho, além de facilitador do ensino da escrita, acelerando-o com singular rapidez e influenciando-o no caráter da letra, como já dizia Pestalozzi (1889), o Desenho poderia fazer parte também do estudo da aritmética, da geometria e da geografia, tendo em vista sua indispensável contribuição à perícia especial do futuro operário e a prosperidade mercantil do país. Outra vantagem a ser considerada é a facilidade da criança de formar regularmente as letras, além de adquirir consciência da força de sua perfeição, despertando a vontade de não agregar nada incompleto nem imperfeito aos primeiros exercícios desta arte (PESTALOZZI, 1889). Em consonância, Trinchão (2008, p. 378) argumenta que “Rui Barbosa se baseou nos princípios já socializados por Pestalozzi, principalmente, por primar pelo Desenho precedendo a escrita, por este educar a mão e o olho e assim a observação e imitação da forma”.

Assim, a existência de uma rotina que forçava a memorização e a prática de evidenciar uma inconsciência automática do aluno, impregnada de noções elementares meramente

“teóricas” e sem sentido para as crianças, foram notoriamente combatidas por Rui Barbosa que, influenciado pelos fundamentos de Pestalozzi, por meio da leitura de Comment Gertrude instruit ses enfants, e de Fröebel59, defendia uma educação pelos sentidos.

Educar a vista, o ouvido, o olfato; habituar os sentidos a se exercerem naturalmente, sem esforço e com eficácia; ensiná-los a apreenderem os fenômenos que se passam de redor de nós, a fixarem na mente a imagem exata das coisas, a noção precisa dos fatos, eis a primeira missão da escola, e, entretanto, a mais completamente desprezada na economia dos processos rudimentares que vigoram em nosso país (BARBOSA, 1946, p. 52, grifos nossos).

Em analogia ao trecho anterior, assim como a inteligência carece do cérebro e as funções respiratórias do pulmão (BARBOSA, 1946), era intenção “fazer da intuição a base de todo o método, de todo o ensino, de toda a educação humana” (BARBOSA, 1946, p. 53). Levar em consideração as indicações dadas pela natureza e os instintos normais da infância eram tidos como itens primordiais nesse processo.

Em linhas gerais, o método intuitivo, de acordo com Pestalozzi e Fröebel, tinha como características marcantes, além de uma valorização da abordagem indutiva, a crença de que o uso dos sentidos seria determinante para a obtenção do conhecimento. Seria por meio desses sentidos que as crianças desenvolveriam suas faculdades de observação e percepção através da observação dos fatos e pela apresentação de objetos. No caso de Rui Barbosa, esses objetos seriam os modelos e estampas.

Observamos, portanto, que a criança deveria ser atraída pela curiosidade interior e pela observação dos fatos que a rodeiam, na busca pelo prazer e curiosidade de conhecer. Ou seja, “a aplicação da memória aos compêndios e a introdução mecânica, no entendimento infantil, de palavras correspondentes a realidades estranhas a observação dos alunos asfixiam, na primeira infância, ou debilitam para sempre, as faculdades criadoras da inteligência humana” (BARBOSA, 1946, p. 209). Segundo a interpretação de Rui Barbosa, “o primeiro passo, portanto, no cultivo do entendimento, é o cultivo dos sentidos, que constitue propriamente a lição de coisas” (BARBOSA, 1946, p. 63, grifos do autor).

Em suma, vale aqui destacar o entendimento de Rui Barbosa sobre a lição de coisas.

59 Fröebel (1782-1852) foi apaixonado pelas ciências naturais e pela matemática. Em 1805, ao ser contratado por

uma “escola modelo” de Frankfurt, descobre os princípios pedagógicos de Pestalozzi. Aprofundou seu conhecimento sobre as teorias de Pestalozzi em Yverdon entre 1808 e 1810, época em que o Instituto Pestalozzi esteve no auge de sua reputação internacional. Assim, esboçou sua teoria da “esfera”, que ao mesmo tempo tratava- se de uma teoria científica e uma doutrina da educação fundada na relação entre o conhecimento subjetivo e o objeto científico (HEILAND, 2010).

A lição de coisas não é um assunto especial no plano de estudos: é um método de estudo; não se circunscreve a uma seção do programa: abrange o programa inteiro; não ocupa na classe, um lugar separado, como a leitura, a geografia, o cálculo, ou as ciências naturais: é o processo geral, a que se devem subordinar todas as disciplinas professadas na instrução elementar, [...], pois a lição de coisas não se inscreve no programa; porque constitue o espírito dele; não tem lugar exclusivo no horário; preceitua-se para o ensino de todas as matérias, como o método comum, adaptável e necessário a todas (BARBOSA, 1946, p. 214-215, grifos do autor).

Pelo exposto, Rui Barbosa via nas lições de coisas um verdadeiro e único método de ensino. Mais ainda, “a lição de coisas, portanto, segundo a reforma, não acrescenta ao plano escolar um estudo adicional; impõe-lhe a aplicação ampla, completa, radical de um novo método: o método por intuição, o método intuitivo (BARBOSA, 1946, p. 215, grifos do autor). Ou seja, para Rui Barbosa, lição de coisas e método intuitivo significavam a mesma coisa. Tratava-se de um princípio comum que abrangia todo o ensino (SLUYS, 1880 apud BARBOSA, 1946, p. 215).

Contrapondo-se a essa ideia, no documento referente à Exposição Pedagógica do Rio de Janeiro, Leôncio de Carvalho assume que “A commissão da câmara confunde lição de cousas com methodo intuitivo, quando é certo que entre este e aquella dá-se grande diferença” (PRIMEIRA EXPOSIÇÃO PEDAGÓGICA, 1884, p. 218, grifos do autor). Para Leôncio, a lição de coisas era considerada como

[...] um processo especial, um exercício á parte, que deve realizar-se quotidianamente, si possível fôr, sobretudo no fim das classes da tarde, quando muitas vezes, durante o inverno os alumnos já não vêm bastante para poderem ler ou escrever, e se acham fatigados com os exercícios feitos de dia. Então uma conversa interessante poderá despertar sua attenção enfraquecida. O que deve caracterisar a lição é o modo de dal- a por meio de cousas sensíveis, de objectos colocados sob a vista dos alumnos, que dest’arte serão obrigados a reflectir – Ha pois necessidade de um museu escolar (PRIMEIRA EXPOSIÇÃO PEDAGÓGICA, 1884, p. 218-219).

Apesar de leitor assíduo dos estudos produzidos por Ferdinand Buisson, Leôncio de Carvalho dirigia tal crítica ao seu contemporâneo Rui Barbosa, o qual entendia lições de coisas como sendo o próprio método intuitivo, o qual deveria perpassar por todas as matérias ensinadas. Cabe ressaltar que Rui Barbosa também foi leitor de Ferdinand Buisson, porém, sua apropriação ocorreu de maneira diferenciada.

Assim, citando importantes precursores do método em destaque, como Buisson, e os já mencionados Pestalozzi e Fröebel, o empirista Rui Barbosa argumenta que “as lições de coisas”, previstas por esses espíritos e levadas a um alto grau de desenvolvimento no método froebeliano, “são hoje abraçadas e exigidas, como ponto de partida de todo o ensino, em todos os países adiantados e por todos os pedagogos eminentes” (BARBOSA, 1946, p. 206). Em

particular, para o político Rui Barbosa, a grande contribuição de Pestalozzi e Fröebel esteve pautada “na teoria pedagógica da cultura do gênero humano pela familiarização do espírito com a natureza” (BARBOSA, 1946, p.204).

Estendidas rapidamente em muitos países e em todo o domínio da escola popular, as lições de coisas tinham por fim “cultivar no menino as faculdades perceptivas, assimilar-lhe ao espírito a arte de observar, adestrá-lo em encontrar, diante de cada objeto, a palavra apropriada, em achar diante de cada palavra, na inteligência, a concepção da realidade correspondente” (BARBOSA, 1946, p. 210). Dessa maneira, “os limites das lições de coisas coincidem com os limites do ensino escolar em toda a sua extensão” (BARBOSA, 1946, p. 208).

2.4.2 O Desenho como base educacional, técnica e industrial: o caráter prático e