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4 O PROBLEMA DA TEORIA DA CEGUEIRA DELIBERADA E SUA

4.1 ORIGEM E DESENVOLVIMENTO DA TEORIA NO DIREITO

4.1.2 Desenvolvimento histórico da cegueira deliberada no sistema jurídico penal norte

Neste tópico, cumpre-se destacar, entrementes, a brilhante observação feita por Guilherme Luchesi261 em sua tese de doutoramento, ao alertar que não há um sistema jurídico-

penal norte Americano. O que há, em verdade nos Estados Unidos é uma pluralidade de

sistemas sobrepostos, os quais são, por vezes, harmônicos e, por outras vezes conflitantes.262, o

256 ROBBINS, Ira P. The Ostrich Instruction: Deliberate Ignorance as a Criminal Mens Rea. The Journal of Criminal Law Criminology. Chicago, 1990, p. 195. Disponível em:

scholarlycommons.law.northwestern.edu/jclc/vol81/iss2/1/. Acesso em 02 dez. 2018.

257 FERREIRA, Vinícius Rodrigues Arouck. A teoria da cegueira deliberada e sua aplicabilidade no ordenamento jurídico pátrio. Brasília: IDP/EDB, 2016. 48f. - Monografia(Especialização)-Instituto Brasiliense de Direito Público, 2016. Disponivel em: . Acesso em: 14 de novembro de 2018

258 KLEIN, Ana Luiza. A doutrina da cegueira deliberada aplicada ao delito de lavagem de capitais no direito penal brasileiro. Porto Alegre: Editora Universitária da PUCSRS, 2012, p. 4. Disponível em:

<https://bit.ly/2Lht1U5>. Acesso em: 3 nov. 2018.

259 RAGUÉS I VALLÈS, Ramon. La ignorancia deliberada en derecho penal. Barcelona: Atelier, 2007, p. 66-67. 260 Ibdem.

261 LUCHESI, Guilherme Brenner. A punição da culpa a título dolo o problema da chamada “cegueira deliberada”. Dissertação (Doutorado em Direito) – Universidade Federal do Paraná, Curitiba 2017.

que por sua vez, é resultante do próprio sistema federalista263 americano, que permite que os estados reservem para si muitas competências legislativas, dentre as quais a competência para legislar sobre matéria penal, de modo que a União pode legislar nesse campo apenas sobre os crimes federais e seu processo.264

Assim, é que, nos Estados Unidos da América, diz-se que a teoria aparece pela primeira vez no ano de 1899265, em que a Suprema Corte aplicou o que denominou de Ostrich Instructions, ao revisar a condenação de Spurr, presidente do Commercial National Bank of Nashville, no caso Spurr vs. United States, acusado por ter certificado diversos cheques sem provisão de fundos, emitidos por um cliente.266

Diante do exposto, a Suprema Corte norte-americana entendeu que, se o acusado certificou cheque com a intenção de que o emitente da cártula obtivesse dinheiro do banco, em que pese não haver em sua conta provisão para tanto, tal certificação, além de ilícita, deve ser- lhe imputada em decorrência do propósito de violar a lei267

Como se consolidou tal pensamento, a jurisprudência norte-americana passa a valer-se desse precedente e repete-o, em outros vários provimentos jurisdicionais, solidificando o entendimento de que a ignorância deliberada e o conhecimento equiparar-se-iam, independentemente da verificação da existência de um dever de conhecimento ou informação por parte do agente.268

A partir de 1962, as discussões acerca da cegueira deliberada no Direito Penal estadounidense, passaram a condicionar-se pelas disposições nacionais do Model Penal Code, proposto pelo American Law Institute269, que tratou, na seção 2.02, dos “requisitos gerais da culpabilidade”, sem fazer menção expressa à willful blindness, mas prevendo em seu item 7, que o conhecimento da alta probabilidade satisfaz a exigência de conhecimento , considerando- se que, há conhecimento por parte do agente quando houver, no caso concreto, alta probabilidade da ocorrência do fato delitivo.270

263 O Estado federado surge nos EUA no Congresso de Filadélfia de 1787. Deste emergiu a Constituição dos EUA e o Estado federal como forma de organização política.

264 Ibdem, P. 85.

265 HERNANDES, Camila Ribeiro. A impossibilidade de aplicação da teoria da cegueira deliberada ao crime de lavagem de capitais no direito penal brasileiro. 176 f. 2018. Dissertação (Pós-Graduação em Direito Público) – Faculdade de Direito, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2018.

266 CARVALHO, Gisele Mendes de; ROSA, Gerson Faustino. Uma análise crítica da teoria da ignorância deliberada à luz do princípio da imputação subjetiva. Quaestio Iuris. Disponível em: https://www.e- publicacoes.uerj.br/ojs/index.php/quaestioiuris/article/viewFile/31154/25951. Acesso em: 01.nov;2018.

267 Ibdem.

268 RAGUÉS I VALLÈS, Ramon. Op. cit., p. 67-68

269 The American Law Institute is the leading independent organization in the United States producing scholarly work

to clarify, modernize, and improve the law. The ALI drafts, discusses, revises, and publishes Restatements of the Law, Model Codes, and Principles of Law that are enormously influential in the courts and legislatures, as well as in legal scholarship and education. Tradução: O American Law Institute é a organização independente líder nos Estados

Unidos, produzindo trabalhos acadêmicos para esclarecer, modernizar e melhorar a lei. O ALI elabora, discute, revisa e publica Reafirmações da Lei, Códigos Modelo e Princípios do Direito que são extremamente influentes nos tribunais e legislaturas, bem como na educação jurídica e escolaridade.

270 CARVALHO, Gisele Mendes de; ROSA, Gerson Faustino. Uma análise crítica da teoria da ignorância deliberada à luz do princípio da imputação subjetiva. Quaestio Iuris. Disponível em: https://www.e-

Em seqüência, no que pertine ao delito de lavagem de capitais, o leading case271 quanto à aplicação da teoria da cegueira deliberada seria o caso surgido em 1992, United States v.

Campbell272, no qual uma corretora de imóveis foi acusada de lavagem por intermediar a aquisição de um imóvel por um traficante de drogas. Nesse julgamento, decidiu-se que não se poderia concluir que a acusada tivesse agido com dolo apenas porque deveria saber de alguns fatos, devendo ser provado que ela, propositadamente, evitara descobrir o que estava acontecendo.273

Nesta monta, no bojo do referido julgamento de primeira instância, o Juiz Federal do Distrito Oeste da Carolina do Norte, ao orientar os jurados para o julgamento da corretora, instruiu-osa respeito do elemento subjetivo necessário para a condenação por lavagem de dinheiro, informando que o elemento “conhecimento”274 exigido pela norma incriminadora para a condenação poderia ser satisfeito caso restasse demonstrado, para além de dúvida razoável, o propósito consciente de evitar conhecimento pleno dos fatos. Não bastaria, nesse sentido, demonstração de que a acusada deveria conhecer a origem do dinheiro ou demonstração de negligência de sua parte.

Desta sorte, a condenação da corretora foi então revista pela própria “Corte Distrital”, tendo sido tal decisão analisada pelo Quarto Circuito275, que então manteve a decisão do júri federal,

publicacoes.uerj.br/ojs/index.php/quaestioiuris/article/viewFile/31154/25951. Acesso em: 01.nov;2018

271 Trata-se de decisão que tenha constituído em regra... importante, em torno da qual outras gravitam" que "cria o precedente, com força obrigatória para casos futuros".

272 Quando uma corretora de imóveis aceitou receber a terça parte do valor de venda de imóvel “por fora” em dinheiro, declarando a venda em contrato escrito apenas do montante restante, pago pelas vias legais. O comprador era traficante de drogas, mas se apresentou à corretora como empresário legítimo. Ainda assim, a corretora declarou que desconfiava que o dinheiro pago em espécie pudesse ser proveniente do comércio de drogas.

273 MOSER, Manoela Pereira. A teoria da cegueira deliberada no direito penal econômico. Revista de Doutrina e Jurisprudência, ano 52, Brasília, n. 108, v. 2. p. 167-168, jan.-jun. 2017. Disponível em: <https://bit.ly/2t0kRZt>. Acesso em: 17 nov. 2018.

274 “O elemento do conhecimento pode ser satisfeito por inferências extraídas da prova de que o acusado deliberadamente fechou os olhos para o que, de outra maneira, lhe seria óbvio. Uma conclusão acima de qualquer dúvida razoável da existência de propósito consciente de evitar a descoberta pode permitir inferência quanto ao conhecimento. Colocado de outra maneira, o conhecimento do acusado acerca de um fato pode ser inferido da ignorância deliberada acerca da existência do fato. Depende inteiramente do júri concluir acerca da existência de deliberado fechar de olhos e as inferências devem ser extraídas de qualquer evidência. A demonstração de negligência não é suficiente para concluir acerca da presença de vontade ou de conhecimento. Eu previno vocês que uma acusação de cegueira deliberada não os autoriza a concluir que o acusado agiu com conhecimento porque ele deveria saber o que estava ocorrendo quando da venda da propriedade ou que, em exercício de adivinhação, ele deveria saber o que estava ocorrendo ou porque ele foi negligente em reconhecer o que estava ocorrendo ou porque ele foi incauto ou tolo em reconhecer o que estava ocorrendo. Ao contrário, o Governo deve provar acima de qualquer dúvida razoável que o acusado motivadamente e deliberadamente evitou descobrir todos os fatos.” (MORO, Sergio Fernando. Sobre o elemento subjetivo no crime de lavagem. In: BALTAZAR JUNIOR, José Paulo; MORO, Sergio Fernando (Org.). Lavagem de dinheiro: comentários à lei pelos juízes das varas especializadas em homenagem ao Ministro Gilson Dipp. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p.98-99).

275 Sucede que o ordenamento jurídico dos Estados Unidos foi baseado inicialmente no modelo em vigor na Inglaterra durante a colonização, compreendendo a statute law, complexo de normas escritas, e o common law, os costumes confirmados pelas decisões judiciais e apoiados na idéia de que a sua prática reiterada trazia a certeza de sua obrigatoriedade, além da equity, utilizada de forma complementar. Em segunda instância, as Courts of Appeals são divididas em treze circuitos judiciais federais (Federal Judicial Circuits e US Court of Appeals). Onze desses circuitos são divididos em base territoriais, um abrange a capital federal (US Court of Appeals for the Disctrict of Columbia

Circuit)e o último aprecia apenas matéria de marcas e patentes e questões provenientes da Court of Federal Claims (US Court of Appeals for the Federal Circuit).Normalmente estas cortes contam de dez a quinze juízes, sendo

tendo em vista que o júri poderia razoavelmente entender que a corretora tinha conhecimento da ocupação do comprador, ou então que havia deliberadamente fechado seus olhos para essa circunstância. De acordo com o Tribunal Recursal, para a condenação pelo crime federal de lavagem de dinheiro imputado, bastava demonstrar conhecimento pela acusada da origem ilícita dos recursos, não sendo necessário demonstrar que ela agiu como o propósito de lavar o produto da atividade ilícita276, conforme trecho da decisão a seguir:

"O Governo não precisa provar que o acusado tinha o propósito de lavar o produto de atividade ilícita. Ao contrário, como a linguagem da lei sugere, o Governo deve apenas demonstrar que o acusado tinha conhecimento de que a transação destinavase a lavar produto ilícito. A distinção é crítica em casos como o presente, no qual o acusado é uma pessoa distinta do indivíduo que é fonte do dinheiro sujo. Está claro pelos autos que Campbell não agiu com o propósito específico de lavar dinheiro de droga. Seu motivo, sem dúvida, era fechar o negócio imobiliário e coletar sua comissão, sem se importar com a fonte do dinheiro ou com o efeito da transação em ocultar parte do preço de venda. Todavia, as motivações de Campbell são irrelevantes. Nos termos da lei, a questão relevante não é o propósito de Campbell, mas sim seu conhecimento do propósito de Lawing."277

Como consequência lógica, ao final do trecho citado na sentença, Moro então defende que as construções a respeito da cegueira deliberada se assemelham ao dolo eventual no direito brasileiro. Ao inferir que diante da previsão genérica de dolo eventual no inciso I do art. 18 do Código Penal e da ausência de vedação à imputação por dolo eventual na lei de lavagem, as construções sobre a cegueira deliberada podem ser trazidas para a prática jurídica brasileira, sendo de especial valia nos casos em que o autor do crime de lavagem de dinheiro é diverso do autor do delito antecedente.278

Sem embargo, vale destacar o detalhe percebido por Guilherme Luchesi279, que ressalta

que a transcrição vestibular desses trechos da obra de Moro é a única argumentação teórica feita na sentença proferida no caso do furto ao Banco Central em Fortaleza referente ao elemento subjetivo no crime de lavagem de dinheiro. Ao final da citação, o magistrado federal passa de imediato à análise dos fatos.280

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