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Desenvolvimento infantil sob a Perspectiva Sócio Histórica

A perspectiva sócio-histórico-cultural de Vygotsky se apresentou como fundamento teórico desta pesquisa, haja vista ter me permitido uma compreensão dos processos de desenvolvimento e aprendizagem cultural das crianças, a partir das relações estabelecidas entre a criança e o meio, e entre a criança e os outros, num processo dialético que toma como base as vivências e o contexto cultural em que a criança está inserida, elementos bastante presentes no desenvolver dos procedimentos para com os sujeitos participantes.

Assim, o método utilizado para constituição do corpus de análise foi pensado tendo em conta as características próprias do desenvolvimento infantil e sua apropriação dos instrumentos e signos construídos culturalmente. Diante da importância dos seus pressupostos para o delineamento dado à pesquisa, tratarei aqui de algumas características básicas desta abordagem, a iniciar por uma apresentação do momento histórico de sua produção.

Lev Semyonovitch Vygotsky nasceu em 1896, na Bielo-Rússia. Iniciou sua carreira logo após a Revolução Russa de 1917, em um período de crise da Psicologia, no qual duas escolas antagônicas dominavam, com explicações parciais para alguns fenômenos (Cole & Scribner, 1991). Vygotsky, apropriando-se da estrutura teórica de Marx, e estimulado por um contexto acadêmico de valorização da ciência com vistas à solução de problemas sociais e econômicos, necessários à União Soviética das décadas de 1920 e 1930, desenvolve em parceria com Leontiev e Luria uma proposta de método alternativo para a crise na Psicologia, e que tinha relevância para o campo da educação e das práticas médicas.

Para Vygotsky (1991), o desenvolvimento da criança é um processo dialético complexo, que ocorre constantemente, e envolve influências hereditárias e do meio, de

maneira interligada. Diante das transformações ocorridas no indivíduo, a partir do estabelecimento de uma relação dialética, este sujeito vai assumir novas formas de se relacionar com seu meio e com os outros, haja vista que essas transformações são qualitativas, levando a modificações de uma estrutura em algo completamente novo.

Esse processo complexo e contínuo, que permite a apropriação das significações socialmente construídas a partir da interação com os outros e com o meio, apresenta algumas características específicas, como a não linearidade, a desproporcionalidade e a qualidade acima da quantidade (Schneuwly & Léopoldoff-Martin, 2012). São essas características próprias do processo de desenvolvimento que possibilitam uma reestruturação das relações a cada ciclo do desenvolvimento, trazendo modificações para a criança como um todo.

É fato que a criança se modifica no processo de desenvolvimento, bem como se modifica sua relação com o meio; ao estabelecer uma relação dialética com o mesmo, o papel e significado atribuídos aos elementos do meio vão se modificando à medida que a criança passa por novas experiências, levando a um outro significado e, consequentemente, um outro papel para tais elementos do meio, em virtude das mudanças no desenvolvimento da criança. Ou seja, ao ter sido modificada a relação da criança para com aquele elemento do meio, este é reinterpretado e adquire um novo significado para o sujeito, sendo isto possível a partir da vivência (Vygotsky, 2010).

O desenvolvimento dos sujeitos, que se dá a partir da inserção da criança no meio cultural, é mediado pela linguagem e por instrumentos socioculturais à sua disposição, na relação com os outros e com o meio, que lhe permite um processo de apropriação das práticas sociais e culturais, ao mesmo tempo em que possibilita à criança convertê-las em funções humanas (Pino, 2010). Assim se dá a internalização e

significação do mundo cultural pela criança, estando a vivência implicada nesse processo de significar o mundo, diante das situações criadas em relação com o meio.

Nesse processo, as crianças vão criando conceitos decorrentes de suas experiências, construindo múltiplos enlaces de significados nos diálogos que estabelecem com os outros e na interação com o meio. Assim, elas constroem um grande número de conhecimentos incutidos nas palavras que empregam, formulando um sistema de conceitos (Brossard, 2012). Podemos dividir tais conceitos em cotidianos e científicos, sendo estes constituídos a partir da sistematização dos primeiros. Os conceitos cotidianos derivam do domínio das experiências dos sujeitos, a partir da concretude de suas vivências. São, segundo o mesmo autor, concepções que se organizam em função dos “domínios das experiências” da criança.

A vivência é apresentada por Vygotsky, em tradução de Vinha (2010), enquanto: Uma unidade na qual, por um lado, de modo indivisível, o meio, aquilo que se vivencia está representado – a vivência sempre se liga àquilo que está localizado fora da pessoa – e, por outro lado, está representado como eu vivencio isso, ou seja, todas as particularidades da personalidade e todas as particularidades do meio são apresentadas na vivência, tanto aquilo que é retirado do meio, todos os elementos que possuem relação com dada personalidade, como aquilo que é retirado da personalidade, todos os traços de seu caráter, traços constitutivos que possuem relação com dado acontecimento. (p. 686)

Dessa forma, ao se priorizar as vivências desses sujeitos, esta pesquisa busca uma aproximação às possibilidades de significação que as crianças participantes dão às coisas com as quais interagem. Para isso, faz-se necessário prestar atenção à forma

como as crianças significam as coisas, dar voz às crianças, entender o significado que o discurso produzido tem para a criança.

Fazendo uso do conceito de vivência desenvolvido por Vygotsky, posso afirmar as crianças e adolescentes enquanto atores sociais, posto que possuem competências e conhecimento da realidade que vivenciam. Diferentemente de uma concepção adultocêntrica e tutelada, em que se minimiza a capacidade de participação da criança, vários estudos (Correia et. al., 2007; Gallacher & Gallagher, 2008; Melo, 2012; Patiño, 2009; Rizzini et. al., 2007; Santana & Fernandes, 2011; Tomás & Fernandes, 2011) tem adotado uma perspectiva de participação ativa e envolvimento desses sujeitos no processo de pesquisa, com variações quanto ao nível de implicação das crianças no desenrolar da pesquisa em si.

As mudanças na forma de pensar a participação infantil se deram tanto no campo acadêmico como político e social. Muitos dos avanços para a instituição da criança enquanto ator social e sujeito de direitos só foram possíveis dadas as articulações com movimentos sociais e pressões políticas, com a consequente elaboração de documentos acerca do tema. Como explicitado no capítulo anterior, a proposta de participação infantil em agendas políticas e sociais, o que representou uma afirmação da ideia de criança enquanto sujeito de direitos e participante ativo na sociedade, se fez mais presente a partir dos eventos promovidos pela Organização das Nações Unidas com relação à temática da infância.

Aprofundando a articulação entre a forma de se pensar essa relação da criança com o meio e sua participação na construção da realidade social, posso trazer, como um dos pontos importantes para que a criança venha sendo percebida enquanto capaz de assumir esse lugar de ator social, o seu reconhecimento legal enquanto sujeitos capazes

de pensar e agir sobre a realidade na qual estão, dotados de saberes e competências, inseridos socialmente pelas relações que estabelecem no cotidiano.

A compreensão das crianças enquanto atores políticos concretos ainda é muito incipiente, posto que entre os próprios adultos a concepção da participação geralmente fica restrita ao exercício do poder de voto, permitido apenas àqueles com mais de dezesseis anos de idade. Dessa forma, a invisibilidade dos atores infantis na cena política tem impacto direto sobre os mesmos, se consideramos que toda decisão política tem uma extensão correspondente sobre as diferentes gerações (Sarmento, 2005).

Semelhante a este pensamento, Rizzini et. al. (2007), destacam que:

Oportunidades precoces de participação democrática alimentam um senso coletivo de responsabilidade, e de habilidades para resolver problemas de forma conjunta. Talvez o mais importante seja que as crianças desenvolvam um sentimento de autoconfiança como atores sociais, com o poder de impactar diretamente nas situações que afetam as suas vidas. Elas desenvolvem não só confiança, mas aprendem lições na prática sobre como podem melhorar a qualidade de vida. (p.173)

Retomando a perspectiva sócio histórica, o desenvolvimento individual deve ser compreendido em seu contexto social, cultural e histórico, dentro do qual os esforços individuais não se dão isolados dos tipos de atividades e de instituições em que o sujeito se insere (Rogoff, 2005). Assim, o sujeito, ao longo de toda sua vida, se utiliza de instrumentos culturais como mediadores dos processos sociais e, portanto, mediadores da aprendizagem de atividades e comportamentos relacionados a cada instrumento.

Essa aprendizagem, portanto, não se dá de forma passiva; as interações com parceiros mais habilidosos permitem que as crianças participem de atividades que não

seriam capazes de realizar sozinhas, ao se utilizarem de instrumentos culturais, mediadores dessas interações. Elas próprias transformam esses instrumentos de acordo com sua intencionalidade, tornando-se capazes de desenvolver processos mais complexos de pensamento, agora de forma independente.

Com o reconhecimento e respeito às perspectivas que as crianças apresentam acerca de eventos cotidianos, em consonância com uma inserção ativa nos contextos sociais, posso afirmar que ela se apropria da cultura e ressignifica as situações criadas na dinâmica com o meio. A abertura e problematização das experiências concretas das crianças são uma forma de considerar respeitosamente sua singularidade em espaços educativos e políticos. Como afirma Brossard (2012), o sujeito psicológico "se produz" ao se apropriar do mundo da cultura dentro das relações sociais próprias da sociedade a qual ela pertence.

As crianças se apropriam dos elementos da cultura sob uma lógica própria, revelando, no processo de inserção social, uma produção cultural diferenciada (Correia et. al., 2007). A consideração da criança enquanto ator social possibilita, portanto, o diálogo com o adulto a partir de expressões específicas da criança, tornando possível emergir o olhar próprio daquele sujeito, a forma como significam os elementos que perpassam sua relação com o mundo, nas interações entre pares e entre gerações.

Ao analisarmos as características anteriormente levantadas, próprias do desenvolvimento infantil, bem como movimentações sociais a favor da consideração legal de crianças e adolescentes enquanto sujeitos de direitos, surgem questões acerca da participação social desse grupo que demandam uma articulação entre as determinações já alcançadas historicamente e a realidade sociocultural na qual as crianças estão inseridas (Melo, 2012).

Pensar a criança enquanto sujeito de direitos, protagonista de suas ações e capaz de participar ativamente como sujeitos de pesquisa, e não mais como objetos de intervenção dos adultos, leva necessariamente a reformulações no campo teórico e metodológico da pesquisa com essa população. Para isso, as necessidades específicas e particularidades do grupo participante devem ser ponderadas no processo de pesquisa, levando em conta que a consideração para com os aspectos do desenvolvimento da criança e o meio sociocultural em que ela está inserida podem facilitar a compreensão dos significados atribuídos a informações provenientes das interações com pares e com adultos, bem como sua participação e organização das culturas.