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O conceito de infância e a caracterização de suas particularidades são construções sociais moldadas pelo tempo histórico e pelas características culturais de cada época e espaço social, havendo assim uma diversidade de discursos sobre a infância. Tais concepções interferem e justificam determinadas práticas sociais vigentes (Francischini & Pereira, 2010), implicando ainda na concretização de modelos diferenciados para as crianças, tendo em vista a proposta de pensamento estabelecido na relação com esses sujeitos.

Pensar a infância enquanto historicamente construída, me leva a resgatar também a etimologia do termo infância, posto que, em geral, o que a palavra significa tem relação com as representações por trás do termo em si. De origem latina, o termo in-fans significa a ausência de fala. Para Kohan (2010), a ausência demarcada pelo prefixo in foi entendida historicamente como incapacidade de falar, tanto que a palavra "infans foi usado para se referir aos que, mesmo falando, pela sua minoridade, não estavam ainda habilitados para testemunhar nos tribunais".

Morais (2003), ao problematizar o sentido de infância, etimologicamente instituído enquanto referente aquele que não fala, aponta mais uma possibilidade dessa ausência para além do campo jurídico. Para ela, o sentido atribuído ao termo revela que os adultos não reconhecem a legitimidade da linguagem infantil. Essa forma de conceber o termo remete a muitas práticas sociais nas quais a opinião e a fala da criança de uma forma geral são diminuídas, ou esvaziadas de credibilidade.

Os sentidos atribuídos ao termo em si, quando considerados a partir da produção cultural e estrutura social de cada tempo histórico, me fazem retomar as representações sociais elencadas por Pinheiro (2006) de uma releitura da história social do Brasil. A multiplicidade de conceitos, derivada das possibilidades de interpretação do termo a partir de cada realidade, está intrinsecamente relacionada às características atribuídas à infância, e aos sujeitos que dela fazem parte. Tanto que, diante da conjuntura apresentada no Brasil, e do campo de atuação ou grupo de crianças destinatários de tais ações, a representação social para a infância variava.

Levando em conta que os sujeitos desta pesquisa são crianças, que se localizam num tempo histórico e num espaço geográfico específico, os quais tem repercussão nas práticas sociais estabelecidas com as mesmas e consequentemente nas experiências vivenciadas por elas, buscarei agora problematizar o conceito de infância de uma forma contextualizada.

Ao considerar a concepção hegemônica de infância atualmente, que levou a uma maior diferenciação entre elas e os adultos, pode-se constatar uma série de progressos no reconhecimento e na garantia de direitos para as crianças, se comparada com a concepção predominante de três décadas atrás. Tais conquistas foram possíveis a partir de um processo dinâmico e complexo, que envolveu mobilizações populares e de movimentos sociais, ações governamentais, debates e embates sobre as representações

sociais destinadas aos sujeitos que compõem o grupo infância, e consequentemente, às práticas associadas a cada representação, empregadas nos documentos propostos para esses sujeitos.

Como assinalado no capítulo anterior, a partir da década de 1980, no Brasil, foram designados instrumentos legais com vistas à afirmação de direitos como saúde, educação e moradia para todas as crianças. Direitos estes que, sob uma perspectiva de universalização, impulsionaram a institucionalização da infância enquanto um grupo sob tutela dos adultos. Estes, assim como o Estado e a sociedade de uma forma geral, passam a assumir o papel de responsáveis pela proteção das crianças e dos adolescentes.

No entanto, autores como Sarmento (2005) destacam a não universalidade desses progressos, posto se verificar que as desigualdades sociais, em um nível global, afetam mais direta e intensamente aquelas crianças que vivenciam situações de privação e pobreza. Não obstante, há ainda grupos étnicos e minoritários que preservam sua forma de pensar a infância e as crianças que os compõem.

A não consideração dessas diferenças, em geral colocadas como opostas à ideia de universalização, pode levar à subordinação de grupos étnicos e minoritários a uma identidade hegemônica, perdendo-se, nesse processo, formas peculiares de se pensar a participação infantil e que poderiam, antes, ajudar a problematizar o lugar da criança na sociedade e as possibilidades que lhe são conferidas em cada modo de pensar. Nesse sentido, Melo (2012) defende a igualdade institucionalmente proposta pela universalização da infância e da adolescência primeiramente como um fator de integração desse grupo geracional, e não para fins de sua homogeneização.

O processo de construção da infância se deu, dentre outros fatores, a partir da sucessiva separação das crianças das esferas sociais nas quais antes eram livres para circular. A exclusão das crianças de campos que iam além do domínio familiar e a

criação de instituições preparatórias próprias para as mesmas, instituindo a cisão social e com isso a negação da sua capacidade de participar daqueles espaços, devendo ser protegidos e tutelados pelos adultos, acabou por se tornar uma das características da realidade social da infância nas últimas décadas (Sarmento, Fernandes & Tomás, 2007). Em síntese, Sarmento e Marchi (2008, p. 3) afirmam que "a infância é, simultaneamente, uma construção histórica, um grupo social oprimido e uma 'condição social' – grupo que vive condições especiais de exclusão". Esta assertiva evidencia que, pela forma como foi se pensando a infância, a partir das características culturais e do lugar social que se foi atribuindo às crianças e adolescentes, este grupo acabou por assumir um espaço minorizado, que em geral não possibilita a sua real participação no meio social.

Ressalto aqui que esta é uma visão mais generalista, que não se encerra numa única forma de pensar, mas que predomina sobre as diversas possibilidades de conceituar a infância, quando nos deparamos com as práticas e atitudes mais comuns para com este grupo.

Concebendo a infância enquanto uma categoria social do tipo geracional por meio da qual se manifestam possibilidades e constrangimentos da estrutura social (Sarmento, 2005), torna-se essencial o exercício de reflexão sobre esse conhecimento, não apenas para este grupo, mas sobre a sociedade considerada de forma integral.

Dada a possibilidade de se construir e modificar continuamente a prática social, pela reformulação de normas e referenciais para se pensar a infância, bem como as consequências que a diferenciação de status criada historicamente em torno das crianças e adolescentes trouxe à vida em sociedade, é preciso repensar o papel designado às mesmas nos espaços de socialização e aqueles que lhe são permitidos participar.

Sobre isso, Rizzini, Thapliyal e Pereira (2007, p. 165) pontuam que, na prática, “as oportunidades e os mecanismos para a participação infantil e juvenil continuam limitadas. Por exemplo, aponta-se que as escolas têm destinado um tempo maior para discutir questões como democracia, ao invés de identificar formas de atuação e implementação dessas ideias”, deixando clara a necessidade de reconsideração à forma como tem sido tratada a ação e participação das crianças no meio social.

Não se deve negar a singularidade da identidade infantil, que é inclusive uma garantia expressa na Constituição Federal do Brasil de 1988 e no Estatuto da Criança e do Adolescente, lei nº 8069/90, ambos considerando a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento. Tal singularidade, pelo contrário, deve ser contemplada ao se apreciar as experiências concretas das crianças, haja vista que as condições social, cultural, étnica, econômica influem na construção de diferentes infâncias (Correia, Giovanetti & Gouvêa, 2007).

Além das características psicobiológicas próprias desse grupo geracional, desde os diversos grupos etários até as diferenças de desenvolvimento cognitivo, motor, emocional, ainda há a diversidade referente à classe social, raça, gênero, cultura.

Outra característica de singularidade das crianças, apontada por Schneuwly e Léopoldoff-Martin (2012), diz respeito ao seu processo de desenvolvimento, caracterizado pela "novidade", que emerge de uma etapa anterior de desenvolvimento numa relação dialética e dinâmica entre o sujeito e o meio. Partindo de uma perspectiva vygotskiana, a qual discutirei em seguida, os autores conceituam a criança como um ser qualitativamente diferente do adulto pela estrutura de seu organismo e de sua personalidade.