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Um outro olhar sobre o mundo: O desfazer de preconceitos (sociais, religiosos, culturais) a partir da estética teatral.

Para mim, a Filosofia, tal como a Arte, pretende na sua essência provocar uma transformação no sujeito de tal forma que este passe a ter acerca do mundo - considerando como mundo a multiplicidade do real, um outro Olhar - ou seja, que passe a aceitar e a ponderar múltiplas perspectivas.

É minha convicção de que a motivação para a Filosofia em geral e para a vivência da cidadania em particular, deve ser feita a partir de um impulso cujo motor é a estética teatral, pois esta pode operacionalizar nos alunos mudanças significativas, nomeadamente no que diz respeito ao desfazer de preconceitos sociais.

Muitas vezes, é apenas através do confronto directo e orgânico com situações limite que se desfazem, ou pelo menos atenuam, certos preconceitos sociais. Muitos jovens e adolescentes só se apercebem do que é a exclusão social quando, em exercícios de expressão dramática, são impedidos, por exemplo, de entrar dentro de um círculo composto pelos colegas. O facto de, nos exercícios de expressão dramática, se trabalhar dentro do domínio dos afectos, mais que no plano racional, abre perspectivas para uma aproximação e um desbloqueio mesmo ao nível do discurso. Segundo uma reflexão publicada no International Journal of Education & the Arts 50, a aplicação de exercícios de expressão dramática em grupos turma de adolescentes que apresentavam problemas de fraco aproveitamento escolar, absentismo, preguiça, falta de hábitos de trabalho e mesmo indisciplina, revelou-se positivo, dando aos jovens a oportunidade de se expressarem usando as suas próprias vozes através de um processo que envolvia quatro estádios: o primeiro ensinava-os a descontrair, a brincar, a expressarem-se de uma forma lúdica. O segundo estádio pressupunha experiências específicas que eram apresentadas pelos estudantes. No terceiro estádio, o professor já os convidava a desenvolver situações de improvisação e no quarto estádio o trabalho era o de preparar o aluno para a vida, criando situações como a entrevista para o primeiro emprego, por exemplo. O

objectivo deste projecto era que os alunos recuperassem a motivação para a aprendizagem. Como conclusão do estudo, os autores referem o seguinte:

“We believe that there is a need for an aesthetic education that does more than just serve the traditional concerns of the established arts curriculum and the drama / theatre workshop offer such potential. This education would be influenced by the everyday cultural aesthetic practices of our young people. “Dramatic knowing”, in particular, is an example of this form of education that should be possible in many different educational contexts, but tends to be poorly organised outside of the arts curriculum itself.”51

6.1. Descrição de um caso concreto

Podemos referir, a título de exemplo, o caso concreto do estímulo que uma companhia de teatro profissional, a ACTA (A Companhia de Teatro do Algarve), em Janeiro de 2001, despoletou num grupo turma do 10º ano de Humanidades com o qual trabalhávamos na disciplina de Introdução à Filosofia. O estímulo era, a partir do espectáculo O Longo Sono da Heroína, da autoria de Ana Paula Baião Aniceto e Sissel Paulsen, fazer com que os alunos encontrassem soluções, fizessem questões e mesmo encontrassem um final para a história de uma adolescente que começou a ter problemas com droga. As situações eram várias, desde uma mulher que foi abandonada por um médico que a engravidou, tornando-se revoltada e alcoólica, passando pela infância de uma criança amada, em paralelo com uma criança desprezada, até à entrada em coma da adolescente, cabendo aos alunos a tarefa de decidir se ela iria morrer ou não. A observação que fizemos surpreendeu-me, pois alunos que nunca se manifestavam nas aulas cooperaram entusiasticamente nas tarefas propostas pelos actores, discutindo em grupo, apresentando depois os resultados das suas discussões, sob a forma de uma dramatização, comentando as suas vivências. De uma forma talvez um pouco incipiente, conseguiram ultrapassar o bloqueio da expressão oral, levando-nos a crer que a motivação a partir de estímulos propostos pela Expressão Dramática poderá ser mais eficaz que os métodos mais tradicionais e, desta forma, acreditar que esses estímulos devam ser aplicados amiúde, nomeadamente nas aulas de Filosofia.

O espectáculo O Longo sono da heroína, foi buscar inspiração ao imaginário do conto infantil da Bela Adormecida. Começava por mostrar um homem feliz com o

nascimento da sua filha. Esse homem, nesse dia, recebeu um telefonema de uma outra mulher, exigindo-lhe as mesmas condições de vida que ele ia dar a essa menina, para o outro filho que havia tido um ano antes, com essa mulher. Ele respondia que tinha sido um erro e que não tinha mais responsabilidades, pois já lhe tinha dado dinheiro para se desembaraçar da criança. A mulher, então, jurava vingança. Os alunos, divididos em grupos, eram então solicitados a ilustrar como seria a reacção dos respectivos pais perante uma e outra criança em situações tais como a primeira doença e o primeiro dia de aulas. Depois de mais uma intervenção dos actores em que se mostrava o cuidado que os pais tinham em relação à rapariga, que se tornava numa super protecção e o desprezo que a mulher abandonada dava ao filho, os alunos eram convidados a fazer perguntas às personagens (à mulher abandonada e ao homem que a abandonou, que era médico) segundo a técnica do hot sit. Aqui surgiram questões interessantes como a contradição ao nível da ética por parte do médico, uma vez que ele, defendendo a vida, tinha pago para se fazer um aborto. Continuando a história e o imaginário da Bela Adormecida, quando a rapariga faz 16 anos, o irmão é convidado para a festa dos seus anos. Este dá-lhe a provar substâncias alucinógenas e ela fica em estado de coma. Os alunos são então convidados a representar o final, decidindo se ela morre ou se sobrevive a esta experiência. Todos os alunos participaram activamente, fazendo questões espontaneamente aos actores e dando o seu contributo de forma séria e conscienciosa.

Esta experiência foi mais um contributo para a nossa crença na tese de que um ensino que, não só não esqueça, mas sobretudo privilegie estratégias baseadas na estética teatral, concorrerá para um maior gosto pela aprendizagem por parte dos alunos e, sobretudo, uma maior consciência dos problemas / questões com que todos nos debatemos no mundo contemporâneo.

7. A aula da Filosofia como espaço aberto a uma prática da Expressão