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CAPÍTULO I − ESTADO E SOCIEDADE: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE CONTROLE SOCIAL

2.3 DESIGUALDADE JURÍDICA

Outro entrave enfrentado no Brasil é a nossa incapacidade de garantir o princípio da igualdade jurídica, princípio este vigente nas sociedades modernas, uma vez que:

[...] no Brasil, significado e conteúdo jurídico diverso do que em outros sistemas jurídicos, já que partimos de pressupostos diversos: o princípio da igualdade jurídica para nós não representa a mesma idéia e, conseqüentemente, não tem os mesmos efeitos jurídicos que nas sociedades igualitárias (MENDES, 2004, p. 95).

Há que se observar que o entendimento da atuação de uma Ouvidoria e de uma Corregedoria, mesmo restrita ao Estado do Rio de Janeiro, está necessariamente inserida num cenário nacional e mesmo internacional. Dessa forma, não podemos perder de vista a inserção dessas atuações num quadro social marcado por uma cultura que naturaliza a desigualdade, o corporativismo, o clientelismo etc.

Aí está a regra jurídica da igualdade, tal como a concebemos até hoje. Ela pressupõe tratamento jurídico desigual para pessoas socialmente desiguais, que nos Estados democráticos de direito são consideradas juridicamente iguais. Esta forma de apropriação do princípio da igualdade dificulta a identificação da cidadania brasileira, uma vez que afasta a idéia do mínimo jurídico comum, assim como a idéia de direitos universais, isto é, que sejam atribuídos a todos os brasileiros (MENDES, 2004, p. 115).

Roberto DaMatta repete insistentemente a sua questão23 recorrente em vários textos, que é a contradição jurídica entre o universal e o particular, a divisão entre o universo da casa e o universo da rua. Observa que “de um lado, temos as leis que o código liberal pretende instituir como universais e válidas obviamente para todos. Mas de outro, temos as relações imperativas com os parentes e amigos” (DAMATTA, 1986, p. 43). Este tipo de arranjo naturaliza as relações de privilégio uma vez que:

23 DaMatta objetiva discutir “com uma certa precisão e através de casos que estão ocorrendo hoje, como é que

convivem, lado a lado e frente a frente, um sistema absolutamente tradicional de relações pessoais e de instituições familiares – tutelares e patriarcais, no sentido metafórico e lato que ensina Gilberto Freyre – com um sistema que exige que todos sejam iguais perante as leis que emanam do Estado” (DAMATTA, 1986, p. 19).

Assim, não conseguimos perceber bem até hoje que a questão não é somente ter um capitalismo “selvagem” e autoritário, mas sobretudo de descobrir que vivemos numa sociedade onde há sistematicamente um relacionamento intenso e funcional entre um sistema de mercado acoplado a um aparato legal fundado em leis universais e no indivíduo como sujeito; e redes imperativas de relações pessoais que funcionam hierarquicamente, mantendo os velhos privilégios elitistas (DAMATTA, 1986, p. 103).

Relatando casos de flagrante de inversão de fatos e valores jurídicos, Jorge da Silva, após analisar o crime cometido contra o índio Galdino José dos Santos, em Brasília, chega à conclusão de que “fica mais uma vez patente que a ambigüidade característica de nossa cultura reflete-se no Judiciário de forma marcante” (Silva, 2003: 191):

Sem a adoção de políticas e programas destinados a enfrentar as iniqüidades desse sistema de lei e justiça e promover uma maior integração dos contingentes marginalizados à sociedade em geral, não há que falar em luta contra a violência. Não há que falar em igualdade de oportunidades (SILVA, 2003, p. 179 e 180).

Referindo-se à “chacina da Candelária” e no bojo da discussão do Estatuto da Criança e do Adolescente, Jorge da Silva (2003, p. 177) observa o quão é profundo o fosso entre as leis e as práticas: “pior do que tudo foi ver autoridades responsáveis pelo cumprimento do Estatuto posicionarem-se como seus detratores (deixando implícito, portanto, que tal lei não era para ser cumprida)”.

Talvez em Oliveira Vianna encontremos subsídios para uma primeira explicação para a prevalência dos privilégios estatuídos (incorporados) nas leis (nos estatutos legais):

Nesse ponto, temos que distinguir os dois aspectos do fenômeno jurídico, correspondentes às duas faces com que se apresenta o direito. Uma é a face normativa – a lei escrita; outra, a face sociológica – o costume. Uma nos dá o aspecto legal, outra – o aspecto sociológico (VIANNA, 1955, p. 479).

Mas certamente é no mesmo autor que encontraremos a primeira crítica contundente à questão da inadequação entre a formalidade das leis e as práticas cotidianas:

Eles como que estão ainda nesta fase da filosofia política, em que o Estado é concebido como uma estrutura estranha à sociedade, ajustado a ela, vinda de cima, como que por direito divino – e não emanado dela, partilhando das suas condições materiais e de espírito, vivendo a vida da sua “cultura” e sofrendo a influência das suas transformações (VIANNA, 1955, p. 420).

De toda sorte, a fratura entre uma sociedade moderna que intenta ingressar na civilidade seguindo os exemplos de outras nações e uma realidade jurídico-social que

naturaliza as mais diferenciadas formas de tratamento que redundam em flagrantes privilégios nos coloca diante do óbvio:

Como se todo o aparato de leis, processos, tribunais, palácios de justiça, funcionários e instâncias não tivesse, antes do objetivo particular de promover justiça stricto sensu, o fim último de promover a justiça social. Para não poucas autoridades do Judiciário parece que há dois mundos: o mundo jurídico, que seria o seu mundo concreto, e um outro mundo, o do dia-a-dia do povo, para eles abstrato e não lhes dizendo respeito (SILVA, 2003, p. 180 e 181).

No mundo do dia-a-dia do povo, quem “sujam os dedos”? Damásio de Jesus (2002, p. 205 e 206) afirma que só os pobres irão sujar os dedos e ironiza os crimes de colarinho branco:

E a “cifra dourada”? E os autores de crimes de colarinho branco? Por que não foram incluídos na imposição vexatória de “sujar os dedos”? A razão “jurídica” é simples: porque se incluídos, ao arrumar a gravata para a foto, iriam sujar o colarinho!

DaMatta (1982, p. 43) escreve que a violência brasileira poderia se chamar “messianismo dos pobres, pois na sua forma mais crua e menos elaborada ideologicamente ela indica na sua trágica brutalidade as distâncias que temos que vencer para tornar o Brasil uma sociedade mais justa e mais capaz de ouvir-se a si mesma”.

CAPÍTULO III – OUVIDORIA DA POLÍCIA E CORREGEDORIA GERAL