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Diante das colocações apresentadas é necessário refletir sobre algumas questões relacionadas ao complexo econômico, como a relação entre a riqueza e a pobreza no Cariri; as formas de apropriação dos recursos naturais; a relação entre o trabalho e a injustiça social. E isto deve ser feito de maneira que a análise inclua a economia dos trabalhadores, sejam camponeses, escravizados ou assalariados, sem deixar de considerar as imbricações com a economia dos senhores e a conjuntura do país. Entender como o crescimento econômico regional, destacado pela historiografia para a segunda metade do século XIX, representou, ao mesmo tempo, a consolidação da pobreza de grande parte da população livre. Sendo o Cariri retratado como o “oásis” do sertão e o “império” da produção, importa explicar a desigualdade social que ali existiu, saindo da versão tradicional proposta pela classe senhorial, - de que a pobreza seria gerada pela propensão à vadiagem e à ociosidade por parte dos trabalhadores.

A desigualdade foi gerada no decorrer do processo de ocupação, consolidação do modelo colonizador e posteriormente, com o desenvolvimento da economia caririense. Não foi um processo linear ou progressivo. Representou uma tragédia para um número considerável de pessoas, como ocorreu com as populações indígenas. A ocupação colonizadora do interior do Ceará ocorreu

178 BLOCH, Marc. Tipos de estrutura social na vida rural francesa. A terra e seus homens: Agricultura e vida rural nos séculos XVII e XVIII. Bauru, SP: EDUSC, 2001, p. 558-577.

através da subordinação e sua “pacificação”, além do monopólio sobre a terra, nas propriedades sesmariais, ou através das posses que geraram propriedades senhoriais. Como afirma Victor Leonardi, a vida social no grande sertão brasileiro foi construída, nos séculos XVIII e XIX, a partir de um emaranhado de instituições, processos econômicos, comunicações verbais, formas de comportamento 179. Acrescento, um emaranhado de disputas, consensos e dissensos, exploração, violência, conflitos e solidariedades. Foi uma ocupação violenta: “No Ceará, a ocupação do território teve um caráter ainda mais nitidamente conquistador, dada a resistência dos povos indígenas durante quase um século” 180. A sociedade rural que se constituiu teve início com o que Leonardi chamou de colonialismo interno. Não só portugueses, mas também brasileiros; não só brancos, mas também mestiços; diversos grupos praticaram o domínio através da violência e do controle das terras e riquezas, além da escravização tanto de povos nativos como de africanos e seus descendentes. A tradução dessa história é o resultado concreto na vida da população. Em meados do século XIX, até as forças do aparato estatal reconheceram o fato.

Quando em virtude do decreto de 24 de Janeiro do corrente anno, pelo qual S.M.I. houve por bem nomiar-me Director Geral dos Indios desta Provincia,

tomei posse no dia 23 de março deste mesmo anno, naõ fis e nem podia fazer uma perfeita ideia do grande trabalho, responsabilidade, comprometimento, e despezas, que tinhaõ de pezar sobre mim na ardua e espinhosa tarefa dos deveres inherentes a esse honrado Emprego, pm

agora, depois de um tirocinio de poucos mezes, em que, a despeito de meos esforços e assiduo trabalho, ainda naõ pude conseguir o perfeito restabelecimento de todas as Aldeias dos Índios, que montaõ a oito em diferentes pontos da Provincia, alem da antiquissima Aldêa de Missaõ Velha do Crato, aonde existem terras, q foraõ dadas aos Indios, e me consta haverem athe Indios selvagens nas extremas desta mesma Provincia, [...]. Estou que o Governo, que elaborou, e organizou aquelle Regulamento naõ podia prever o estado desgraçado, em que se achavaõ as Aldeas, e que porisso se tornasse uma pratica excessivamente onerosa aos Directores Geraes o comprimento dos seos deveres, como tenho experimentado, e succederá a todos aqueles de Provincias, que tenhaõ tantas Aldeas como esta, e em que os Indios tenhaõ sido dispersos, e esbulhados de suas terras, gravadas de mais a mais com a fome, que continua e continuará até que a Divina Providencia nos depare as chuvas, e hajaõ produções, por isso que naõ cessaõ de reclamar por socorros para salvarem actualmente a vida, e poderem trabalhar em preparar terreno, em que plantem, quando chegar o inverno. 181

179 LEONARDI, Victor Paes de Barros. Entre Árvores e Esquecimentos: história social nos

sertões do Brasil. Brasília: Paralelo 15 Editores, 1996, p. 309.

180 Ibid, p. 48.

181 PROVÍNCIA DO CEARÁ. Ofício do Diretor Geral dos Índios da Província do Ceará, ao Ministro e

Secretário de Estado dos Negócios do Império, Joaquim Marcelino de Brito, em 28 de setembro de 1846, Livro *IJJ9 176, Arquivo Nacional (AN).

Em que pese a valorização de suas tarefas no cargo, o Diretor Geral dos Índios para a Província do Ceará acusava a situação precária dos povos nativos e a perda até, das terras destinadas aos mesmos nos aldeamentos criados pelo governo Imperial. Como apresentei anteriormente, o processo de expropriação da população pobre foi gerador de uma massa de homens que não tinham acesso à terra e que migravam pelo interior do Nordeste, não apenas nos momentos de calamidades, como no caso das secas, mas também nos períodos de “normalidade”.

Os senhores pretendiam exercer seu domínio sobre as pessoas e, para isso, valiam-se das instituições estatais e também de seu poderio econômico e político. Nesse processo, por todo o Brasil, os trabalhadores buscaram diversas formas de resistência, de inserção, seja na luta pelo acesso à terra ou pela manutenção do que entendiam serem seus direitos tradicionais182. Segundo Maria Yedda Linhares e Francisco Carlos Teixeira, quando os historiadores associaram a

terra ao trabalho, buscando uma explicação histórica, constituiu-se o sentido da

palavra agrário, o qual vai além dos adjetivos fundiário, territorial, imobiliário, indo até ao problema da injustiça social e da pobreza na América Latina. Assim, a estrutura da posse e uso da terra não pode ser explicada se não estiver relacionada ao estudo das formas de organização do trabalho 183.

No desenvolvimento dessa conquista do espaço, a classe dominante no Cariri procurou diversos mecanismos para manter uma hegemonia e definir os papéis sociais que competiam a cada indivíduo, conforme sua visão de mundo e seus interesses. Aos trabalhadores em geral, preconizava a submissão através do trabalho, atividade vista como essencial para a manutenção da ordem e progresso do país, mas não sem antes apresentar os benefícios que o trabalho traria para os setores da população mais empobrecidos. Da desqualificação social surgia também a possível solução. Sendo vistos como inferiores pelos estratos dominantes, caberia aos mais pobres, segundo aqueles, o trabalho desvalorizado, caminho para a manutenção da ordem social e do enriquecimento da nação. Assim, dois pensamentos entrelaçavam-se: o Cariri como um “oásis” no sertão, e, os homens livres pobres como fadados ao trabalho, em conjunto com os escravizados.

182 MOTTA, 1998, p. 16-20.

183 LINHARES, Maria Yedda L.; SILVA, Francisco Carlos T., Terra prometida: uma história da questão agrária no Brasil. Rio de Janeiro: Campus, 1999, p. 47.

A classe senhorial detinha as melhores terras, expandia seu patrimônio e conseguia diversificar suas atividades econômicas. Na análise dos inventários, é possível identificar a estratégia de vários homens ricos, que procuravam distribuir suas posses de terras em diferentes localidades, conforme demonstrarei adiante 184. As potencialidades do recursos naturais da localidade em que essas propriedades estavam inseridas, as técnicas existentes e as relações de trabalho utilizadas condicionavam as práticas econômicas. Alguns senhores criavam gados em terras no Piauí, faziam o transporte do gado para o Cariri e vice versa. Também possuíam lavouras, sendo que havia um grupo menor que também era proprietário de engenhos de cana-de-açúcar. Os mais ricos conseguiram expandir suas propriedades e negócios na região e nas províncias vizinhas. Se o Cariri é identificado como um local em que não prosperaram grandes latifúndios, o fato é que os senhores detinham mais de uma propriedade, além do que, seus núcleos familiares geralmente estavam próximos. Filhos, sobrinhos, irmãos, primos, pais, os familiares eram, em muitos casos, vizinhos. Outro fator importante na definição do preço das propriedades era o acesso aos recursos hídricos. Desde o período colonial, o acesso às fontes d’água era um fator distintivo na concessão das sesmarias. Aquelas que seguiam os cursos de rios, por exemplo, eram as primeiras a serem objetos de requisição. O controle sobre as fontes, olhos d’água e miradouros também foi uma das expressões do domínio econômico e social no Cariri, não só pelo fato desses recursos geralmente estarem dentro das propriedades dos senhores, o que lhes permitia a decisão de quem poderia ter acesso à agua e quando poderia, mas também, através da legislação que de certo modo lhes favorecia. Mesmo com a existência do costume de se permitir o acesso à água para moradores e vizinhos, a questão é que um senhor poderia decidir negar este acesso, por alguma contrariedade ou disputa. Aos homens com menos recursos, geralmente restavam as terras de menor valor, descritas geralmente como “terras secas”. Já as terras regadias, com a possibilidade de uso das águas correntes, estavam concentradas nas mãos dos homens mais ricos e poderosos.

Esta condição não era pacífica entre a própria classe senhorial, posto que fosse alvo de disputa também entre os senhores. Um exemplo foi a questão do uso das águas correntes no Crato, motivo de reclamações e constantes disputas. Para

184 “Algumas famílias caririenses costumam, passar no inverno, uns dois ou três meses nas suas

tentar dirimir o problema, a câmara municipal tentou estabelecer regras para o uso dos recursos hídricos, que mesmo aprovadas, nem sempre eram seguidas ou acatadas por todos. Nos códigos de postura da cidade é possível identificar a questão das águas como um problema sério. Veja-se, por exemplo, a Lei Provincial, N. 645, de 17 de Janeiro de 1854, que aprovava artigos de postura da referida câmara 185. Com oitenta artigos, deliberava sobre questões como a construção de casas, o despejo de entulhos, a venda de gêneros alimentícios, o controle das águas, o horário de funcionamento das tavernas, a criação de gado, entre outras.

Art. 58. As aguas de todas as nascencias do patrimonio desta camara, serão repartidas por todos os foreiros com a igualdade de direito, pelo juiz municipal presidente da camara, ou juiz de paz,se os mesmos foreiros assim concordarem; os foreiros ás margens dos rios Batateira, e desta cidade serão obrigados a soltarem todas as aguas das 6 horas da tarde da sexta-feira de cada semana até 6 horas da manhã da segunda-feira seguinte, para serem divididas pelos foreiros e proprietarios do Engenho do Meio, inclusive para baixo. Os contraventores serão multados em 30$000 rs.

Art. 59. Todo aquelle que fóra do tempo que lhe competir, lançar mão de aguas alheias, ou seja por malicia ou mesmo por necessidade de regar plantas, será multado em 6$000 réis para as despezas municipaes.

Art. 60. Ficam proibidas as tinjinguadas, assim como outras quaesquer baldeações nos poços deste municipio: os infractores pagarão a multa de 20$000 réis, mesmo quando o fação nas aguas que passem por suas terras.

Art. 61. Quem deitar entulhos nas levadas, ou por qualquer modo obstruir a correntesa das aguas regadias, pagará a multa de 2$000 réis.

Art. 62. Os proprietários, foreiros, ou rendeiros das terras banhadas pelo rio Batateira, e desta cidade desde as nascencias até o Carité, conservarão em suas testadas toda a limpeza afim de que não se embarace a correntesa das aguas: os contraventores pagarão a multa de 6$000 réis.

Art. 63. A levada geral desta cidade deverá ser encanada desde a extrema do sitio do Pisa até o ultimo quintal da rua Grande, e esse encanamento será de pedra, ou tijolo e cal com bicas de aroeira ou cedro. Os proprietarios poderão ter em seus quintaes tanques tambem de cal, com tanto que não distraião as aguas para molhar as plantações, e somente as tirem com baldes para o que lhes for mister; os infractores serão multados em 10$000 réis.

Art. 64. Os foreiros dos sitios Caiana e Granjeiro poderão servir-se de parte das aguas da nascencia do rio desta cidade com tanto que seja isso das seis horas da tarde até seis da manhã, sob pena de serem privados desse indulto, e pagarem multa de 8$000 réis.

Art. 65. Fica prohibido o uso de se distrahir parte das aguas deste municipio com outras plantações que não sejam cannas, cafeseiros, arroz e fruteiras dos brejos da Batateira para baixo; não se prohibindo porém a plantação de milho, feijão, etc., pelo meio das cannas, que tem de ser regadas; os contraventores pagarão multa de 20$000 réis. 186

185 PROVÍNCIA DO CEARÁ. Lei N. 645, de 17 de Janeiro de 1854. Leis Provinciais. In: Almir Leal;

BARBOSA, Ivone Cordeiro, organizadores. Leis Provinciais: Estado e Cidadania (1835-1861). Compilação das Leis Provinciais do Ceará – comprehendendo os annos de 1835 a 1861 pelo Dr. José Liberato Barroso. – ed. Fac-similada. Fortaleza: INESP, 2009, Tomo II, p. 439-447.

186 PROVÍNCIA DO CEARÁ. Lei N. 645, de 17 de Janeiro de 1854. Leis Provinciais, op. cit., p. 445-

A câmara buscava através dessa postura, intervir no uso das águas do Rio da Batateira, principal recurso hidríco do Crato, no entanto, controlado por algumas poucas famílias. Além de regulamentar a liberação das águas, buscava proibir a pescaria, que era baseada no envenenamento dos peixes que viviam nos chamados “poços” – diques de rochas subterrâneas, conforme o artigo 60, proibindo as “tinjinguadas” 187. A caça e a pesca eram atividades praticadas com maior frequência pela população pobre. A prioridade para o uso da água era para o cultivo da cana-de-açúcar, seguida de outras culturas. Apesar da regulamentação, a questão continuou a gerar conflitos entre os moradores do Crato. Alexsandra Magalhães, ao realizar a análise ambiental sobre a microbacia do Rio da Batateira destacou sua importância, registrando a disputa entre os senhores de engenho pelo uso das águas daquele rio 188. Aqueles que estavam estabelecidos mais próximos à fonte, utilizavam os recursos hídricos, enquanto os que estavam à jusante, tinham que esperar as sobras de água.

187 “Tinjinguadas” ou “tinguijadas” era o processo de pescaria mediante o uso da raiz do tinguí capeta,

que misturada nas águas dos poços, atordoava os peixes e permitia aos pescadores que os pegassem com redes ou até com as mãos. Este processo contaminava as águas e matava peixes de vários tamanhos. In: PINHEIRO, 2009, p. 73-74.

Ilustração 01 – Distribuição das telhas d’água na Fonte Batateira, 1855.

Fonte: MAGALHÃES, op. cit., p. 108.

No croqui com a distribuição das telhas d’água do Rio Batateira no ano de 1855, é possível visualizar a referida concentração dos recursos hídricos 189. Algumas poucas famílias tinham o controle sobre as águas, com seus canais que

189 Telha é uma unidade de vazão portuguesa. Através de um tubo de 18 cm de diâmetro com uma

drenavam parte dos recursos. A questão era tão conflituosa que levou a Justiça, ainda no ano de 1855, a lavrar um auto de partilha das águas, seguindo os artigos da postura municipal do ano anterior 190. O Cariri como “oásis”, em meio ao sertão, era também uma decisão política, vontade dos senhores, que se desenrolava no jogo de forças existentes. Solos férteis e regadios, concentrados nas mãos das principais famílias, lhes permitia negociar com os trabalhadores despossuídos, as condições de moradia e de trabalho, pelo menos no que diz respeito à area do Crato localizada no entorno da Chapada do Araripe. Nos cursos dos outros rios que banhavam o Cariri, não era diferente.

Pela demonstração dada pelo Araripe n 48 ve-se claramente, que, só os dois termos do Crato, e Barbalha são banhados por 6 correntes grandes; 33 menores; e por 25 vertentes, que ao todo fasem 64 bôccas d’agoas perennes, que molhao estes dois terrenos agricolas: é pois mui presumivel, que, estas fontes lancem dia, e noite uma quantidade d’agoa consideravel; e que tanta agoa chega para molhar uma grande parte de terrenos deste dois termos; e por conseguinte que haja muita plantação nelles; e della sahia annualmente incalculavel fructo; e por esta rasão he forçoso que haja tambem muita riquesa nos dois referidos termos (si he admissivel diser-se) que a agricultura he o ramo da maior riquesa de hum Pais. 191

No trecho da carta acima, publicada em O Araripe, seu autor assinava como “Governista” - o mesmo que sempre recriminava os trabalhadores pobres. “Governista” retratava a presença das fontes d’água como fator determinante para que o Cariri fosse um grande produtor de gêneros agrícolas. Porém, criticava também os senhores, pois segundo ele, os mesmos permitiam que a preguiça dos trabalhadores prejudicasse a região. Preconizava assim, uma polícia ativa para combater a vadiagem. Na verdade, os problemas relacionados à questão agrária estavam relacionados: a apropriação dos recursos naturais por parte das chamadas “famílias tradicionais”, a fome, a irregularidade na manutenção da subsistência, a falta de reservas de terras e águas para a maioria em favor da minoria, a distinção baseada no domínio sobre as terras e o trabalho de outras pessoas. Imputar aos pobres, a causa da baixa produção, foi o argumento do autor da carta acima.

Segundo José Heder Benatti, no espaço agrário brasileiro, uma estratégia própria para se apossar dos recursos naturais renováveis foi gerada em cada região. O que levou à formação de propriedades distintas: a propriedade sesmarial, a propriedade senhorial e a propriedade moderna brasileira, que se imbricavam e se

190 MAGALHÃES, op. cit., p. 106.

combinavam na transição para o capitalismo no Brasil, particularmente no século XIX 192. Do outro lado, pequenos posseiros, trabalhadores sem terra que moravam nas áreas de seus senhores, pequenos arrendatários, jornaleiros e trabalhadores das cidades constituíam a massa de pobres livres que, junto com os trabalhadores escravizados, realizavam a produção da época. A pobreza de muitos foi gerada em todo este processo, provocando as disputas e as situações de crise no período. Assim, a condição de ser pobre não deve ser caracterizada como uma fatalidade, um destino ou causada pelas chamadas “calamidades naturais”. Momentos de crise social podem fazer com que ela aumente, levando a população a níveis de miséria, como pode ocorrer nos casos de guerras prolongadas, secas, terremotos ou outros eventos que desarticulam ou obstruem o sistema produtivo. No entanto, existe a pobreza do cotidiano, aquela dos tempos considerados “normais”, ou seja, a que é gerada no desenvolvimento das formações sociais, sendo resultado do processo aludido anteriormente. É essa condição que passo a analisar.

A pobreza é sempre relativa, comportando gradações, variando no plano social conforme a época e os níveis de cultura e desenvolvimento econômico. Segundo Michel Mollat, a expressão adquiriu vários sentidos e provocou uma série de atitudes e sentimentos no decorrer da história. É expressão relacionada à carência de recursos, vista como virtude, ou mesmo como desqualificadora, para quem a vivia. De início designava a qualidade de uma pessoa, sendo que progressivamente foi associada à sua condição, em qualquer estado social atingida por um estado de carência193.

Da qualificação à substantivação, Mollat demonstra que com o tempo surgiu uma “fórmula do pobre”, fórmula que exprimia uma abstração, evocando em um termo, a aflição, combinada com uma carga afetiva de compaixão ou de horror, além de um potencial de revolta e temor sociais. Na definição do conceito, Mollat defende a amplitude, combinando-o com a condição histórica a ser analisada 194.

192 BENATTI, José Heder. Apropriação privada dos recursos naturais no Brasil: séculos XVII ao XIX

(estudo da formação da propriedade privada). In: NEVES, Delma Pessanha (Org.). Processos de constituição e reprodução do campesinato no Brasil, v.2: formas dirigidas de constituição do campesinato. São Paulo: Editora UNESP; Brasília, DF: Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural, 2009, p. 211-238.

193 MOLLAT, Michel. Os pobres na Idade Média. Rio de Janeiro, Editora Campus, 1989, p. 1-2. 194 “O pobre é aquele que, de modo permanente ou temporário, encontra-se em situação de

debilidade, dependência e humilhação, caracterizada pela privação dos meios, variáveis segundo as épocas e as sociedades, que garantem força e consideração social: dinheiro, relações, influência, poder, ciência, qualificação técnica, honorabilidade de nascimento, vigor físico, capacidade intelectual, liberdade e dignidades pessoais”. Ibid., p.5.

Assim, a pobreza se manifesta como uma condição de vulnerabilidade em seus limiares de ordem biológica, econômica e sociológica.

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