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Se a classe senhorial elaborou, no contexto do século XIX, uma representação do lugar em que vivia, tal representação contribuiu para a construção de outro elemento importante a ser investigado: a imagem que esta classe fazia de si, como sendo a responsável pelo projeto civilizador citado anteriormente. Os discursos não eram excludentes, nem justapostos. Na verdade, se completavam, na medida em que destacavam o espaço privilegiado pela natureza e as características de distinção da referida classe. Segundo Rogério Haesbaert, quem detém o poder de delimitar, nomear e simbolizar o espaço e grupos de pessoas procura definir, a partir da identidade da região – por exemplo, as características naturais ou da cultura de seus habitantes, a distinção necessária para ser usada no discurso político 40. No Cariri idealizado pela classe senhorial, aquele discurso foi de tal forma apresentado que passou a ser percebido como sendo a própria identidade regional, fortalecendo seu domínio de classe. O que não significa dizer que todos os sujeitos sociais assimilaram ou aceitaram, da mesma maneira, os elementos que a compunham. Dissensos, resistências e outras formas de vivências existiram no mesmo espaço e fizeram o contraponto ao modelo idealizado pelos senhores, o que será discutido posteriormente. Cabe aqui o alerta feito por Haesbaert, de que não é prudente reduzir as regionalizações a meras construções intelectuais quanto a práticas concretas, explicitamente políticas. Os seres humanos reagem tanto sobre e

com os espaços – percebido, representado e vivido -, quanto sobre e com as ideias

a respeito dos mesmos 41.

No quadro geral de construção desta identidade regional, quatro aspectos se destacam. O primeiro seria o da vocação agrícola regional, relacionado aos recursos naturais. A agricultura seria a mola propulsora do processo civilizatório, capaz de fazer a região prosperar. O segundo aspecto, a busca pela autonomia política como instrumento de afirmação da importância da região na consolidação do projeto civilizatório. O terceiro aspecto, a imagem construída pela classe senhorial quanto a ser paternal, branda, aquela que procurava, tal como um pai busca para seus filhos, o melhor para os bons trabalhadores, ou seja, os que aceitavam a subordinação. Nesse sentido, a classe senhorial também era um estilo de vida. Uma

40 HAESBAERT, op. cit., p. 119. 41 Ibid., p. 117-120.

gestação de identidades e valores socialmente compartilhados, a adesão a práticas políticas, administrativas, públicas e institucionalizadas, que não estava restrita aos grandes grupos, mas estendia-se aos grupos subalternos que nela se espelhavam, buscando aderir àquele estilo 42. Por fim, o quarto aspecto - a difusão do estereótipo da índole propensa à vadiagem e à criminalidade entre os que, tendo potencial para o trabalho subordinado, recusavam-se, sendo, portanto, injustos, ingratos ou rebeldes. Para estes, deveria haver controle, punição e obrigatoriedade de trabalhar. Assim, os elementos formadores da identidade regional na perspectiva senhorial estabeleciam uma situação de desequilíbrio, pois a desigualdade social e a utilização dos trabalhadores numa situação de exploração eram assim justificadas.

A consolidação do controle estava apoiada no discurso majoritário da segunda metade do século XIX, que afirmava ser o Cariri um celeiro agrícola, devido aos recursos naturais do “oásis” do sertão. Este entendimento do espaço insere-se no panorama intelectual brasileiro da época, não sendo possível explicá-lo apenas na região, ou somente através dela. O embasamento teórico para a composição deste quadro de inteligibilidade estava relacionado ao momento político. O Estado Monárquico direcionara suas principais ações para a manutenção da unidade territorial e da ordem institucional. Sua base econômica assentava-se principalmente na produção rural, em geral, baseada em práticas predatórias 43. O avanço da percepção sobre a natureza através do “princípio da imanência”, numa ordem dinâmica manifestada por leis e a obtenção da riqueza com a transformação da terra, mediante o trabalho humano na atividade agrícola, completavam o quadro proveniente da cultura iluminista 44.

Segundo José Augusto Pádua, a capacitação cultural para usar tal conceito como recurso político ganhara maior eficácia, porém com o artifício da elaboração de um estilo romântico conceitualmente superficial e politicamente ambíguo.

Em meio a essas concepções e modelos, o elogio da natureza foi especialmente marcante. De certa forma, pode-se dizer que no jogo de aparências e adaptações, ou mesmo de inversões, produzido pelos usos do

42 SALLES, Ricardo. E o vale era escravo. Vassouras, século XIX. Senhores e escravos no

coração do Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008, p. 53.

43 PÁDUA, José Augusto. Natureza e sociedade no Brasil Monárquico. In: GRINBERG, Keila;

SALLES, Ricardo (orgs.). O Brasil Imperial, volume III: 1870-1889. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p. 345.

ideário romântico no processo de construção cultural do Brasil monárquico, a presença da natureza como tema e imagem, independente de sua densidade, parece ter sido o aspecto mais consistente. 45

A ideia de “trópicos” ganhava destaque como a nova imagem do Brasil, com lugares propícios para a pesquisa científica e fonte para uma renovação literária, mas ao mesmo tempo, espaço da barbárie e da escravidão, de poucos progressos nos modos, na economia e nas instituições. Um precioso mundo natural se apresentava diante dos brasileiros, onde as oportunidades não poderiam ser desperdiçadas. Já não mais uma questão sobrenatural, da disputa entre o poder divino, edenizatório, criador de uma maravilha natural no território brasileiro contra a ação do diabo que, agindo sobre humanidade vivente na colônia, degradava-a, pervertendo os hábitos e costumes, segundo o imaginário colonial analisado por Laura de Mello e Souza 46.

O discurso científico ganhava mais força, muitas vezes caindo no cientificismo, gerando uma nova prática em analisar e buscar entender o mundo natural e as relações humanas. A ideia sobre a personificação da natureza foi sendo alterada. Na Europa, autores reconheciam-na como criadora e seletiva. A questão mais crítica nesse âmbito era saber se a humanidade estaria nela incluída 47. Predominava a visão de que a “história natural” e a “história social” estariam separadas. Dessa maneira, o “natural” seria tudo o que não era humano, tudo o que não fora tocado ou estragado pelo homem. Segundo Williams, tal separação não é apenas uma produção da indústria e do urbanismo modernos, mas uma característica de muitos tipos anteriores de trabalho organizado, incluindo-se aí o rural 48. Se, do ponto de vista abstrato, operou-se uma distinção entre ambos, do ponto de vista histórico, da formação social brasileira no século XIX, essa distinção se dava não só entre eles, mas também entre os próprios seres humanos, no quadro de desigualdade social e de escravidão que aqui existia.

45 PÁDUA, op.cit., p. 334.

46 SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular

no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.

47 WILLIAMS, Raymond. Ideias sobre a Natureza. Cultura e Materialismo. – tradução André Glaser-

São Paulo: Editora Unesp, 2011.

48 Ibid., p. 111. Ainda afirma Williams: “Uma parte considerável do que chamamos “paisagem natural”

possuí a mesma história. Trata-se de um produto do planejamento humano e, ao ser admirado como natural, importa muito se suprimirmos dele o trabalho ou se o reconhecemos. Algumas formas dessa ideia popular moderna da natureza parecem depender de uma supressão da história do trabalho humano, e o fato de estarem sempre em conflito com o que é visto como exploração e destruição da natureza pode, ao cabo, ser menos importante do que o fato não menos certo de elas com frequência confundirem-nos sobre o que são e o que deveriam ser a natureza e o natural”, p. 104.

Pádua afirma que predominava a ideia de uso dos recursos naturais contribuindo para o progresso do país. Aproveitamento este combinado com a ação civilizadora do regime monárquico. Esta elaboração pode ser dividida para fins de análise, em cinco grandes linhas de pensamento sobre a relação natureza/ação

humana: 1 - a que louvava intensamente a natureza em termos abstratos e retóricos

e ignorava sua destruição concreta; 2 - a que desvalorizava o meio, sendo sua destruição uma necessidade do progresso civilizatório; 3 - a que reconhecia sua grandeza, porém considerava que a exuberância excessiva impediria o pleno desenvolvimento da sociedade; 4 - a que louvava sua pujança, mas considerava sua destruição um mal inevitável, um preço a pagar pelo progresso; 5 - a que se distanciava da contemplação abstrata, defendia o uso econômico racional e criticava com dureza a destruição desnecessária e perdulária 49.

Essas grandes linhas, que servem para fins de análise do pensamento e das ações durante o Segundo Reinado, não são inflexíveis. Pádua alerta para as imbricações e destaca que se trata de uma simplificação para melhor entendimento daquele momento. No geral, revelam o “desencantamento” sobre a explicação do mundo natural, não mais, ou não apenas, a partir de uma ação divina, sobrenatural ou misteriosa; em seu lugar, o pensamento científico buscava a explicação racional e metódica. Dava-se grande ênfase à natureza, isso combinado com um determinismo econômico e amparando-se pela atuação das expedições científicas e na criação de instituições de ensino superior e de instituições de pesquisa, como a criação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro - IHGB, em 1838, que segundo Manoel Salgado Guimarães, esboçou uma fisionomia para a nação, visando produzir uma homogeneização da visão que pretendia estabelecer sobre o Brasil, no interior das elites brasileiras 50. Para tanto, o estudo da natureza e seu aproveitamento para o desenvolvimento do país estava presente nas ações do Instituto, além do estudo do passado.

Cada província tinha suas especificidades, fauna, flora, hidrografia, relevo e solos diferenciados, microclimas particulares, hábitos diversos, atividades econômicas diferentes, o que propiciava investigações nas mais diversas áreas e com interesses distintos. Expedições que percorreram o Ceará - e não só ele, como

49 PÁDUA, op. cit., p. 343-344.

50 GUIMARÃES, Manoel Salgado. Nação e civilização nos trópicos: o Instituto Histórico e Geográfico

Brasileiro e o projeto de uma história nacional. Estudos históricos. Rio de Janeiro, FGV, N.1, 1988. Disponível em: <http://www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/26.pdf>. Acesso em junho de 2010.

a chefiada pelo naturalista Francisco Freire Alemão nos anos de 1859-1860 -, realizavam a pesquisa científica. Na avaliação de Antonio Silva Filho, a iniciativa do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro em promover uma expedição científica composta exclusivamente por naturalistas e pesquisadores brasileiros assinalava uma necessidade estratégica de conhecer em detalhes a geografia, os recursos naturais e as populações do interior do Brasil. Mas ia além, instituindo um discurso de saber autorizado para inserir o país no âmbito da comunidade científica internacional 51.

No discurso político, a natureza atuava como uma das categorias centrais, ajudando a marcar diferenças em nível tanto nacional quanto mundial. A ciência e a literatura buscavam definir o espaço vivido, ao tempo em que acabaram servindo aos propósitos da construção de uma identidade nacional. Combinados aos interesses governamentais, os problemas locais influenciavam na elaboração dos propósitos sobre a referida identidade da nação, seu passado e suas possibilidades quanto ao futuro. Foi neste quadro que o Ceará passou a ser discutido, estudado e representado de uma nova maneira. E a História também serviu como instrumento que completava essa construção, mais ainda no caso do Cariri. Francisco Régis Ramos afirma que, no século XIX, intelectuais estavam engajados na escrita não só de uma História do Brasil, mas de cada província, e em seguida, de suas várias regiões.

As relações de pertencimento não são algo que preexiste ao saber que procura investigar o ”ser cearense”, e sim um campo de forças que se faz na medida em que o sentimento de nacionalidade também passa a desenvolver a necessidade de um patriotismo regionalizado, em conexão com as especificidades das relações entre o centro e a periferia do poder político do Brasil imperial. Não bastava delimitar a vasta e pouco conhecida extensão do país e das províncias. Além do espaço, o poder precisava do tempo. 52

Segundo Ramos, as histórias nacionais nascem mitológicas porque narram mitos de fundação e desenvolvimento de nações. Mas, ao mesmo tempo, nascem científicas, preocupadas com a precisão das datas e o encadeamento lógico dos fatos. Sobre o Cariri, coloca a seguinte pergunta: "Por que, afinal, uma região

51 SILVA FILHO, Antônio Luiz Macedo e. Nota explicativa. In: ALEMÃO, Francisco Freire. Diário de

Viagem de Francisco Freire Alemão: Fortaleza-Crato, 1859. Fortaleza: Museu do Ceará, Secretaria de Cultura do Estado do Ceará, 2006, pp. 7-40.

52 RAMOS, Francisco Régis Lopes. O Fato e a fábula: o Ceará na escrita da História. Fortaleza:

que passa a se ver como peculiar começa a ter a necessidade de história igualmente recortada?”. Ramos explica que a questão serve tanto para o Cariri, para o Ceará ou para o Brasil, ou qualquer tipo de história que define sua razão de ser a partir de delimitações do espaço. E completa, afirmando que com o passar do tempo, a “História do Cariri” se torna um campo autônomo, ou relativamente autônomo. Os letrados, os intelectuais, entre eles médicos, farmacêuticos, advogados, professores, cientistas, todos engajados na militância da escrita, participantes das ideias que circulavam no século XIX 53. A região crê que necessita da História, que não pode prescindir dela. Vê-se de forma dinâmica, passa a ser distinguida não só pelas características naturais, mas por ser um espaço socialmente construído. O que Ilmar Rohllof de Mattos chama de tempo histórico 54. Civilização e natureza, revelam-se, assim, dois conceitos que se entrelaçavam na elaboração dessa história caririense, apontando quais deveriam ser os rumos a seguir.

Um dos vetores explicativos propagados pelos grupos dominantes estava na diferenciação entre seu território e seu entorno. Um seria o oásis, o outro, o sertão. Apesar do esforço da classe senhorial em dispensar a ideia de que não faria parte do sertão, sendo o seu contrário, devido à suas condições naturais, o Cariri estava inserido no que se convencionou assim denominar. Pertencia a um “Brasil profundo”, aquele distante do litoral e das maiores cidades, que fazia parte do imaginário da época. Sertão, palavra polissêmica a que se atribuem diversos sentidos, acabou sendo identificada ao interior do Nordeste brasileiro nos dias atuais, fruto de uma história que será mencionada adiante. Transformado em categoria de análise, segundo Janaína Amado, foi uma das mais utilizadas no pensamento social brasileiro, especialmente no conjunto da nossa historiografia 55. Contribuiu para a produção literária brasileira, servindo de tema, despertando o interesse dos autores, desde uma visão idílica até uma percepção detratora 56.

53 RAMOS, 2012, p. 182-198.

54 MATTOS, Ilmar Rohloff de. O tempo saquarema – A formação do estado imperial. – 2. ed. –

São Paulo, 2011, p. 36.

55 AMADO, Janaína. Região, Sertão, Nação. Estudos Históricos, revista do CPDOC da Fundação

Getúlio Vargas, 1995, Vol. 8, Nº 15, p. 145-152. Disponível em <http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/1990/1129 >. Acesso em maio de 2009.

56 BARBOSA, Ivone Cordeiro. Entre a barbárie e a civilização: o lugar do sertão na literatura.In:

SOUZA, Simone (org.), Uma nova História do Ceará. – 4 ed. rev. e atual. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2007, p. 56-75.

Segundo Dawid Bartelt, as correntes mais importantes do discurso sobre o sertão no final do século XIX tinham como paradigma central a natureza, ramificando-se em dois discursos especializados, interligados entre si: um conduzido pelas categorias da geografia, etnografia e antropologia, e o outro amparado nas categorias de subdesenvolvimento e de modernização 57. Do período colonial até o século XIX, a ideia foi dominada por uma semântica de fronteiras. Essa ideia atuava de modo vetorial, isto é, referindo-se prioritariamente a um espaço ainda não formado, a ser ainda conquistado, protegido, ocupado, povoado e configurado futuramente de acordo com normas importadas. O sertão ou os sertões não conheciam fronteiras precisas. Os limites territoriais e as características topográficas não eram compreendidos de forma homogênea. Designava, portanto, menos um espaço geográfico do que socionormativo e essencialmente simbólico. No decorrer do século XIX, ganhou um sentido mais amplo, como parte de uma totalidade chamada nação. Várias tendências discursivas convergiram para essa perspectiva. No caso da província do Ceará, esteve associado à questão da seca, que no último quarto do século XIX foi transformada em um problema nacional. Sertão e seca começariam uma trajetória de unidade no imaginário brasileiro, trajetória que no decorrer do tempo quase tornaria as duas palavras sinônimas, no senso comum 58. Nem por isso, o sertão estava apenas relacionado à questão das secas. No imaginário e nas preocupações políticas de alguns setores, também era entendido como o espaço da não civilização, onde imperariam hábitos bárbaros, enquanto que o litoral seria o polo forte, o núcleo da expansão civilizadora 59.

No entendimento de Maria Yacê de Sá, o sertão não remete apenas ao lugar geográfico, mas também a seus significados. Segundo a autora, uma das acepções mais recorrentes em relação ao termo é aquela que o associa ao espaço ou ao território oposto à zona costeira e trabalha com as dicotomias conhecimento- modernidade / desconhecimento-atraso 60. Em seu diário, Francisco Freire Alemão também observou a diferença entre a bacia do Crato e seu entorno. No relato de Freire Alemão, existia uma diferença no próprio Cariri, que, no entanto, não era

57 BARTELT, Dawid Danilo. Sertão, República e Nação. – tradução de Johannes Krestschemer;

Raquel Abi-Sâmara. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2009, p. 237.

58 A questão das secas será discutida com mais profundidade no capítulo 5.

59 COSER, Ivo. Visconde do Uruguai – centralização e federalismo no Brasil, 1823-1866. Belo

Horizonte: Editora UFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ, 2008, p. 150-151.

60 SÁ, Maria Yacê Carleial Feijó de. Os homens que faziam o Tupinambá moer: Experiência e

Trabalho em Engenhos de Rapadura no Cariri (1945-1980). Dissertação (Mestrado) em História Social. Universidade Federal do Ceará. Departamento de História, Fortaleza, 2007, p. 43.

propagada pelos setores letrados daquela sociedade. Para aquele grupo, tudo o que não fosse “refrigério”, “fertilidade” ou ocorrência de “fontes d’água” era como se não fizesse parte da região. Evidenciava desse modo, a contraposição entre o Crato, então a cidade mais importante, com o restante do espaço, denominando-o de “sertão”.

O caminho que do Juazeiro conduz ao Crato é de três léguas – [de] estrada plana, arenosa, tortuosa – e bordado de vigorosa vegetação; era uma estrada das vargens do Rio de Janeiro. Ao lado direito nos ficava uma vargem fresca, por onde passa um rio, e toda plantada de cana-de-açúcar, havendo à beira do caminho 13 engenhos, às vezes quase juntos. Quando chegamos ao alto dum morro sobranceiro à cidade, se nos ofereceu um bonito panorama, por diante fechava o quadro a serra do Araripe, que não é mais que uma vasta chapada rasa e igual, como a do Apodi, adiante da qual fica a bacia do Crato, toda vestida de vigorosa vegetação e formando contraste com o aspecto do sertão. No centro e por entre o verde das árvores aparecia a torre da Matriz. A estrada, descendo moderadamente, oferecia grupos de gente com trajes domingueiros que concorriam para a missa. 61

Os habitantes da região buscavam a diferenciação, não queriam que o local em que viviam estivesse associado à noção de atraso e de miséria. Assim como dissociavam-no dos problemas inerentes à seca. Por isso apresentavam o Cariri como local de refrigério e de progresso:

Não fica satisfeito o caririense quando alguém o chama de sertanejo, o seu Cariri de sertão. Não toma a palavra sertão em seu sentido mais amplo, na acepção da zona do interior, afastada da faixa litorânea. O Cariri, do Ceará, é uma espécie de zona da mata pernambucana, ou dos brejos na Paraíba. É o verdadeiro oásis cearense como muitos o denominam. É uma ilha verdejante cercada da zona sertaneja criadora. 62

Valorizado pelo contraste com o “restante” do sertão, quase como se não fizesse parte dele, tornava-se motivo de orgulho e de diferenciação. Irineu Pinheiro, ao citar a viagem de George Gardner pelo interior do Brasil, comentou a atitude dos moradores e seu orgulho pelo local em que viviam:

Tanto mais lhe deleitaram os olhos as paisagens caririenses quanto acabara êle de viajar do Aracati ao Crato, numa distância de cerca de 300 milhas, “através de uma região que naquela época era pouco melhor do que um deserto”. É verdade podermos considerar o Cariri uma zona à parte no interior do nordeste. Por isso, em geral, se não julgam os sertanejos os

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