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Voltando agora ao cenário histórico em torno de D. Sebastião. Resulta paradoxal que uma efervescência messiânica, embora sincrética, mas tão ancorada no judaísmo, tenha se aglutinado em torno da figura daquele rei como seu esperado redentor. O jovem rei não era simpático aos judeus ou aos judaizantes e não haveria nenhum motivo para os mesmos o elevassem a tão alta estima. Seu reinado foi marcado por perseguições inquisitoriais e pela implementação da cláusula do confisco, pela qual os bens dos julgados pelo Santo Ofício eram confiscados.399 Medida que

suspendeu provisoriamente no intuito de angariar fundos para sua campanha africana.400

Um texto hebraico relatando uma versão judaica dos eventos em torno da queda de D. Sebastião dá a medida de como era visto entre os judeus este personagem e o desastre que se abateu sobre ele e sobre Portugal. O texto encontra-se no Emek Habacha de Yossef Hacohen. Na verdade, trata-se de um acréscimo de autor anônimo, já que os eventos relatados ocorreram após a morte do autor401.

“No ano 5377 (1577) e eis que Deus se senta no seu trono para julgar os povos e todas as hostes celestes à sua direita e à sua esquerda pergunta: quem seduzirá o rei Sebastião e todos os seus ministros, servos e

399 AZEVEDO-Cristão novos, pp. 126-132. 400 Idem, p. 131.

401

Emek Habaca: Historia persecutionum Judaeorum, comprehendens periodum

ab anno p. Chr. n. LXX usque MDLXX. a Joseph Hacohen, (nat. 1496). juoeta opus ineditum, in Biblioth. Caesareo-Regio Vindobon. reservatum, alioque manuscripto collatum, cum notis criticis edidit Viena: M. Letteris. 1852, pp. 151-

153. Esta passagem já foi traduzida e publicada por TELLO, Pilar Léon. El Valle

del LLanto. Madrid: Riopiedras Ediciones, 1989, pp. 188-189. A tradução neste

soldados para que caiam numa terra estrangeira? Para que seja feita vingança divina ao mal que fizeram ao seu povo e seus servos que no começo foram recebidos com amor e simpatia, e no final os traíram e os trataram como inimigos. Seus líderes foram queimados, a face dos velhos não foi respeitada, mulheres foram expulsas de seus lares, e seus filhos e filhas procriaram mas não ficaram com sua descendência, pois foram deles tirados e levados ao rochedo.402 Agora, chegou o dia de se ordenar a

vingança contra o reino pecador.

E saiu um espírito e disse: eu o seduzirei. E disse; como? E respondeu: eu sairei e serei o espírito da mentira na boca de seus conselheiros que o farão combater o xerife e rei de Fez e do Marrocos. E lá há vários judeus ricos e receberão de sua desgraça grande espólio e os dominarão como escravos e concubinas ou serão como nós, um povo estranho. E disse: seduza e também os devore, vá e faça desta maneira. 403

No sétimo mês se viu um cometa nos céus da Itália por sete semanas e disseram os astrólogos: este é um sinal de sangue, de morte de

402 Referência ao episódio do seqüestro das crianças, deportadas para a Ilha dos

Lagartos (S. Tomé e Príncipe). Ver em USQUE, Samuel. Consolação às

Tribulações de Israel.Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989 (reimpressão

da edição de Ferrara, de 1553, com estudos introdutórios de Yosef Hayim Yerushalmi e José V. de Pina Martins), pp. CC v-CCII f.

403 A configuração de um Tribunal Celeste é um motivo encontrado em várias

passagens da literatura rabínica e tem como base a passagem no livro de Jó 1:6- 12 e também 2:1-7 assim com a de I Reis 22: 19-23. O texto acima é uma paráfrase a este última passagem:

“Miquéias retrucou: escuta a palavra de Deus. Ei vi Deus assentado sobre o seu trono; todo o exército do céu estava diante dele, à sua direita e à sua esquerda. Deus perguntou: Quem enganará Acab, para que ele suba contra Ramot de Galaad e lá pereça? Este dizia uma coisa e aquele outra. Então o Espírito se aproximou e colocou-se diante de Deus: ‘Sou eu que o enganarei’, disse ele. Deus lhe perguntou: ‘E de que modo?’ Respondeu: ‘Partirei e serei um espírito de mentira na boca de todos os seus profetas.’ Deus disse: ‘Tu enganarás, serás bem sucedido. Vai e faze assim.’ Eis, pois, que Deus infundiu um espírito de mentira na boca de todos esses teus profetas, mas Deus pronunciou contra ti a desgraça”. Ao fim do relato, o rei Acab encontra mesmo sua morte na batalha.

um rei e de desgraça grande sobre um rei.404

E proclamou o rei Sebastião em todo seu reino: todo o que cinge espada e sabe lutar cujo coração queira ir comigo à guerra contra o reino do xerife contra um povo quieto e seguro e que estão distantes dos seus irmãos turcos, que venha comigo pois dividiremos grande espólio e fortuna, pois eles serão nosso alimento, e nosso Deus os dará em nossas mãos.

O rei Felipe mandou-lhe mensagem e disse: não saia em guerra contra seus inimigos. E não o ouviu pois Deus desejou que morresse com todos seus ministros, servos e soldados por causa do opróbio que carregava em suas mãos.405

E o rei Sebastião foi ao mar em navios, e levou consigo seus homens e toda a maquinaria de guerra de Portugal, e foram até o local escolhido por eles. E desceram Sebastião e seus soldados, uma grande multidão armada. E saiu contra eles o rei xerife, e se postaram um diante do outro como dois bandos de cabras. E começou a batalha e caíram sobre o acampamento dos portugueses. E defenderam (com seus corpos) o rei e ele disse: forçado sou diante do Deus de Israel pois combateu por eles no

404 Kepler faz referência a este cometa, de 1577, e o desastre sobre o rei D.

Sebastião no seu “Libellus Secundus Cometarum Physiologia Nova” in KEPLER, Johann. Gesammelte Werke, vol. 8:Munich, 1963, p. 230:

“Exemplo sit Cometa anni 1577 cum eo tempore occasiones existerent, quibus invitatus fuit SEBASTIANUS Lusitanae Rex ad debellandos Mauros, fertur spretis prudentiorum consiliis, cum non abundaret rei bellicae peritis, pertinaci proposito in hostilem orbem traiecisse, itaque culpa sua própria periise cum exercitu”.

O texto é de 1619. Não sabemos se Kepler conhecia já estes fatos, ou se foi informado do mesmo por Rosales, com o qual se correspondia. COMETAS, fl 16 f: “e nos pelos nossos pecados o experimentamos no infausto que precedeo à ruyna del Rey dom Sebastião no anno de 1578, pois quanto mais & mayores cousas significará hum grande incêndio & Cometa, acompanhado de tantos como este?”.

405 Aqui temos um motivo semelhante ao “endurecimento do coração do faraó”

Ex 7:13. Deus interfere no juízo de valor do rei, para que esta encontre sua desgraça.

Egito,406 Mas isto de nada adiantou pois foi ferido, ele e seus

companheiros, pois Deus abriu seu tesouro e tirou sua fúria; pois um trabalho de Deus foi o que ocorreu sobre aquele reino pecador. Do mesmo jeito que fizeram, assim foi feito com eles. E seus cadáveres ficaram expostos no campo, e não tiveram sepultura e todas as bestas do campo os devoraram. Esta é a recompensa dos nossos saqueadores, e o destino dos nossos opressores. Bendito seja Deus que livra Israel de todos os seus sofrimentos.

E chegou a notícia a Lisboa e houve nela grande clamor e em toda a terra de Portugal, pois não havia uma casa na qual não houvera alguém falecido. E Portugal perdeu toda sua glória. Justo é Deus.

E ouviu o rei Felipe da Espanha, que morreu o rei e todos os seus ministros, conselheiros e soldados. E como havia dito a eles, assim acontecera. E elevou-se seu orgulho e disse: eu reinarei e meu é o direito sobre o reino. E tomou para si uma carruagem e soldados italianos e alemães (ashkenazim) e seus soldados espanhóis e saíram para a batalha e se postou diante de Lisboa, que é a cidade do reino.

E conversaram entre si os portugueses e disseram: quem vai querer combater este rei tão poderoso? E mandaram uma mensagem: de quem é a terra? Faz conosco uma aliança e reina sobre nós. Mas não nos coloque representantes espanhóis, pois nos odiamos mutuamente. E ele atendeu este pedido. E veio o rei a Lisboa e todo o povo saiu ao seu encontro e disseram: viva para sempre o rei Felipe! E colocou sobre ela, e sobre outras cidades, guardas e voltou a seu país e à sua cidade e seu reino prosperou muito”.

406 O texto aqui é particularmente obscuro. Tentamos a tradução que nos pareceu

Esta fonte narra com relativa fidedignidade os acontecimentos em torno da campanha africana de D. Sebastião, seu fracasso e morte, a tomada de poder por Felipe II da Espanha.407 Mas ela nos traz uma visão

de como os judeus viram estes acontecimentos: punição sobre Portugal e sua gente, pelo que haviam feito aos judeus.

O que é interessante é que o que seria o “bandarrismo”, movimento de cunho messiânico em torno das trovas do Bandarra, vai se transformar em sebastianismo fundindo a temática de forte influência judaica no primeiro, com a figura de um rei cristão e nada simpático aos judeus. O resultado foi um movimento que diversas vezes se caracterizou na sociedade portuguesa como uma espécie de “judaísmo sem judeus”.408 Em

meio a uma sociedade católica contrareformada, com Tribunal de Santo Ofício, cheia de rigidez doutrinária, o sebastianismo se configura como um “Outro”, um lado obscuro e iluminado desta mesma sociedade.

Este ponto em comum entre a alegada “cegueira judaica” e a “loucura sebastianista” podemos encontrar no conteúdo da resposta que o rabino da comunidade judeu portuguesa de Londres, David Nieto, deu ao arcebispo de Cranganor, D. Diogo na Anunciação Justiniano (1654-1713) que aos 6 de setembro de 1705, num discurso que proferiu num auto de fé em Lisboa, criticou os judeus de forma virulenta e, entre outros ataques, os acusa de alimentarem a vã esperança na vinda do Messias.409 Em sua

407 HERMANN-Sebastianismo, pp.110-121 nos fornece detalhes históricos sobre

a batalha, conhecida também como “a batalha dos três reis”.

408 AZEVEDO-Sebastianismo, p. 7: “a persistência do messianismo, por tão longo

tempo, e sempre o mesmo na expressão, a animar a mentalidade de um povo, é fenômeno que, excluída a raça hebraica, não tem igual na história”..

409 Sermam do Auto da Fe que se celebrou na praça do Rocio desta cidade de Lisboa, junto dos paços da Inquisição, em 6 de setembro do anno de 1705 em presença de Suas Altezas, Pregado pelo Ilustrissimo e Reverendissimo Senhor D. Diogo da Annunciaçam Justiniamo, do Conselho de Sua Magestade, que Deos guarde, e Arcebispo que foi de Cranganor. Lisboa, Oficina de Antonio Pedrozo

resposta, David Nieto usa o tema sebastianista como polêmica contra as investidas do clérigo. Nos dizeres do rabino de Londres:

“Não há por acaso pessoas em Portugal que ainda esperam D. Sebastião? Onde nos últimos séculos apareceram pessoas que pretendiam sê-lo? Não há lá vários livros escritos em sua honra? Se estas coisas podem acontecer num país livre, somente porque anseia ver novamente seu querido rei, o que há de errado em um povo oprimido que espera ver o rei que Deus lhe prometeu?”410

As críticas ao sebastianismo se faziam também sentir dentro de Portugal. No seu livro Tratado da Sciencia Cabala ou Noticia da Arte

Cabalistica, publicado em 1724, Francisco Manoel de Mello (1606-1676)

não deixa de registrar as seguintes linhas acerta dos sebastianistas:

...agora por homens que se fingem sábios, agora por mulheres hipócritas, e alli passão a introduzir papéis fictícios, livros suppostos, astrologias temerárias, sonhos imaginados, revelações falças, sem perdoarem ao verdadeiro curso do Sol, lua, e Estrellas, a quem mil vezes perfilhão aspectos nunca vistos, sombras, e figuras, que

Galrão. MDCCV. O texto pode ser consultado em http://fondotesis.us.es/fondos/libros/593/4/sermam-do-auto-da-fe-que-se-

celebrou-na-praca-do-rocio-desta-cidade-de-lisboa-junto-dos-pacos-da- inquisicao-em-6-de-setembro-do-anno-de-1705/?desplegar=5800

410 “Respuesta al Sermon predicado por el Arcobispo de Cangranor nel Auto de

Fe celebrado en Lisboa,en 6 de Setiembre Anno 1705”, Por el Author de las noticias Reconditas de la Inquisicion, Obra Postuma, impresso en Villa-Franca por Carlos Vero, p. 76(68). Sobre a autoria de resposta ser de David Nieto ver SOLOMONS, Israel. David Nieto Haham of the Spanish & Portuguese Jews'

Congregation Kahal Kados Sahar Asamaim London: 1701-1728. Londres:

debuxa sua malicia...411

Também no já citado Edital da Meza Censória de 9 de dezembro de 1774, que devotou os livros de Rosales às chamas, encontramos uma série de argumentos contra os sebastianistas. A linha geral apresentada neste documento é que o sebastianismo é um “complô jesuíta”412. Os problemas

apontados no Anacephaleoses da Monarchia Lusitana... são o de pretender que os destinos das monarquias e dos impérios são dependentes do curso dos astros, provar, por meio da astrologia, que o Império Otomano iria acabar e no seu lugar se levantaria um novo Império Português; defesa da alquimia e da possibilidade de transformar metais em ouro.413 E qual o

interesse dos jesuítas nestas ideias? São elencados quatro motivos:414

1. Ocupar os ouvidos e a imaginação do monarca fazendo-o acreditar ser ele o indicado para constituir este novo Império.

2. Tirarem os povos de seu sossego, tornando-os vítimas de vãs esperanças e, em seguida, levando-os ao pânico.

3. Divulgar o plano malicioso de um futuro Império usando para isso dos seguintes argumentos:

3 a: Que o rei Dom Sebastião era o rei Encoberto, que haveria de reinar neste novo Império;

3 b: Depois da morte de Dom João IV, por meio de Antônio

411 Francisco Manoel de Mello, Tratado da Sciencia Cabala. Lisboa, 1724, p.6 412Edital da Real Mesa Censoria. Lisboa, 1774 (a seguir ERMC), quatro folhas

numeradas à mão (1f-2v), fl 1f declara ser o Anacephaleoses da Monarchia

Luzitana “hum daqueles muitos maliciosos, e perniciosos Estratagemas,

praticados neste Reino pelos Individuos da suprimida, abolida, e extinta Sociedade Jesuitica; os quaes trabalhando sempre por encher todos os Pontos de vista, em que se interessavam os seus diabólicos Systemas, e se avançavam os seus desordenados interesses...” Os jesuítas foram expulsos de Portugal no ano de 1759 pelo Marquês de Pombal.

413 ERMC fl 1f-1v. 414 Idem, fl 1v- 2f

Vieira415, alegam que o mesmo ressuscitará para reinar neste

Quinto Império

4. Fazer os homens estúpidos, entusiastas, supersticiosos, fanáticos acreditarem nestas falsas profecias e esperarem por um futuro quimérico, fazendo-os trabalharem por coisas vãs, que são a base da ignorância, da incipiência, da superstição e do fanatismo.

Como vemos, estamos diante de uma crítica feroz ao sebastianismo, taxado aqui como movimento de tolos e supersticiosos.

415 Idem, fl 2 f. O texto não nomeia “padre Antonio Vieira”, mas apenas o seu

nome, a quem atribuem a produção do “indigno, escandaloso, e herético papel intitulado Esperanças de Portugal: Quinto Império do Mundo.”