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Ernest Renan ([1882]1997) em seu texto clássico: “o que é nação? ”, buscou desvendar os mistérios do que viesse a ser a nação e o nacionalismo, promovendo questionamentos e definições pioneiras. Antes as explicações oscilavam em torno de alguns elementos que impunham certa naturalização sobre a ideia de nação. Desse modo, ao buscar uma definição geral (um princípio espiritual), o autor desconstrói explicações mais ortodoxas sobre este conceito, aquelas que tinham na existência de uma língua comum, no compartilhamento de um território, de uma religião ou de uma raça suas marcas definidoras.

Com efeito, a conferência pronunciada pelo autor em 1882 tornou-se pioneira, sobretudo, por se referir a esta ideia de modo oposto ao que faziam as teorias racistas da época. O autor acreditava que a nação moderna, além de tratar-se de um fenômeno novo, resultava de uma série de elementos convergentes (RENAN, [1882]1997; 162) e não havia como entendê- la, além disso, sem avaliar seus contextos sócio-históricos específicos. Por exemplo: possuir obrigatoriamente uma base dinástica foi algo desconstruído pelo autor enquanto um suposto pré-requisito essencial para a formatação das mesmas em todos os lugares.

Ao encarar a nação enquanto um fenômeno de ordem cultural, o autor verifica que a famílias nobres haviam empreendido esforços e disputas para tornarem-se o centro da unidade territorial e política de alguns territórios, isto, em muitos casos, contribuiu enormemente para a formatação de muitas nações, o que não havia ocorrido em outras nações, por exemplo, na Suíça e nos EUA (RENAN, [1882] 1997; 164).

É importante notar que ao passo que o autor rechaçava a ideia de que raças e etnias constituíam-se enquanto determinantes do caráter nacional, de certo modo também, procedia com uma desconstrução e desmascaramento de certo purismo nacional: “A verdade seria que não existiam raças puras” e segundo ele, basear a política sobre a análise étnica seria baseá-la em uma “quimera”: “Os países mais nobres como a Inglaterra, a França, a Itália eram aqueles em que os sangues eram mais misturados”. Na Alemanha, onde já se falava em raça ariana, “muito menos” (RENAN, [1882]1997; 166). Em busca de desconstruir outras supostas condições tidas como determinantes para a conformação das nações, como por exemplo, o espaço geográfico, a língua, a religião e os interesses em comum, o autor prossegue em suas discussões. Sobre a língua, por exemplo, demonstra como EUA e Inglaterra, embora comungassem do mesmo idioma, não se constituíam enquanto uma só nação, o mesmo poderia se dizer da Espanha e da América Espanhola (RENAN, 1997; p. 166). Para ele, nenhum dos aspectos citados era suficiente para definir a nação. A única definição possível, que se traduz comum a todas elas, seria, portanto, aquela que nota nessas configurações políticas uma vontade comum.

Como é possível tantas pessoas se considerarem pertencentes à mesma nação e nutrirem por ela e entre si um sentimento de comunhão? Reportando-se para um momento mais recente, Benedict Anderson (2008) analisa o fenômeno nacional e o nacionalismo questionando as possibilidades de se “imaginar a nação”, partindo do pressuposto de que ambos seriam produtos culturais específicos. Antes de ser algo concreto, para ele, assim como Renan (1882) a nação era algo “imaginado em comum”, uma imaginação capaz de criar vínculos.

Nesse sentido faz-se preciso, segundo ele, considerar com cuidado a suas origens históricas bem como de que modo seus significados se transformam ao longo do tempo e por qual motivo estes mesmos significados dispõem nos dias de hoje, de uma legitimidade emocional “tão profunda”. Além disso, o autor tentará mostrar:

(...) que a criação desses produtos, no final do século XVIII, foi uma destilação espontânea do cruzamento complexo de diferentes forças históricas. No entanto, depois de criados, esses produtos se tornam “modulares”, capazes de serem transplantados com diversos graus de autoconsciência para uma grande variedade de terrenos sociais, para se incorporarem e serem incorporados a uma variedade

igualmente grande de constelações políticas e ideológicas (ANDERSON, 2008; p. 30).

Dentro do que ele chama de “espírito antropológico”, propõe uma definição de nação tratando-a do mesmo modo que se trata o parentesco e a religião, por exemplo, e em vez de colocá-la ao lado do “liberalismo” e do “fascismo” como geralmente se fazia nas análises sobre nação. Para Anderson uma nação é uma “comunidade política imaginada e imaginada como sendo intrinsecamente limitada e soberana”. É limitada porque “(...) possui fronteiras finitas, ainda que elásticas, para além das quais existem outras nações”. É soberana porque, segundo ele, este conceito nasceu na época em que o Iluminismo e a Revolução estavam destruindo a legitimidade do Reino Dinástico hierárquico de ordem divina. Além disso, é imaginada como uma comunidade “(...) porque, independente da desigualdade e da exploração efetivas que possam existir dentro dela, a nação sempre é concedida como uma profunda camaradagem horizontal” (ANDERSON, 2008; p. 32- 34).

Segundo o autor a Revolução e o Iluminismo foram capazes de romper com a predominância de um pensamento religioso, os quais tinham como um de seus principais baluartes a ideia de Nação. Outro elemento superado foram as línguas as quais ele chama de “mudas sagradas”, ou seja, mais um meio de imaginar as grandes Comunidades do passado. O Latim, o Páli, o Chinês, o Árabe, segundo ele, seriam línguas que aglutinavam em si significados onde as pessoas embora não se comunicassem verbalmente (porque o acesso ao seu entendimento era restrito a poucos) comungavam uma fé no signo. Desse modo, uma diferença fundamental que irá descrever entre as Comunidades Clássicas e as Comunidades Imaginadas modernas é que as primeiras estavam ligadas uma língua sagrada e havia uma crença em seu sacramentalismo único (ANDERSON, 2008; p. 38 e 40).

Com o tempo houve uma desvalorização gradativa da língua sagrada. E esse rebaixamento seria sinal de um processo mais amplo, segundo Benedict, onde as comunidades sagradas amalgamadas por antigas línguas sacras vinham gradualmente se fragmentando, se pulverizando, sobretudo com o advento do capitalismo tipográfico que possibilitou a edição de muitos textos em línguas vernaculares (ANDERSON, 2008; p. 46).

O mesmo autor demarca a importância do jornal e do romance enquanto vetores que possibilitaram este vínculo “imaginário”. Segundo ele, também, a primeira fonte de vínculo imaginário é a simples coincidência cronológica. O ato de se estar vivendo no mesmo tempo que outra pessoa. A segunda fonte de vínculo imaginário é a relação entre o jornal como forma de livro e o mercado. E para isso é preciso ressaltar, de acordo com Lilia Moritz Schwarcz, que:

(...) a língua cumpre um papel essencial quando permite a unificação da leitura, a manutenção do suposto de uma antiguidade essencial, e, sobretudo, a partir do momento em que se torna oficial (2008; p. 13).

Por isso o fenômeno da vernacularização é fator de importância significativa para o surgimento de uma consciência nacional. E esta origem está ligada a uma “interação num sentido, mais ou menos casual entre: modo de produção e de relações de produção (o capitalismo), uma tecnologia da comunicação (a imprensa) e a fatalidade da diversidade linguística humana. De acordo com Anderson, as línguas impressas puderam lançar as bases da consciência nacional de três maneiras diferentes, em primeiro lugar e acima de tudo criando campos unificados de comunicação abaixo do latim (no caso ocidental) e acima dos vernáculos falados, em segundo lugar: o capitalismo tipográfico conferiu uma nova fixidez à língua, o que, a longo prazo, ajudou a construir aquela imagem de antiguidade . E em terceiro lugar: “(...) o capitalismo tipográfico criou línguas oficiais diferentes dos vernáculos administrativos anteriores. Inevitavelmente alguns dialetos estavam mais próximos da língua impressa e acabaram dominando suas formas finais ” (ANDERSON, 2008; p. 80). Investimentos analíticos como estes certamente contribuem para a desnaturalização da ideia de nação, ao desmistificar a ideia de nação, os argumentos de tais autores fazem com que ela possa ser vista com um produto cultural ou algo “imaginado” e, assim, abrir espaço para se pensar a inclusão de novas identidade em sua esfera de representação.