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Em contextos globais, posso citar, ainda, discussões fundamentais que também ilustram uma preocupação com a inserção de novos sujeitos na esfera de representação do Estado, em específico de sujeitos que para isso, precisam reivindicar uma identidade específica. Eric Wolf (2003a) em “Etnicidade e Nacionalidade” preocupa-se com este fenômeno étnico dentro do Estado-nacional. De que modo os grupos étnicos emergem dentro dele? Para responder tal pergunta, primeiramente, irá propor uma desnaturalização do grupo étnico enquanto entidade biológica e social que pode ser definida enquanto algo estático baseado em critérios implacáveis de ancestralidade. Sendo assim, para que certa desconstrução se faça possível, o autor ressalta ainda, a necessidade da substituição do próprio conceito de “cultura”, aquele restrito a uma perspectiva que o substancializa, por uma capaz de enxergar os fenômenos em movimento e transformação constantes.

Expõe criticamente, ainda, argumentos que apontam para a defesa de uma definição dos grupos étnicos que abriga uma percepção substancial dos elementos definidores de sua identificação e origem, ou seja, as visões primordialistas. Tais visões ideológicas tenderiam a mesclar biologia com herança socialmente adquirida. A origem e formação de tais identidades étnicas, ao contrário, segundo ele, dependeria, sim, de estímulos sociais, econômicos, políticos e históricos (WOLF, 2003a; 243, e 244). Para ele, reivindicações coletivas baseadas em argumentos de “precedência” e/ou “prioridade”, bem como amparados na posse de “essências” seriam como ficções.

Sua visão ampara-se no fato de que os grupos em questão não são dados naturalmente, eles estão sujeitos a transformações no decorrer do tempo e também são vulneráveis à estímulos ocasionais podendo ficar salientes ou até desaparecerem. Além disso, estas entidades, sempre conviveram com outras etnias, povos e nações (WOLF, 2003a; p. 244-245).

O surgimento do Multiculturalismo, que é, de forma genérica, um modo de abrigar e perceber o aparecimento de diferentes grupos e sujeitos no espaço de representação do Estado pode ser descrito por alguns teóricos como resultado de três variações concretas. São elas: 1) as negociações por reconhecimento e reparação em comunidades tradicionais; 2) o encontro entre “anfitriões” e imigrantes “(povos pós-coloniais com pretensões à cidadania ou refugiados requerentes de asilo); 3) A partir de algumas tentativas constrangidas e explícitas de desfazer as ordens raciais” (GILROY, 2007; p. 188).

Bauman (2003), ao levantar questionamentos acerca do multiculturalismo, de certo modo, interessa-se em discutir as relações entre comunidades étnicas e associações inseridas nesse contexto, bem como discutir a interação social. De acordo com ele a natureza das relações ocorridas no interior das comunidades étnicas, destoa daquelas ocorridas no interior das “sociedades nacionais” onde ocorre um intenso fluxo de desintegração. O comunitarismo, de modo geral, trata-se de uma reação contrária a este impulso desintegrador decorrente do avanço da globalização. Porém, fazer parte de um grupo não seria uma questão de escolha e diferenciando-se, por exemplo, do ato livre de consumir. Neste sentido, “(...) “as minorias étnicas” são antes e acima de tudo produtos de limites impostos de fora e só secundariamente do autofechamento” (BAUMAN, 2003; p. 83).

De acordo com Bauman (2003) a chave para compreender a natureza das diferenças inseridas no contexto do multiculturalismo, situa-se justamente na passagem deste estágio de construção da nação para o estágio pós Estado-nação (BAUMAN, 2003; p. 83). É neste entremeio que localiza-se o entendimento acerca da transição de uma espécie de “abominação

à diversidade” até sua “aceitação” e “inclusão”. No Estado-nação o propósito seria “unificar”, “convergir”, “tornar comum” um biotipo social, uma história, uma língua. Nas fronteiras do território nacional só cabia aqueles que estavam inseridos em seu conteúdo ideológico. Neste sentido, tudo que fugia aos parâmetros estereotípicos da nação, era coagido, discriminado, pois a nação precisava ser “homogênea”.

A nacionalidade compartilhada deveria desempenhar um papel crucial de legitimação da unificação política do Estado, e a inovação das raízes comuns e de um caráter comum deveria ser importante instrumento de mobilização ideológica _ a produção da lealdade e obediência patrióticas. Esse postulado se chocava com a realidade de diversas línguas (agora redefinidas como dialetos tribais ou locais, e destinados a serem substituídos por uma língua nacional padrão) (...) (BAUMAN, 2003; p. 83).

Com efeito, havia duas alternativas para as comunidades étnicas dentro do projeto de construção nacional: a assimilação ou o padecimento (BAUMAN, 2003, p. 85). Sendo assim o autor demonstra também que a exclusão ou negação da participação de pessoas ao processo assimilacionista proposto arbitrariamente pelos gestores do Estado-Nação foi o primeiro motivo capaz de gerar fraternidades entre estas mesmas pessoas. Sentimentos comuns resultantes da exclusão de sujeitos de um projeto de nação foram um dos ocasionantes da formatação de comunidades étnicas (BAUMAN,2003, p. 87). Sendo assim, em contextos mais recentes as preocupações esboçadas acima tornam-se frequentes, tanto na prática quanto nas teorias. Porém, agora, segundo alguns teóricos, não se fala mais em Estado-nação e sim em um período

“pós-nacional” o qual serviria para denotar, além de outros elementos, o enfraquecimento de ideologias e instrumentais políticos que foram capazes de impor durante décadas uma

“unificação” que pudesse mascarar as diferenças. Dando continuidade ao debate dos fenômenos “pós-nacionais”, considero pertinente, ainda, antes de avançar, assim como propôs Hall (2003), proceder com a separação estabelecida entre “multicultural” e “multiculturalismo”.

Embora não sejam iguais, de acordo com o autor, um deriva do outro, onde o segundo seria uma espécie de resposta ao fenômeno “multicultural”, uma estratégia política frente às demandas “da diferença”, uma palavra usada sempre no singular, um substantivo, ao contrário da sua “genitora” a qual, por definição é plural (HALL, 2003; p. 50). Baseando-se nas classificações de Goldberg33, Hall (2003) ressalta o fato também de não somente existir um tipo de “multiculturalismo”. Do mesmo modo que são muitos os exemplos de países e experiências

multiculturais34, pode-se afirmar que existem muitas doutrinas, ou seja, muitas formas (sempre inacabadas) de se pensar o “multicultural”. Sendo assim, chega a citar seis tipos de “multiculturalismo”: um conservador; um liberal; um pluralista; um comercial; um corporativo e outro crítico (HALL, 2003; p. 50 e 51).

Contudo, tendo em vista o seu caráter de dissenso e ambiguidade, o “multiculturalismo” tem recebido críticas tanto da direita conservadora, quanto de liberais, de modernizadores, bem como, também, de alguns pós-modernos e esquerdistas anti-racistas. Para alguns dos modernizadores, por exemplo, a conquista ocidental do universalismo sob o particularismo étnico foi um divisor de águas na superação do tradicionalismo à modernidade onde tal inversão deveria ser combatida. Já nas críticas dos pós-modernos, questiona-se o sujeito como estando localizado, fixo, ao invés do contrário: “contingentes e desimpedidos” o que defende os autores dessa corrente.

Ainda, no caso dos esquerdistas, aponta-se para uma falha destas políticas, sobretudo por focarem na questão cultural e identitária em detrimento de aspectos materiais e econômicos. Tem, além disso, as críticas que rotulam o “multiculturalismo” como sendo de “boutique”35 o qual “celebram a diferença sem fazer diferença”, além daquilo que foi apontado por autores como Sarat Maharaj, como sendo característico de uma lógica assustadoramente semelhante a do apartheid (HALL, 2003; p. 51 e 52).

Outra crítica, na qual estou de acordo, é feita por Paul Gilroy (2007). Para este autor, o multiculturalismo é um ideal que mascara as desigualdades étnico-raciais, proposto por sociedades marcadas por um passado de exploração e ideologias colonialistas. Por isso propõe o uso de outro termo: “convivialidade”36. Falar de convivialidade seria reconhecer não somente as diferenças, como também as hierarquias presentes na estrutura social como um todo. Sugerir

convivialidade enquanto conceito e termo para se refletir o pluralismo étnico-racial, ao invés

de “multiculturalismo”, seria reconhecer que as análises sobre tal realidade têm sido insuficientes, reconhecendo que se faz preciso considerar as trajetórias e biografias das vítimas do racismo para apreciar com mais precisão os contextos e processos inerentes a este fenômeno, além da história e da experiência colonial tão presentes.

34São exemplos de países multiculturais, por exemplo, os Estados Unidos da América, África do Sul, Sri Lanka, Nova Zelândia, Indonésia, Nigéria, França, Malásia, Grã-Bretanha. (Hall, Stuart, 2003; p. 50). 35 Fish, S. Boutique Multiculturalism. In: Melzer, A. et. al (Edi). Multiculturalismand American Democracy. Lawrence: universityof Kansas. Press, 1998.

36 Joanna Overing, Marilyn Strathern e Cristina Toren usam o termo “convivialidade” no sentido de gerenciamento de diferenças, ao lado de sociality.

Seria ter em mente, de acordo com o autor, que os direitos humanos são insuficientes para compreender e agir sobre tal complexidade, pois não lutam para mudar estruturas sociais e sim para realizar tarefas em conformidade com o Estado em defesa de uma “humanidade universal”. Gilroy, ao passo que irá criticar a ausência de estudos que considerem a importância de se observar as hierarquias e divisões raciais nos cenários de uma “Época de Rendição”, reafirma a importância de considerá-los como peças importantes.

Tal esquecimento ou desinteresse acadêmico pela discussão nesses parâmetros, segundo Gilroy, denota um lapso, ou seja, uma oportunidade falhada, sobretudo no que tange às lutas em torno do significado dos direitos humanos (GILROY, 2007; p. 175) que, de acordo com este abrange outras ocasiões onde a ideia de raça, colônia e império são ignorados. Para ele, tal “passado” deve ser levado em conta, e cita que no que tange ao cenário das imigrações, por exemplo, as experiências coloniais, contribuem para um entendimento do que ocorre “agora”. Propõe que se faça o uso do termo convivialidade – ao invés de multiculturalismo –, entendendo-o como um padrão social no qual os grupos citadinos, culturalmente diferentes, vivem em proximidade, mas onde as suas particularidades raciais, lingüísticas e religiosas não provocam – como a lógica do que ele chama de “absolutismo étnico” sugere que seria possível – descontinuidades da experiência, ou problemas insuperáveis de comunicação.

Tal termo, como saída para interpretar as relações entre pessoas de culturas diferentes, não tenta banir o conflito, mas, ao contrário, reconhece tal complexidade onde as pessoas estão equipadas criativamente com os meios quotidianos necessários para gerirem antagonismos nos seus próprios interesses e nos interesses dos outros (GILROY; 2007; p. 197).

Assim que se reconhecer que a exposição à alteridade pode envolver mais do que o risco, a convivialidade vem para ficar. A alternativa que ela representa leva-nos a aplaudir as exigências dos imigrantes por uma organização política mais amadurecida que, mesmo que não seja isenta de racismo, pode estar mais bem equipada para lidar com as desigualdades raciais como uma questão de política (...)