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Existe uma multi-artista chamada Grada Kilomba que fez uma exposição em julho de 2019 na Pinacoteca de São Paulo intitulada “Desobediências Poéticas” que fala justamente sobre a descolonização dos saberes, buscando uma ideia pós-colonial do encontro com o conhecimento. Kilomba se insere como uma artista interdisciplinar ao trabalhar com leituras cênicas, instalações, performances e vídeos, além de ser autora de dois livros. Mulher nascida em 1968 na cidade de Lisboa com ancestralidade angolana. Como o próprio nome sugere, “Desobediências Poéticas” é uma exposição com um forte caráter político, que manifesta-se sobre sermos corpos e mentes desobedientes. Reintegrando a posse dos grupos silenciados e marginalizados ao longo da história.

Sempre deixamos muito claro em nossos laboratórios que estamos em um espaço seguro. Um lugar onde não existirão julgamentos, preconceitos ou qualquer atitude que possa frear seu processo pessoal. É muito importante poder sinalizar essa situação de extrema confiança e conforto para o avanço das atividades performáticas. No Arkhétypos nós buscamos nos desprender de quaisquer amarras sociais de análise depreciativa e lançarmo-nos no profundo de nossas almas.

Trago a referência a Kilomba pois vejo uma conexão entre o seu trabalho e as poéticas com as quais o teatro ritual proposto pelo grupo Arkhétypos trabalha, principalmente quando penso em um processo de descolonização do imaginário. Processo este que se dá justamente no momento em que criamos uma estrutura artística e prática para trabalharmos o nosso inconsciente de maneira liberta da ideia de que existe apenas uma forma de se pensar o

mundo, essa forma colonial eurocêntrica. Permitimos, enquanto coletivo, o avanço da reflexão da individualidade de cada um. E neste sentido nos encontramos com o afronte que é o teatro ritual nos dias atuais no nosso país.

Segundo a atriz, pesquisadora e colaboradora do Grupo Arkhétypos, Rocio del Carmen Tisnado Vargas:

Tratar de descolonização implica tratar das relações de poder da modernidade que se mobilizam entre camadas políticas, sociais, culturais, econômicas e epistemológicas, e das ações que podem nos trazer uma atitude de oposição a essas ordens. (2016, p. 77)

Para Rocio Vargas discutir a questão da descolonização é discutir as esferas de poder e a arte é um excelente canal para isso:

É por isso que a prática do teatro e a arte em geral são um instrumento poderoso para o processo de descolonização. Antes, porém, também temos de descolonizar as práticas e os instrumentos utilizados por nós para fazer esse teatro, os quais o imperialismo acadêmico tem tornado hegemônicos por serem eurocêntricos. (2016, p. 113)

Penso que o teatro ritual é um alternativa para se fugir desse imperialismo acadêmico, uma saída para ver o mundo assim com Eduardo Galeano descreve: “Cada pessoa brilha com luz própria entre todas as outras. Não existem duas fogueiras iguais.12” É realmente uma

pedra no sapato desse sistema estatal uma estruturação do conhecimento que não seja a caixa limitante da sociedade capitalista completamente produtivista, onde não há tempo para olhar para o outro, para si, e refletir sobre o lugar onde se está inserido. Apenas produzir e silenciar, tornar máquina o ser. Nosso fazer é uma desobediência. Grada Kilomba questiona com sua obra exatamente quem são aqueles que podem falar, sobre o que podem falar e quando, e já no nosso jogo ritual, por exemplo, todos têm sua voz e sua vez, todos falam, gritam e cantam, como e quando quiserem. Através do jogo ritual nós despertamos um saber corporal que flui pelo viés do sensível. Vejamos o que nos diz Allan Phyllipe de Araújo, ator do Grupo Arkhétypos:

(...) meu corpo sensível é memória, jogo, afeto. Compreender o corpo sensível é você se dar a oportunidade de sentir e fazer o outro sentir, e descobrir que ele carrega um aspecto político forte que você precisa deixar sair, permitindo ao sujeito ser quem realmente ele é. (ARAÚJO, 2019, p.100).

Aqui criamos um tipo de incubadora do que chegará à sociedade para enfrentar novas barreiras. Fazemos parte da criação de seres políticos. Buscamos essa liberdade de uma criatura para descobrir o mundo da sua maneira. Certa vez ouvi em uma sessão de meditação coletiva em Fortaleza sobre quem são as pessoas inteligentes nesse mundo. O “guru” dizia que a inteligência está intimamente conectada com a sensibilidade que desenvolvemos e praticamos no nosso dia a dia. A pessoas mais inteligentes são as mais sensíveis. São as pessoas capazes fácil adaptação, de lidar com as adversidades e com as simplicidades com muito tato, muita percepção, compreensão e força. Praticar a sensibilidade, os vários ângulos de ver e perceber o mundo é uma forma de tirar o poder dos dominantes. É tomar a própria voz e gritar de volta.

Entendo então que, com esta ação de dar voz a um conhecimento sensível entramos no que podemos chamar de uma “pedagogia da descolonização do imaginário”, ou seja, adensamos essa busca da construção subjetiva do sujeito a partir de outros caminhos, pelo Sul dos imaginários. A forma escolar de legitimar o conhecimento é uma provação do conteúdo e não sua habilidade de dialogar, de ser e estar no mundo. Qual é a real utilidade desse ensino, de forma prática e existencial?

É aqui que o teatro ritual mostra-se preciso, pois nele cria-se o espaço da possibilidade para encontrarmos outra maneira de buscar o conhecimento. Estimulamos a busca, o caminho, mais do que um destino final. A meu ver, podemos incomodar com essa educação diferenciada sobre si, sobre as relações, sobre as possibilidades de existir no mundo, nesse processo de produção de conhecimento que dá espaço a expansão do ser. Me espelho nesse pensamento de Grada Kilomba, dado durante uma entrevista acerca de sua instalação “Desobediências Poéticas”13:

Quando um sistema está habituado a definir tudo, bloquear os espaços e as narrativas e nós, a partir de um processo de descolonização, começamos a adentrar esses espaços, começamos a narrar e trazer conhecimentos que nunca estiveram presentes nesses lugares, claro que isso é vivenciado como algo ameaçador. (KILOMBA apud RIBEIRO, 2019, p.11)

Aqui é quando nos tornamos desobedientes ao sistema, e ser desobediente ao sistema é ser criativamente transgressor.

13 Entrevista com Grada Kilomba: desobediências poéticas. Curadoria de Jochen Volz e Valéria Piccoli; ensaio

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