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Encontros revolucionários: o Grupo Arkhétypos e suas desobediências poéticas

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

DEPARTAMENTO DE ARTES

CURSO DE LICENCIATURA EM TEATRO

ANA CLARA VERAS BRITO DE ALMEIDA

ENCONTROS REVOLUCIONÁRIOS:

O GRUPO ARKHÉTYPOS E SUAS DESOBEDIÊNCIAS POÉTICAS

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ANA CLARA VERAS BRITO DE ALMEIDA

ENCONTROS REVOLUCIONÁRIOS:

O GRUPO ARKHÉTYPOS E SUAS DESOBEDIÊNCIAS POÉTICAS

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Universidade Federal do Rio Grande do Norte como requisito parcial para obtenção de título de Licenciada em Teatro.

Orientador: Robson Carlos Haderchpek

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FICHA CATALOGRÁFICA

Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI

Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Departamento de Artes – DEART

Almeida, Ana Clara Veras Brito de.

Encontros revolucionários : o Grupo Arkhétypos e suas desobediências poéticas / Ana Clara Veras Brito de Almeida. - 2020.

39 f.: il.

Monografia (licenciatura) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Licenciatura em Teatro, Natal, 2020.

Orientador: Prof. Dr. Robson Carlos Haderchpek.

1. Encontros. 2. Interculturalidade. 3. Epistemologias do sul. 4. Desobediências poéticas. I. Haderchpek, Robson Carlos. II. Título.

RN/UF/BS-DEART CDU 792

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

DEPARTAMENTO DE ARTES

FOLHA DE APROVAÇÃO

O Trabalho de Conclusão de Curso intitulado Encontros Revolucionários: O Grupo Arkhétypos e suas Desobediências Poéticas apresentado por Ana Clara Veras Brito de Almeida contou com a participação da seguinte banca examinadora:

______________________________________ Prof. Dr. Robson Carlos Haderchpek

(ORIENTADOR - DEART/UFRN)

______________________________________ Profª. Drª Karyne Dias Coutinho

(Professora convidada – UFRN)

______________________________________ Prof. Ms. Rocio del Carmen Tisnado Vargas

(Professora convidada - México)

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DEDICATÓRIA Mulher de luta O beijo dela tinha gosto de liberdade (Ryane Leão)

Dedico esse trabalho a todxs aquelxs que buscam liberdade, que são feitxs de luta e acima de tudo: de amor.

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AGRADECIMENTOS

Sou grata a todas as pessoas que me ensinaram sem saber.

Sou grata àqueles que me deram o primeiro suspiro de vida, Gleika e Expedito, ou Mamma e Lora, que foram os primeiros a me ensinar a olhar com olhos de amor, que me permitiram conquistar a liberdade desde que aprendi a correr (pois eles sabem que nunca aprendi a andar). Eles que me ensinaram a buscar luz, mesmo nos corações mais escuros, a escutar música nos mais profundos silêncios. E sempre, acreditar em mim.

Sou grata também às companheiras dos meus pais. Fá que me ensinou que amor e dedicação andam juntos, que cuidar uma da outra é o que vale no final do dia. Mel que é o significado da doçura e carinho, que anda de mão dada com a música que mora dentro dela.

Sou grata às minhas irmãs: Becca, Juju, Sophis e Jade, que reanimam meu espírito cada vez que nos encontramos, que me ensinaram que a distância não significa nada além de uma boa dose de saudade, muitos abraços apertados e um bom filme pra dormir.

Sou grata à Javier Díaz, meu esposo, companheiro e melhor amigo, o artista que mais admiro e enalteço com toda minha alma. Ele que me ensinou a ter esperança, acreditar na luta e na revolução que é amar e fazer arte. Que amar é uma escolha, e nós nos escolhemos. De tudo, ao meu amor serei atenta.

Sou grata à Gagá, minha mãe do teatro, da palhaçada e da mulher liberta.

Sou grata aos meus amigos de caminhada durante (e fora) o curso de licenciatura: Alê (minha mãe de Natal), Thazio (meu parceiro de todas horas), David (minha alma gentil) e Roberta (a fulô do coco de roda). Todos com sua potência particular e admirável.

Sou grata a Nadja Rossana e Cléo Araújo pela força do feminino, por segurarem a minha mão firme quando achei que não mais podia.

Sou grata à todas as minhas professoras e professores! À Robson por ser um espelho do amor e da paciência, pela eterna acolhida e morada no seu coração. À Karyne por sua candura e por me ensinar a conhecer minha própria força como mulher e artista.

Sou grata à Rocio, nossa fênix de fogo! Mulher que como fogueira queima e aquece os corações!

Sou grata ao Grupo Arkhétypos de Teatro e todos os seus membros! Cada um fazendo brotar no meu jardim uma flor de esperança e afeto. Grata por ampliar meus horizontes e destruir barreiras. Grupo no qual fiz ninho.

Sou grata à toda poesia que mora no meu olhar, que me permite enxergar beleza e arte aonde eu for.

Sou grata à todas as pessoas que tive a fortuna de encontrar nessa encarnação, e que de uma forma ou de outra alimentaram minha alma e me ajudaram a chegar aonde piso agora.

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RESUMO

O seguinte trabalho de conclusão de curso é decorrente da pesquisa de iniciação cientifica realizada na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) intitulada “Aspectos Pedagógicos do Teatro Ritual” sob a orientação do Prof. Dr. Robson Carlos Haderchpek. Esta pesquisa me deu a possibilidade de encontrar caminhos para uma descolonização do imaginário e principalmente investigar ações de desobediências poéticas a partir das práticas corporais e dramatúrgicas que o Grupo Arkhétypos de Teatro desenvolve há 10 anos. A partir de uma metodologia de caráter empírico busquei analisar o meu percurso junto ao Grupo e discorrer como cheguei a compreender sua atividade teatral ritualística como uma desobediência poética em si.

Palavras-chave: Encontros, Interculturalidade, Epistemologias do Sul, Desobediências Poéticas.

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ABSTRACT

The following course conclusion work is the result of the scientific initiation research carried out at the Federal University of Rio Grande do Norte (UFRN) entitled “Pedagogical Aspects of the Ritual Theatre” under the guidance of Prof. Dr. Robson Carlos Haderchpek. This Research gave me the possibility to find ways to decolonize the imaginary and mainly to investigate actions of poetic disobedience based on the bodily and dramaturgical practices that the Arkhétypos Theatral Group has been developing for 10 years. Based on an empirical methodology, I tried to analyze my path with the Group and discuss how I came to understand its ritualistic theatrical activity as a poetic disobedience in itself.

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ÍNDICE DE FIGURAS

Figura 1. Primeiro ensaio aberto, 2018... 18

Figura 2. Cena final: "A Morte"...20

Figura 3. Apresentação do processo "Tempo". Museu Câmara Cascudo. 2019... 25

Figura 4. Oficina “Encontro de Roda”, 2019. ... 26

Figura 5. "Encontros de Roda", 2019... 29

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO: O GRUPO ARKHÉTYPOS... 11

2. O ENCONTRO COMO NECESSIDADE... 13

3. “ENTERRASER”... 16

4. A COLETIVIDADE COMO CONEXÃO DE MUNDOS... 20

4.1 O PROCESSO “TEMPO”... 20

4.2 MÉXICO-BRASIL: UMA DRAMATURGIA EM ENCONTRO... 25

4.3 ARKHÉTYPOS DO SUL: ENCONTROS REVOLUCIONÁRIOS... 31

5. DESOBEDIÊNCIAS POÉTICAS... 33

6. CONCLUSÃO... 36

7. REFERÊNCIAS... 37

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1. INTRODUÇÃO: O GRUPO ARKHÉTYPOS

Esse artigo nasce do Projeto de Iniciação Científica “Aspectos Pedagógicos do Teatro Ritual” realizado por mim sob a orientação do Prof. Dr. Robson Carlos Haderchpek na Universidade Federal do Rio Grande do Norte. O Projeto se enquadra na modalidade PIBIC-UFRN e teve bolsa financiada pela PROPESQ 2019-2020.

Mais que nascer sob a perspectiva acadêmica, esse estudo nasce também de uma forte identificação pessoal, desde um caminho sem fuga pelo desejo de me encontrar com outras formas de fazer teatro, que para mim é um sinônimo de revolução. Uma revolução sensível, forte e aparente, completamente impactante e ritualística.

Inicio essa discussão com um pequeno conto para explicar de maneira muito breve o sentimento que mora dentro de mim, e que coaduna com o que o Grupo Arkhétypos significa ao meu ver. Essa história conheci através dos lábios dos meus pais, em momentos de consolo, de luta e estímulo de seguir em frente.

Existia, não há muito tempo atrás, uma grande floresta. Tão gigante que cabia toda a existência aí, a diversidade fazia morada e os animais viviam seus dias em comunhão natural com seu mundo. Um dia houve um grande incêndio. Ninguém sabia ao certo como começou, mas todos correram, o mais rápido que podiam, desesperados partiram, galoparam por cima uns dos outros, bichos atropelando bichos. Todos fugiam para a mesma direção, longe dali. Porém um pequeno beija-flor chamou atenção por estar voando justamente para cima do fogo. Alguns animais pararam em choque e perguntaram ao beija-flor o que ele estava fazendo. Muito determinado e rápido o pequeno pássaro os respondeu: “É preciso apagar o incêndio, minha casa está aqui, eu estou aqui e vou fazer a minha parte”. De pingo em pingo o beija-flor seguia lançando água com seu pequeno bico, incessantemente. Atônitos outros grandes animais ainda não entendiam e insistiam que ele fugisse, como todos. Mais uma vez respondeu: “Sei que não é grande coisa, mas cada gota importa”. Então contra as manadas, o beija-flor seguia.

Essa história continua, porém prefiro retomá-la em outro momento. Agora preciso apenas lhe contar que estou e estamos fazendo nossa parte.

Outra coisa que é preciso deixar claro, agora que estamos começando essa viagem dentro do meu percurso de descobertas no ninho do Grupo Arkhétypos, que entendam minha

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posição política. Entendam que sou mulher porque me tornei uma, porque hoje caminho para o entendimento de quem sou enquanto elemento político no cotidiano da minha existência. Não preciso necessariamente falar de onde eu vim, mas pra onde tenho ido, aonde tenho me levado. As coisas que serão ditas nessas páginas seguintes dizem respeito a tudo que construí no meu caminho durante e fora do meu período de graduação no Curso de Licenciatura em Teatro da UFRN.

Minha conexão com o Grupo Arkhétypos nasceu como naturalmente nasce no curso de licenciatura em Teatro da UFRN, na disciplina primeira que fazemos quando entramos: Jogo e Cena I, com o Prof. Dr. Robson Carlos Haderchpek. Nessa disciplina temos a oportunidade de encontrarmo-nos com um outro fazer teatral, que pra mim era estranho e fora da minha realidade escolar de teatro. Nesta disciplina nós desenvolvemos um trabalho artístico não partindo de um texto teatral ou literário já construído, mas sim de nós mesmos, de nós enquanto entidade de estudo artístico e material. Foi a minha primeira vez com o teatro ritual e sobre este assunto, existe uma citação que nós enquanto “arkhetypianos” gostamos muito e que diz assim:

O teatro era (e permaneceu, mas em um âmbito residual) algo como um ato coletivo, um jogo ritual. No ritual não há atores e não há espectadores. Há participantes principais (por exemplo, o xamã) e secundários (por exemplo, a multidão que observa as ações mágicas do xamã e as acompanha com a magia dos gestos, do canto, da dança etc.). (GROTOWSKI, 2007, p. 41. Grifo nosso).

Entendo assim nosso trabalho de jogo ritual como um convite à legitimação da participação de todos no ato artístico, sejam aqueles convidados a sentar-se para desfrutar ou aqueles convidados a estar no foco da ação da cena, somos todos atuantes do momento construído.

Então, foi em 2016 que pude experienciar esse outro espaço-tempo que se instaurava com a prática desse teatro ritual proposto por Haderchpek na disciplina citada, e sua metodologia desembocava também nas atividades do Grupo Arkhétypos de Teatro.

Felizmente no Departamento de Artes da UFRN existe um projeto de extensão que se caracteriza por ser aberto a toda comunidade, regido pelo próprio grupo, onde são ofertadas oficinas de práticas corporais sob a metodologia arkhetypiana. As atividades são semanais e os integrantes do grupo, que são voluntários no projeto de extensão, ministram tais oficinas e explicam um pouco mais, através inclusive da própria prática, como funcionam as escrituras

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dramatúrgicas, os trabalhos pré-expressivos, a poética dos elementos e a dramaturgia dos encontros. Estes conceitos serão esmiuçados mais adiante no decorrer deste trabalho, contudo, saliento desde já que pude fazer parte de algumas dessas oficinas, onde aprofundei meus interesses pela prática do grupo e caminhei mais adentro da inquietação que me causavam esses encontros rituais.

2. O ENCONTRO COMO NECESSIDADE

Para falar sobre as metodologias de trabalho do Grupo Arkhétypos sinto que é um bom caminho relatar para você, que agora lê esses meus pensamentos, a experiência vivida completamente submersa no trabalho de grupo durante esses últimos 4 anos da minha vida universitária.

Se torna muito complexo dizer que existe apenas uma “metodologia de trabalho”, pois parece que ignoro a parte subjetiva e empática dessa estrutura de laboratório. E falo laboratório não por acaso ou forma diversa de usar uma palavra. Pois veja, em um laboratório se fazem experiências, se descobrem coisas, tomam-se riscos, se organizam ideias, se desconstroem ideias, sonha-se, desfruta-se, envolve-se com o objeto estudado. Aqui o objeto estudado é você. É sua vida, seu corpo, seu paladar, seu tato, seu sentir, sua relação consigo mesmo.

Penetramos na atmosfera do encontro1. Primeiramente o encontro consigo mesmo.

Feche os olhos, respire fundo. Sinta sua respiração caminhar pelo seu corpo, através das suas veias, suas águas, seus nervos e órgãos. Conecte-se. Se conecte. Cave fundo e ai dentro você vai se encontrar. Em uma imagem, uma cor, um som, uma lembrança, uma ideia nova: você está aí. Em todas essas imagens e sensações, você está aí. Esse é o primeiro passo para iniciar a prática laboratorial do Arkhétypos: encontrar-se consigo mesmo. Uma voz guia, externa, uma professora, colega ou diretora estará contigo te ajudando a trilhar nesse caminho primeiramente solitário. Depois de mergulhar-se em suas próprias águas, seguimos para o próximo degrau dos encontros: o encontro com o outro.

1A proposta metodológica da dramaturgia dos encontros é apresentada no artigo “A Dramaturgia dos Encontros

e o Jogo Ritual: Revoada e A Conferência dos Pássaros” publicado por Haderchpek na Revista Encontro Teatro nº3 (2016b).

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Imagine você em um salão de trabalho, de olhos fechados, rodeado não somente de suas imagens e sensações, mas também de outros corpos que estão fazendo o mesmo que você: encontrando-se. É chegado um momento do laboratório onde os olhos se abrem e se veem. Um olhar toca o outro, e como um ímã de que não se pode fugir: vocês estão conectados. Inicia-se então uma conversa não-verbal, um almoço sem comida, um abraço ainda sem toque, entre você e o outro. Estamos em jogo:

Em alguns caminhos artísticos da educação é de importância crucial trazer a parte não verbal da comunicação, como forma de expressão em seu próprio nível consciente, para investigar esse conteúdo e permitir que ele seja investigado, para expandi-lo e disponibilizá-lo a um processo artístico e usá-lo em apresentações. Para os artistas, isso significa estar aberto a se envolver com esse tipo de investigação para sintonizar o corpo como um instrumento, mergulhar em diferentes níveis de energia, olhar para o mundo do indizível, perder-se no tempo, explorar novos espaços internos e externos e encontrar caminhos que permitam encontros consigo mesmo e com os outros.2

(HAUSER-DELLEFANT3, 2019, p. 9)

Jogamos todos o mesmo jogo. Dentro dessa arena somos todos participantes cruciais, atuadores, fazedores, somos ação. O processo criativo se dá a partir dessas relações instauradas pelos atores/performers, através de imagens, músicas, poemas, contos, sons e histórias que compartilhamos no processo, que chamamos de dramaturgia dos encontros (HADERCHPEK, 2016b), conceito que tem sido trabalho no Grupo Arkhétypos há 10 anos, como nosso modo de pensar a dramaturgia teatral. A dramaturgia dos encontros consiste justamente em desenvolver e avançar com essas práticas laboratoriais, em seu caráter ritualístico e improvisacional, essencialmente constituído de encontros, até chegarmos ao ponto de uma organização dramatúrgica para que a experiência seja melhor compartilhada com o público futuro. É tal como nos diz Haderchpek, diretor do grupo em seu texto “A poética dos elementos e a imaginação material nos processos de criação do ator: diálogos latino-americanos”:

2 Livre tradução para: “In some artistic paths of education it is of crucial importance to bring the nonverbal part

of communication, as a form of expression in its own right conscious level, to investigate this content and let it be investigated, to expand it, make it available to an artistic process and use it in presentations. For the performers, this means to be open to engage with this type of investigation to tune the body like a instrument, to dive into different levels of energy, look into the world of the unspeakable, get lost in time, explore new internal and external space and find paths that allow for encounters with oneself as much as with others.” (HAUSER-DELLEFANT, 2019, p. 9).

3 Professora Angelika Hauser-Dellefant da University of Music and Performing of Vienna, uma grande amiga e

pesquisadora do Grupo Arkhétypos de Teatro. Citação do seu livro intitulado “Understanding Without Words”, que é dedicado a parceria entre as duas universidades onde ela pode estudar a comunicação não-verbal do Grupo,

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(...) Nesta fase de realização dos laboratórios os atores se colocam dentro do “jogo ritual” e a partir deste jogo são criadas as cenas e revelados os personagens/arquétipos que vão delinear a dramaturgia do espetáculo, dramaturgia essa que denominamos “dramaturgia dos encontros”. (HADERCHPEK, 2016a, p.2650)

Vamos descobrindo as referências (textuais, pictóricas, sonoras e etc.) que sentimos necessidade no decorrer desses laboratórios, nesta etapa. Assim, acessamos através desses estímulos criativos partes do nosso inconsciente que nos conecta ao que chamamos de arquétipos, esse padrão do comportamento humano que se manifesta ao longo de nossas decisões, atitudes, culturas e acontecimentos anteriores, e nós lhe damos forma estética na cena. De acordo com Carl Gustav Jung:

O significado do termo archetypus fica sem dúvida mais claro quando se relaciona com o mito, o ensinamento esotérico e o conto de fada. [...] O fato de que os mitos são antes de mais nada manifestações da essência da alma foi negado de modo absoluto até os nossos dias. O homem primitivo não se interessa pelas explicações objetivas do óbvio, mas, por outro lado, tem uma necessidade imperativa, ou melhor, a sua alma inconsciente é impelida irresistivelmente a assimilar toda a experiência externa sensorial a acontecimentos anímicos. (2012, p. 14)

A fim de assimilar essa experiência sensorial, nós adentramos em nossos laboratórios na busca pelos encontros, base de todas as relações. Primeiro instauramos o ambiente do jogo coletivo, através de estímulos sensoriais, que muitas vezes são músicas, cheiros, instrumentos musicais, bacias de água, terra, folhas ou velas. Buscamos dispor no espaço catalisadores direcionados à temática do trabalho do dia, para abrir uma vasta gama de possibilidades de interações elementais.

Após instaurada esta atmosfera ritualística dentro de cada um dos jogadores, passamos a uma investigação do encontro consigo mesmo, a sua própria relação com você neste estado de jogo, de total abertura do seu ser. Nos tornamos seres porosos, afetados (por meio dos afetos sensoriais, emotivos e visuais). Como menciona Allan Phyllipe de Araújo, também ator do grupo: “Eu existo por que todo o resto do nosso mundo existe. Cada cadeira, mesa, corpo, água, luz, toque, relação e afecção fazem com que eu exista e aumente minha potência de ser quem eu sou: sendo afetado ou afetando os outros.” (2019, p.33).

Seguindo na ideia da importância dos encontros no nosso trabalho, me lembro de uma frase do filme “Into the Wild” (2008), onde o personagem principal depois de viajar tantos anos sozinho pelo mundo encontra-se muitas vezes infeliz. E finalmente entende que “a

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felicidade só é real quando compartilhada”. Esse filme me fez perceber a necessidade dos encontros não somente como uma alternativa à solidão, mas como reafirmação de nós mesmos enquanto seres humanos. O ritual, o teatro, o jogo são acontecimentos intrínsecos da condição humana. Chamo de acontecimentos pois entendo que são momentos únicos, irrepetíveis e efêmeros, feitos para acabar. Os encontros são esses momentos raros e intensos em sua totalidade, onde podemos compartilhar nossas vidas, nossas angústias, nossas alegrias, nossos mundos, nossos imaginários, e somente assim eles se tornam reais.

Para mim se torna primordial o encontro, em toda sua completude. Desde a possibilidade de acessar-me enquanto indivíduo, relacionar-me com outros seres tão diferentes de mim e ainda assim em total disponibilidade de jogar e criar comigo, até a organização estética de um espetáculo ritualístico.

Quando vivemos o acontecimento da apresentação pública vivemos nosso último estágio do processo criativo: o encontro com o público. E aqui prefiro escrever público e não plateia, porque a escolha implica em uma faceta da etimologia da palavra “público” que tem a ver com ser relativo ou pertencente a um povo, a uma coletividade. No trabalho ritual do Grupo Arkhétypos o público é tão participante quanto os atores elencados para constituir as cenas de ações principais, porém toda a ação só ocorre com a existência de todas as partes desse fenômeno do acontecimento teatral.

Conecto essa reflexão à minha experiência em encontro com o público, quando recordo a sensação de expansão do meu próprio ser em cena e a certeza da união e atenção a tudo ao nosso redor enquanto participantes coletivos, estando todos conectados às ações ritualísticas que eu propunha ao centro da roda de apresentação. Nos tornamos uma corrente de afetos, quando tudo que eu poderia propor reverberava e afetava ao público, assim como sua interação comigo era capaz de afetar meu ser em cena. Essas sensações pude acessar principalmente ao fazer parte do espetáculo “Enterraser”, que veremos a seguir.

3. “ENTERRASER”

Depois de um tempo ainda no Curso de Licenciatura em Teatro recebi o convite para participar de um novo processo do Grupo Arkhétypos, dessa vez dirigido por uma das atrizes do mesmo, Nadja Rossana Lopes de Sousa, em 2017. Sem pensar duas vezes aceitei o desafio que viria pela frente. Uma coisa muito curiosa que acontece em nossos processos, e dizemos

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muito entre nós, é que só fica no processo quem tem que ficar. É muita coragem assumir as batalhas que enfrentamos nos caminhos laboratoriais que escolhemos, pois permitir-se mergulhar tão profundo nos universos que encontramos é um ato de coragem em um belo caminho de autoconhecimento e formação artística. Segundo Nadja Rossana:

O teatro conta histórias, e neste processo muitas histórias surgiram. Algumas seguiram com seus criadores, outras permaneceram a sua energia e ajudaram a criar o experimento cênico, mas todas fizeram os indivíduos que participaram deste processo olhar um pouco para si mesmos e observar as imagens do seu inconsciente. (SOUSA, 2019, p. 136.)

Em 2019 estreamos o espetáculo composto apenas de mulheres, desde sua percussão ao vivo à preparação vocal, intitulado “emTerraSer”4. Foi uma construção de 1 ano de

laboratórios cênicos e muita força do feminino. Esse espetáculo nasceu da curiosidade que emergiu com a descoberta de um conto africano chamado “A Canção dos Homens” de autoria de Tolba Phanem. A história fala sobre uma tribo que, quando uma mulher está grávida, a comunidade se une para durante sua gestação criar para tal criança que está por vir a sua própria canção. Essa música será cantada para ela cada vez que sentir-se perdida de si, como um lembrete de quem verdadeiramente é. Encontramos aí muita beleza ao pensar como o coletivo pode nos construir, como podemos fazer parte de uma comunidade e ela fazer parte de nós, de modo tão sensível e tão tangível.

Foi com esse trabalho que comecei a entender meus ciclos na vida, minhas repetições, a minha individualidade e coletividade também. Comecei a entender as liberdades que se pode ir encontrando nessa forma de fazer teatro, nesse processo ritualístico da cena, de tempo suspenso, de repetições, de atmosfera onírica, de coletividade e performatividade. Iniciei verdadeiramente um caminho para dentro de mim, e para fora de mim em configuração de obra teatral. Fui desmistificando meus medos e aprofundando minha alma nesse trabalho. É preciso entender que quando se inicia um processo desses você pode se sentir temerosa e querer fugir, pois exige muita coragem o caminho que vem pela frente. Porém mais difícil ainda é sair dele, esquecer dele, dormir sem pensar nele... Sem pensar em você nele. O processo torna-se parte de você mesma, e assim nos tornamos uma coisa só.

Existe algo que não se fala, mas eu vou te dizer: não é fácil. Mergulhar nesse universo que é inteiramente seu não é fácil. Ver-se, mover-se sem que alguém te dite como: não é fácil. Realmente buscar em você, em seu corpo seus próprios movimentos, perceber como você

4 Sobre o espetáculo: https://arkhetyposgrupodet.wixsite.com/arkhetypos/copia-mi-casa-su-casa. Acesso em 04

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deseja se mover, e saber como tal música te estimula a dançar ou não, é algo difícil a princípio. Entrar nesse lugar, sem paredes, sem teto sem limites, em total liberdade, depois de viver anos de uma formação completamente encaixotada é completamente aterrorizante.

Em cena éramos duas, mas sentia em minhas costas, pés, mãos e canto a existência de centenas de mulheres comigo. Cléo Araújo, a atriz com quem tive a honra de compartilhar esse espetáculo em cena, carregava consigo a energia e o arquétipo da Grande Mãe, a mulher guerreira e anciã, mestra e curandeira de nossa tribo. Eu era sua jovem aprendiz, filha, neta, broto para florescer, cavalo brabo, filha da terra e do sol. Durante nossos encontros de laboratório fomos aprofundando nossos arquétipos de forma quase que individual, conhecendo-nos, encontrando-nos. Até que ao nos relacionarmos descobrimos partes de nossos arquétipos que necessitavam-se entre si. Eu precisava da minha mestra, e ela a quem passar seu cajado.

Figura 1. Foto: Carol Macedo. Primeiro ensaio aberto, 2018.

Foi justamente esse momento do repasse do cajado de poder que entramos em um ambiente de enorme conflito, pois meu arquétipo de menina não queria receber esse símbolo que representa tanta responsabilidade, maturidade, enraizamento, pois para mim aquilo me

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deixaria presa, eu não queria assumir essa posição de liderança na nossa tribo. E eu não queria estar presa, queria correr. Dado esse ponto de entrega do bastão, nos laboratórios, todas as vezes eu o atirava no chão, chorava ou corria contra ele e contra a vontade de minha mestra.

Esta foi a primeira vez que fui desobediente. Doía muito negá-la, mas doía ainda mais receber esse fardo e aprisionamento. Sentia como se fosse minha obrigação, um dever forçado pelas circunstâncias de ter sido escolhida pela líder da tribo, mulher pela qual nutria muita admiração, medo e amor. Eu apenas corria, fugia, mas não encarava esse caminho... e que possibilidades eu poderia encontrar para contornar a situação? Apenas fugia. Durante o processo eu sentia muito medo de crescer, de me deixar expandir e realmente tomar o mundo.

Ao final de tudo o mundo deitou-se aos meus pés. Com a partida da anciã e líder da tribo eu pude assumir meu lugar, porém tendo consciência que essa nova liderança que agora tomava espaço seria sob meus termos, meu tempo e minha força ao lado da tribo. Não seria conivente nem obediente com as estruturas anteriores, pois esse agora era meu território. Nada sobre meus ombros, apenas ventania sob as minhas asas. Dentro deste processo eu descobri o legado da desobediência poética.

A história dessa obra se desenrola com uma grande diversidade de encontros pessoais e coletivos. A mim me cabe contar da dureza e beleza de deparar-me com o medo que sentia de minha própria força, das mulheres que vieram antes de mim e da potência que morava dentro do meu canto. Para além dos silenciamentos que nós mulheres recebemos por todo nosso percurso nessa sociedade patriarcal e opressora que vivemos, devo explicar inclusive a dificuldade que possuo em me expressar através da voz. Tenho clinicamente um cisto, uma fenda e uma depressão nas pregas vocais. E escolhi ser atriz. E sem querer nasci numa família de músicos. Minha mãe é música, não só porque trabalha e vive essa arte, mas porque ela em si é pura música. Gleika Veras é minha melodia de todas as noites, todas as dores e alegrias que moram em mim. Com muita honra pude fechar esse espetáculo cantando sua canção: “Tribo do Sol”. Música que me transportou diretamente para seu colo, que configurou-se no colo de Cléo em cena.

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Figura 2. Foto: Carol Macedo. Cena final: "A Morte"

Saibam: é a imagem que se manifesta no corpo, não escolhemos de forma consciente sua aparição. É como diz Johan Huizinga em seu livro Homo Ludens:

A representação em forma humana de coisas incorpóreas ou inanimadas é a essência de toda formação mítica e de quase toda poesia. (...) O que se passa não é primeiro a concepção de alguma coisa como destituída de vida e de corpo, e depois sua expressão como algo que possui um corpo, parte e paixões. Não: a coisa percebida e antes de mais nada concebida como dotada de vida e de movimento, e é essa sua expressão primária, que por tanto não é produto de uma reflexão. Neste sentido, a personificação surge a partir do momento em que alguém sente a necessidade de comunicar aos outros suas percepções. Assim, as percepções surgem enquanto atos da imaginação. (HUIZINGA, p.151)

No processo do “emTerraSer” minhas percepções surgiam como atos de imaginação e tornavam-se a base da minha poesia corpórea. Pisando nesse chão de terra firme pude compreender realmente como poderia se organizar em mim a ideia de ser um canal de comunicação material dos nossos imaginários. Pude viver as faces da atividade artística que propõe o Grupo Arkhétypos, e me sentia pronta para viver a face pedagógica.

4. A COLETIVIDADE COMO CONEXÃO DE MUNDOS 4.1 O PROCESSO “TEMPO”

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O ano de 2019 foi um ano onde vivi experiências e situações que não me imaginava viver tão cedo na vida. No segundo semestre deste dito ano, entrei no Projeto de Iniciação Científica “Aspectos Pedagógicos do Teatro Ritual”, sob a orientação do Prof. Dr. Robson Carlos Haderchpek, onde tive a oportunidade de vivenciar o que é conduzir um processo de montagem do Grupo Arkhétypos. Não só conduzindo, ao lado do meu grande amigo e também pesquisador do grupo Thazio Menezes5, mas também participando ativamente como

performer do processo.

Havíamos começado no grupo as Oficinas de Práticas Corporais abertas à comunidade no início do ano, elas tinham como base o treinamento energético e a poética dos elementos. Todos os membros do grupo podem conduzir e articular esses encontros exercitando a prática docente. Eu e Thazio possuímos uma forte afinidade, e assim levávamos as práticas, com bastante conversa antes de realizá-las e todas as vezes com muita harmonia.

Em uma tarde de trabalho Thazio propôs fazermos uma prática que ele havia experienciado um ano antes durante o processo de montagem de outro espetáculo do grupo, “Gosto de Flor”. Ele nos trouxe a cerimônia do chá. Um ritual aparentemente muito simples e banal, onde sentamos no chão em silêncio, nos vemos, e servimos chá um para o outro em roda. Um momento dividido na verdade em 4 etapas: Contemplação, Meditação, Reflexão e Partilha. Cada passo desse dia até hoje para mim segue em suspensão, foi um momento onde o tempo se dilatou e pudemos respirar. Lembro-me que vivia dias completamente atarefados, quase sempre estava correndo em desespero resolvendo alguma questão ou atendendo à alguma demanda. E nesse dia pude sentar e ver meus colegas de trabalho, meu melhor amigo e a mim mesma.

Recordo que eu não era a única atarefada, vários alunos muitas vezes ressaltavam o cansaço físico e mental, o corre-corre de todos os dias e como isso sugava suas energias. No dia da cerimônia do chá houve encontro e renovação. Desde o momento de entrar na sala de ensaio, onde se sentia a atmosfera onírica e calma, até o momento final desse grande encontro vivi um outro tempo, um tempo suspenso. Explica muito bem esse fenômeno a prof. Dra. Karyne Dias Coutinho em seu artigo coletivo “Pedagogia de si: poética do aprender no teatro ritual”, onde fala:

5 Thazio Silva Bezerra de Menezes possui graduação em Ciências Contábeis pela Universidade Federal do Rio

Grande do Norte (2008), também graduado no curso de Licenciatura em Teatro da UFRN (2020), é membro ator-pesquisador do Grupo Arkhétypos de Teatro e bailarino do grupo Entre Nós Coletivo de Criação.

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Nesse sentido, é como se o jogo ritual suspendesse o tempo cronológico — que funciona numerando e contando o movimento segundo o antes e o depois, numa tentativa de controlar sua passagem — para dar lugar à experimentação de outro tempo, aiônico, em que é possível habitar o presente. (...) Trata-se sobretudo de uma interrupção no tempo da vida, de um tempo em que se pode estar consigo, para muito além de se pensar em um processo ou produto artístico; um tempo em que se pode viver uma atenção que se convém ter para consigo mesmo; um tempo em que se pode se tornar disponível para si próprio. (COUTINHO e HADERCHPEK, 2019, p. 9)

Como um presente, nos foi dado tempo. Nos foi entregue mais um mergulho dentro de nós mesmos, sem julgamentos, sem pressa, sem desespero, apenas desfrutamos o ato de estar. A cerimônia do chá, para mim, implica numa energia de total entrega. A entrega do próprio chá, dos seus gestos que estão todos voltados para aquele ato, do seu tempo que vive aquele momento e do seu olhar que torna-se completamente dócil, amoroso e convidativo. Foi um dia de autocuidado em coletivo, pois ao mesmo tempo que cuidávamos do outro, também cuidávamos de nós mesmos.

Depois do encontro conversamos bastante, todos os membros do grupo e os participantes da comunidade externa da UFRN, e falamos sobre como é necessário o tempo para si, como precisamos poder parar o tempo para ver o tempo passar. Começamos a encontrar paradoxos e inquietações acerca do que significava o tempo para cada um, como ele se manifestava nas nossas vidas e como nós lidávamos com ele. Aí entendemos que esse seria o nosso ponto de partida para um novo processo do grupo: o tempo.

Iniciamos então um processo de subversão do tempo, decupando, desmembrando, desmistificando e criando novas mitologias sobre ele. Quando nós subvertemos o tempo nesse experimento cênico compreendo que também, de uma certa maneira, nos colocamos em um outro lugar de reflexão sobre o tempo, desobedecemos as lei cronológicas, atropeladas e firmadas no fazer econômico. Abdicamos o Cronos, e abraçamos o tempo de Aiôn, um tempo pertencente ao reino do onírico, de realidade suspensa. E outra uma vez identifico os rastros da minha desobediência poética, agora num processo sobre o tempo.

Trago aqui um trecho retirado da dramaturgia, organizada por Thazio Menezes, onde percebe-se em sua construção as inquietações de cada um dos performers durante o processo, que resultou nesse escrito:

- Se não tem tempo, não tem morte. - E nem vida.

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- A guerra do tempo perdido. - O tempo está perdido. - O tempo está dormindo. - O tempo está rindo do tempo. - Tempo? O que é tempo? - Não tem nada aqui. - Não pode matar o silêncio. - Você sabe o que você fez? - Ele morreu de que horas? - Não existe tempo. - Não existe vida. - Não existe nada.

- O tempo é algo visível ou invisível no espaço.

- Ele está em coma sonhando, tendo pesadelos. Sonhos nunca antes sonhados.

A cada encontro fomos entendendo aonde estávamos. Tínhamos a sensação de que éramos pessoas que se viam perdidas, em alguma vila esquecida pelo tempo, uma comunidade que já perdida não sabia para onde ir, perderam o tempo de vista.

A prática pedagógica começava. Eu e Thazio nos reuníamos todos os dias antes e depois das oficinas para discutir temas que surgiam a cada encontro, entender os caminhos possíveis, observar para onde estávamos caminhando enquanto coletivo com a dramaturgia que ia se construindo. Para assim, analisando essas faces, poder organizar propostas de estímulos e conduções para cada dia. Devo dizer que foi essencial nossa afinidade tanto pessoal quanto laboral para dar seguimento ao processo que a cada dia se desenrolava, a sensação de completa e total confiança no trabalho um do outro construindo esse coletivo.

Todo o processo foi leve e prazeroso, e isso foi um acordo que fizemos todos previamente, desde nossa descoberta na cerimônia do chá: queríamos trabalhar a partir do prazer e da leveza. Nunca me senti sobrecarregada ou deixando de lado meus colegas, o coletivo atuou fortemente, como o sustento de toda essa encenação.

Dado certo ponto, algo me convidava a fazer parte desse processo não apenas como o olhar externo e condutor. Eu queria jogar. Eu queria me jogar. E por mais irônico que pareça meu personagem era o Medo. Senti a necessidade de entrar no meio dos encontros e quem sabe encontrar também o que gritava dentro de mim. E então subverti o meu lugar de diretora para me colocar numa região de fronteira, numa região de desobediência poética. E assim fui, com medo porém conectada como um imã ao processo. Meu arquétipo mais uma vez se caracterizou como uma menina, uma criança que temia o tempo passar, as consequências dele

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e a incapacidade de controlá-lo. Com a bênção do meu parceiro de condução, adentrei em mais um nível naquele universo emblemático e rítmico.

Digo “rítmico” pois toda a peça era regida por marcações sonoras feitas por nós mesmos: um atabaque, alfaias, uma cidra, chocalhos, garrafas de vidro, ou nossas bocas. Tudo se transformava em elemento primordial para a dramaturgia. No trecho a seguir da dramaturgia/partitura de ações, pode-se perceber bem como marcávamos nossas deixas para cada ação na cena:

1º MARACÁ

“Não, tempo perdido! Tempo que não existe.

2º BAQUETAS

O feitiço é o antídoto do tempo que vive perdido. Tempo da vida.

Tempo da morte.

3º GANZÁ

Tempo da vida e profana hora. Tempo é risco e Ritmo é paciência. Tempo tem hora.

Essa é nossa existência. História.

4º PANDEROLA

Tomei o feitiço como antídoto, E jogada no espaço fui explosão, Causando discórdia e confusão, Medo de tudo, uma paixão. A paixão que jamais é cantada, Uma canção.

Outro fato muito interessante desse processo foi que existia um desejo comum em trabalhar com textos, porém textos autorais, nascidos das provocações feitas em laboratório e partilhados ao final das experiências. Cada fragmento aqui apresentado foi dito em sala de ensaio pelos performers, anotados e revisados por Thazio Menezes6.

Finalizamos o processo com uma mostra do trabalho cênico construído até a semana antes do “I Seminário Internacional de pesquisa do Grupo Arkhétypos”, que aconteceu nos dias 21 a 24 de novembro de 2019. No Seminário pudemos recolher apontamentos e impressões dos amigos e professores que ali se encontravam, para que ao mesmo tempo que

6 A dramaturgia do processo está disponível no Trabalho de Conclusão de Curso “Processo Tempo: A

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escutamos as devolutivas também pudéssemos compreender outras dimensões do nosso próprio trabalho.

Figura 3. Apresentação do processo "Tempo". Museu Câmara Cascudo. 2019.

Foi uma experiência bastante diferente pra mim ter que lidar com estar dentro e fora da cena, observar e ser observada. Aprendi bastante sobre ter paciência consigo, respeitar os tempos (pois começo a acreditar que cada um vive um tempo, e que ao nos relacionarmos acabamos por encontrar tempos em comum). Acima de tudo, aprendi a re-aprender, a buscar novas formas de olhar e construir. Envolvida nessa dinâmica de trabalhar com corpos e histórias tão distintas, pude encontrar belos pontos de interseção e colaboração.

4.2 MÉXICO-BRASIL: UMA DRAMATURGIA EM ENCONTRO

A segunda grande experiência que vivi no ano de 2019, foi quando tive a oportunidade de ministrar uma oficina na Facultad Veracruzana de Danza (Xalapa, México), sob a temática das danças populares brasileiras “coco de roda”7 e “cavalo marinho”8, intitulada “Encontros

de Roda”. A oficina fazia parte da programação de 3 dias do “Coloquio Poéticas del Aprender: experiencias pedagógicas en las artes escénicas” articulado pelo professor e

7 O coco de roda é uma dança popular brasileira, com forte (re)existência no nordeste do país. Uma dança que

pertence à família das danças de umbigada, com instrumentos de base como: ganzá, tambor, triangulo e pandeiro, com canções de pergunta e resposta, entoadas pelas mestras e mestres dessa manifestação popular.

8 Assim como o coco de roda, o cavalo marinho faz parte da tradição popular do nordeste, mas especificamente

da Zona da Mata do Pernambuco. Possuem um largo período de duração, com um grande festejo na noite seguinte ao Natal, madrugada a dentro. É uma brincadeira popular, uma expressão dramática, onde os brincantes contam causos com roteiros conhecidos na tradição, utilizando máscaras, pelotas, arcos de fitas e canções.

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artista chileno Javier Díaz Dalannais, em parceria com os professores universitários da UFRN Karyne Dias Coutinho e Robson Carlos Haderchpek, numa colaboração com a Universidad Veracruzana (Facultad de Danza). Estavam presentes alunos de diferentes idades e períodos do Curso de Dança e seus respectivos professores. Éramos em torno de 40 pessoas no total, cada um com seu próprio universo dentro de si, de diferentes partes do México, e eu e meus professores do Brasil.

A visão era linda. Tantas pessoas partilhando da mesma sensação de ansiedade e curiosidade de saber como a aula iria acontecer, inclusive eu. Era a primeira vez que ministrava tal oficina e sentia ânsia de descobrir o que nos aguardava. Só porque era eu a que iria conduzir esse processo não significa que tinha domínio sobre ele, apenas planos prontos para serem remodelados. Iniciamos com essa bela roda que se pode ver na Figura 3, logo abaixo. Nos demos o tempo de sentar e nos observar, dar uma pausa, criar um leve momento de desconforto pelo silêncio gerado para logo em seguida sentirmos a paz de estarmos juntos sem verbalizar nada, apenas olhar.

Figura 4. Oficina “Encontro de Roda”, 2019. Foto: Karyne Dias.

Após esse momento de calmaria dos ânimos introduzi uma rápida apresentação sobre mim e minha relação com as danças populares brasileiras escolhidas para aquele dia, falei de como cheguei a conhecê-las e nunca mais deixá-las. Falei também um pouco sobre as diversas histórias que existem acerca do nascimento de ambas no Nordeste brasileiro e como estão atualmente presentes nas comunidades. Comentei que identificava as duas manifestações e

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falatório, pois entendo que a compreensão das dimensões que essas danças podem ter moram na sua prática. Moram no aprender-fazendo.

Lhes ensinei alguns passos de base para cada dança, mesclando ambas sem ainda distingui-las, dentro de uma linguagem que eles conheciam: as saídas em diagonais no ensino de dança. Então, juntos saíamos em fila pela longa diagonal da sala de aula da faculdade, brincando com os movimentos e a música. Atentos aos pés, deslocando também nossa escuta para todo o nosso corpo, aos desenhos que criamos pelo espaço a partir dos movimentos desses ritmos, sem esquecer de olhar e ver tudo que naquele momento nos atravessava.

Creio ser importante ressaltar a estratégia que encontrei para a execução desse primeiro momento de oficina, pois ela implica na ideia de romper estruturas antigas, ainda apoiada na metodologia estabelecida há anos pelo ensino da dança no mundo. Busquei dar o ponta pé inicial desse encontro em uma roda, dentro de uma sala quadrada, com barras de ferro e muitas linhas retas, junto a um pedido não-verbal de suspensão do tempo para observarmos aonde e com quem estávamos. Propus um jogo de formas geométricas e presença e em seguida iniciamos os movimentos propostos pelas danças do Coco e Cavalo Marinho. Logo depois os convidei para romper as estruturas de aula típica de dança e bailamos por todo o espaço, em todas as direções.

Foi dessa maneira que pudemos ressignificar o espaço cotidiano e tão comum para eles naquelas práticas de dança, criando novos movimentos e desenhos corporais ali. Encontramo-nos com uma outra perspectiva do próprio espaço deles, tanto interno (dos bailarinos) como externo (da sala), propondo configurações novas para os seus corpos. Aqui reconheço mais uma vez o princípio da desobediência poética, desta vez sob a perspectiva pedagógica.

Após o rompimento do baile linear, decorrência dos próprios movimentos das danças do Coco e Cavalo Marinho, formamos uma grande roda. Lhes expliquei um pouco sobre o jogo que existe dentro dessas danças, sobre as brincadeiras que surgem em relação aos cantos entoados nelas e assim criamos interações distintas com cada jogador dentro da roda. Entendo que assumimos papéis9 dentro desses jogos, e mesmo que não sejam ditos são compreendidos

pela linguagem corporal e toda sua intenção. Expliquei como a roda era primordial nessa

9 Durante a oficina, propus que em duplas os participantes pudessem brincar no meio da roda e a partir da

linguagem corporal da dança de cada um eles investigassem que personagens/papéis eles sentiam entrar nos seus imaginários. Ex: uma dupla brincava de caçador e coelho, outra fazia um casal de namoradas, outra criou um jogo de perseguição e etc. Assim como acontecem nas rodas de coco, acabamos assumindo personalidades ou jogos diferentes cada vez que entramos na roda.

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relação, sem ela não temos a área de jogo, sem ela não temos as palmas e o ritmo que rege toda a brincadeira. Nesse coletivo se entende que sou porquê somos. Os que estão no centro de roda só podem brincar se os que estão em roda a mantêm em curso. É uma dança coletiva em toda sua extensão. Ao mesmo tempo que assistimos o que acontece dentro da roda fazemos parte dela, e mantemos sua figura, sua interação e pulsar, construindo assim esse ambiente de puro jogo, ativo e intermitente.

Logo pudemos experimentar a vivência da roda. Como de praxe, tanto no Coco de Roda como no Cavalo Marinho, convidamos com toda a extensão do nosso corpo-olhar alguém para nos acompanhar no centro da mesma. Juntos começamos então a construir uma dramaturgia em encontro, uma história que só acontece naquele momento, e que enquanto acontece já termina. E não há dor de despedida. Brincamos, criamos nossa fábula, jogamos por toda a roda, dançamos, saltamos e nos despedimos, convidando o próximo que vai entrar nessa brincadeira infinita de corpos e imaginários.

Cada jogo é distinto um do outro, nunca um será igual nem que sejam as mesmas pessoas a jogar repetidas vezes. Percebo que é necessário entender que possuímos imaginários diferentes que nos regem enquanto indivíduos e seres coletivos. Tambores internos que falam sobre quem eu sou e como posso me relacionar com quem também é comigo nesse encontro. Permito-me escutar o que o outro tem a dizer e deixo-me comunicar com a história corporal que este outro me apresenta.

Pedi que fechassem os olhos e escutassem a música que iria colocar. Como a maioria das músicas do “coco de roda”, esta também contava uma história, e meu pedido era que pudessem ouvir todos os elementos que regiam essa canção. Desde o peso na voz da cantora, até os instrumentos que compunham tal canto. De olhos fechados, devagar, foram encontrando em seus corpos esses sons, aonde reverberavam cada estímulo sonoro, e podiam identificar as sensações que levavam seus corpos ao movimento. Fizemos um acordo, igual ao que fazemos no treinamento energético10 que Robson Haderchpek traz em suas aulas: uma

vez que começarmos a nos mover, não podemos mais parar. E assim seguimos, em constante movimento, em um baile de infinitas possibilidades.

10 O treinamento energético, trata-se de um treinamento físico intenso e ininterrupto, e extremamente dinâmico,

que visa trabalhar com energias potenciais do ator, muito utilizado no nosso trabalho de grupo. Como diz Luís Otávio Burnier: “O treinamento energético, ao provoca este tipo de expurgo das energias primeiras do ator, dinamiza energias potenciais, induz e provoca o contato do ator consigo mesmo e ensina-o a reconhecer, na escuridão, após uma caminhada cada vez mais profunda em seu interior, recantos desconhecidos, “esquecidos”,

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Figura 5. "Encontros de Roda", 2019. Foto: Karyne Dias.

Aos poucos, quando sentiam-se à vontade, lhes pedi para abrir os olhos e ver a/o colega que estava do lado. O intuito era ampliar a vista e enxergar quem dançava no ponto mais distante da sala. E assim, perceberam que moviam-se todos no mesmo pulso, juntos na mesma batida do tambor, e riam. É importante a diversão nesse universo, da brincadeira, do “fazer-se de bobo” e se despedir de qualquer preconceito ou crença limitante de si. Abandonando todo esse aparato da vergonha e julgamento puderam lançar-se ao desconhecido daquela dança que estava sendo construída na medida que acontecia, juntos, em interação pessoal e coletiva. Daí a dramaturgia mostrou-se sem limites, e de jogos de poucos participantes, de repente estávamos todos em uma grande interação. Se pudesse fazer um desenho desse acontecimento, era como ver uma infinidade de linhas que conectavam cada um a todos. Haviam risos, suspiros, cansaço, alegria, música, suor, olho no olho, pé com pé, rodopios e infinitas possibilidades de encontros.

Simplesmente parecia que não podíamos parar. Escutava-se o som do cansaço, mas a entrega era tanta, a vontade de estarmos juntos e nunca mais acabar era tremenda que não podíamos parar. Várias vezes, como ministrante da oficina, incitei uma roda em meio ao jogo para então finalizarmos e poder fechar a prática, pois infelizmente tínhamos um teto limite de horário cronológico no mundo lá fora. Em uma das tentativas o próprio coletivo fechou sua roda, e pudemos enfim parar apenas a ação da dança, porque por dentro martelávamos com

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tanta força que se ouvia no salão, arfávamos como cães em uma celebração jamais vista e sorríamos com tamanha gratidão que nada foi dito.

Figura 6. "Encontros de Roda", 2019. Foto: Karyne Dias.

O que mais discutimos nesse encontro-acontecimento foi a necessidade da coletividade em toda a atividade artística e improvisacional que fizemos. Como se fazia precisa a presença do olhar do outro, sentir o companheirismo nessa existência fugaz, nessa dramaturgia corporal que carregamos todos juntos, uma dramaturgia em encontro. Se eu pude lhes ensinar algo realmente não sei, acredito mais que lhes dei apenas a oportunidade de conhecerem uma outra parte do mundo dentro deles mesmos. Foi aí que percebi como os encontros constroem essa comunicação entre mundos. Não foi necessário dizer uma palavra sequer enquanto jogávamos, apenas nos entregamos e confiamos no universo que estávamos criando ali.

Como prática que aderi do Grupo Arkhétypos, finalizamos com uma “roda de conversas” sobre a experiência vivida, onde cada um pôde expressar como foi para si os encontros que participou e o que pôde registrar em si sobre o acontecimento. Todos os participantes agradeceram a possibilidade de poderem interagir, principalmente nesse formato, com os colegas de outros períodos, pois eles nunca têm a oportunidade de fazer oficinas ou aulas juntos, e ressaltaram como foi lindo poder conhecê-los de outra forma, com outro olhar, nesse estado de jogo e escuta. Destaco então novamente a ideia de

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encontrarmo-olhar. Eles mostravam-se felizes por poderem compartilhar entre si essas novas descobertas sobre seus imaginários, foi um resgate de brincadeiras e risadas que há muito tempo não encontravam.

Pude assimilar dentro dos limites dos meus saberes que houve um grande encontro de culturas, de raízes míticas particulares em suas realidades, de imaginários e emoções distintas, mas que ainda assim trouxeram elementos em comum, que nos fizeram criar tais relações. O maior deles, ao meu ver, foi a entrega. Se pudéssemos dar uma “pausa” e observar os rostos congelados em uma imagem, veríamos a entrega, que se traduz nos sorrisos, nas gotas de suor, nas posturas, no cansaço, nos cabelos emaranhados, na paz e nos olhares. Éramos todos de partes distintas do globo terrestre, porém conectados com a simples (não menos profunda por sua simplicidade) sensação de entrega. O ato de entregar algo significa altruísmo, desapego, doação. Não é um ato de trocas econômicas, é apenas uma ação de presentear.

Mesmo sendo nós três11 do Brasil, e cada um de uma região do país, com os alunos e

professores mexicanos de distintas regiões também, conseguimos estabelecer uma conexão e comunicação, muitas vezes não-verbal. Dentro do universo que nós criamos, inventamos também nossa própria existência enquanto coletivo naquele momento, de interculturalidade e acolhida da diversidade.

4.3 ARKHÉTYPOS DO SUL: ENCONTROS REVOLUCIONÁRIOS

Imagine o mapa-mundi. Localize aonde você está no mapa. Imagine que dentro desse recorte do mapa que você está existe uma direção Sul (como na rosa dos ventos), e bem aí no Sul do lugar onde você está moram mistérios que ainda não sabemos da sua dimensão real. Quando falo do Sul estou me referindo a um pensamento cunhado por Boaventura de Sousa Santos, que procura o reconhecimento epistêmico do Sul do conhecimento mundial. O Sul é um lugar metafórico onde localizam-se os saberes que foram relegados no processo de colonização. Quando os colonizadores chegaram às Américas, por exemplo, os povos originários tiveram os seus saberes menosprezados e fortemente atacados. Saberes atravessados por tentativas de silenciamentos em diversos formatos. Desde guerras bélicas à guerras epistêmicas, confrontos culturais contra a diversidade e a preservação da múltipla existência dos seres.

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Na busca por um conhecimento do Sul o Grupo Arkhétypos tenta acordar esses saberes ancestrais que habitam o nosso inconsciente. “O Grupo Arkhétypos vem trabalhando numa perspectiva laboratorial e tem construído seus espetáculos a partir de um mergulho no universo simbólico de cada ator, sempre associando a prática artística com o autoconhecimento” (2018, p. 58), disse Robson Haderchpek em seu artigo O Jogo Ritual e as Pedagogias do Sul: Práticas Pedagógicas para a Descolonização do Ensino do Teatro, ao explanar sobre como seguem as fases das nossas prática enquanto grupo. Aqui vejo dois pontos importantes a serem ressaltados, e que dão o verdadeiro sentido dessa escrita: o respeito a individualidade do sujeito e a força do autoconhecimento.

Quando uma pessoa se conhece a si mesma ela torna-se dona de si, possui uma certa propriedade sobre si mesma. Uma pessoa autoconsciente é uma pessoa impossível de dominar, de controlar, de domar, de tornar-se dono ou reivindicá-la (assim como terrar e propriedades). E é neste sentido que o teatro ritual proposto pelo Arkhétypos me parece mais um ato de revolução, um caminho contrário à maré de indiferença e dominação em massa. Que movimento rebelde e gigantesco para nossos dias atuais se transforma a prática de buscar autoconhecimento. Enquanto muitos são silenciados e outros resolvem se calar, nós aqui decidimos gritar, cantar, explorar, dançar e escutar nossas vozes interiores.

E que ato revolucionário se torna não apenas agir dessa maneira mas também “escutar”. Abrir os poros e meus canais mais sensíveis para receber e ser afeto. Começo a entender que o trabalho do Arkhétypos é um trabalho sem escapatória, e eu gosto muito disso. Não tem como fugir dos encontros. Uma vez que a proposta indecorosa é feita, não existe inércia sobre ela, e agimos. Aí estamos nós e nossa dramaturgia, no encontro. Mas para construir tal dramaturgia coletiva é necessário estar ao 100%, nem meio cheio, nem meio vazio: total. Essa entrega total de nós mesmos nos impulsiona à criação de um outro universo compartilhado, coletivo e potente. No artigo “Pedagogia de si: poética do aprender no teatro ritual”, escrito por Karyne Dias Coutinho e Robson Haderchpek, encontramos essa potente análise:

Quando há entrega total ao processo de improvisação, pode-se experimentar o máximo de energia de cada instante, deixando-se surpreender a cada vez por ele; lançar-se a uma disponibilidade sensível, capaz de liberar um potencial de ação caracterizada, em relação ao mundo, pela presença e pela escuta, pela cumplicidade e pelo júbilo; estar imerso na situação imediata e, ao mesmo tempo, aberto a tudo o que pode modificá-la. (COUTINHO e HADERCHPEK, 2019, p.14)

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Existe uma beleza em dependermos uns dos outros para que esse grande ritual teatral possa acontecer. Uma arte essencial e primordialmente coletiva, e momentânea. Somos seres relacionais, precisamos das relações para sermos e estarmos no mundo, somos atravessados a todo o tempo por milhões de relações diferentes. Já parou para pensar quantas imagens te atravessam todos os dias? Quantos estímulos sonoros, pictóricos, sensíveis, culturais ou históricos chocam com o seu próprio imaginário? Cada aspecto do nosso ser aqui se torna relevante para a obra teatral, pois são nossos pequenos detalhes que constroem essa grande obra de arte que somos, por isso esse encontro conosco é tão revolucionário. Por legitimar nossos saberes, nossos diálogos internos para o externo, e nos afirmamos enquanto indivíduos construtores da nossa sociedade, somos então revolução.

5. DESOBEDIÊNCIAS POÉTICAS

Existe uma multi-artista chamada Grada Kilomba que fez uma exposição em julho de 2019 na Pinacoteca de São Paulo intitulada “Desobediências Poéticas” que fala justamente sobre a descolonização dos saberes, buscando uma ideia pós-colonial do encontro com o conhecimento. Kilomba se insere como uma artista interdisciplinar ao trabalhar com leituras cênicas, instalações, performances e vídeos, além de ser autora de dois livros. Mulher nascida em 1968 na cidade de Lisboa com ancestralidade angolana. Como o próprio nome sugere, “Desobediências Poéticas” é uma exposição com um forte caráter político, que manifesta-se sobre sermos corpos e mentes desobedientes. Reintegrando a posse dos grupos silenciados e marginalizados ao longo da história.

Sempre deixamos muito claro em nossos laboratórios que estamos em um espaço seguro. Um lugar onde não existirão julgamentos, preconceitos ou qualquer atitude que possa frear seu processo pessoal. É muito importante poder sinalizar essa situação de extrema confiança e conforto para o avanço das atividades performáticas. No Arkhétypos nós buscamos nos desprender de quaisquer amarras sociais de análise depreciativa e lançarmo-nos no profundo de nossas almas.

Trago a referência a Kilomba pois vejo uma conexão entre o seu trabalho e as poéticas com as quais o teatro ritual proposto pelo grupo Arkhétypos trabalha, principalmente quando penso em um processo de descolonização do imaginário. Processo este que se dá justamente no momento em que criamos uma estrutura artística e prática para trabalharmos o nosso inconsciente de maneira liberta da ideia de que existe apenas uma forma de se pensar o

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mundo, essa forma colonial eurocêntrica. Permitimos, enquanto coletivo, o avanço da reflexão da individualidade de cada um. E neste sentido nos encontramos com o afronte que é o teatro ritual nos dias atuais no nosso país.

Segundo a atriz, pesquisadora e colaboradora do Grupo Arkhétypos, Rocio del Carmen Tisnado Vargas:

Tratar de descolonização implica tratar das relações de poder da modernidade que se mobilizam entre camadas políticas, sociais, culturais, econômicas e epistemológicas, e das ações que podem nos trazer uma atitude de oposição a essas ordens. (2016, p. 77)

Para Rocio Vargas discutir a questão da descolonização é discutir as esferas de poder e a arte é um excelente canal para isso:

É por isso que a prática do teatro e a arte em geral são um instrumento poderoso para o processo de descolonização. Antes, porém, também temos de descolonizar as práticas e os instrumentos utilizados por nós para fazer esse teatro, os quais o imperialismo acadêmico tem tornado hegemônicos por serem eurocêntricos. (2016, p. 113)

Penso que o teatro ritual é um alternativa para se fugir desse imperialismo acadêmico, uma saída para ver o mundo assim com Eduardo Galeano descreve: “Cada pessoa brilha com luz própria entre todas as outras. Não existem duas fogueiras iguais.12” É realmente uma

pedra no sapato desse sistema estatal uma estruturação do conhecimento que não seja a caixa limitante da sociedade capitalista completamente produtivista, onde não há tempo para olhar para o outro, para si, e refletir sobre o lugar onde se está inserido. Apenas produzir e silenciar, tornar máquina o ser. Nosso fazer é uma desobediência. Grada Kilomba questiona com sua obra exatamente quem são aqueles que podem falar, sobre o que podem falar e quando, e já no nosso jogo ritual, por exemplo, todos têm sua voz e sua vez, todos falam, gritam e cantam, como e quando quiserem. Através do jogo ritual nós despertamos um saber corporal que flui pelo viés do sensível. Vejamos o que nos diz Allan Phyllipe de Araújo, ator do Grupo Arkhétypos:

(...) meu corpo sensível é memória, jogo, afeto. Compreender o corpo sensível é você se dar a oportunidade de sentir e fazer o outro sentir, e descobrir que ele carrega um aspecto político forte que você precisa deixar sair, permitindo ao sujeito ser quem realmente ele é. (ARAÚJO, 2019, p.100).

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Aqui criamos um tipo de incubadora do que chegará à sociedade para enfrentar novas barreiras. Fazemos parte da criação de seres políticos. Buscamos essa liberdade de uma criatura para descobrir o mundo da sua maneira. Certa vez ouvi em uma sessão de meditação coletiva em Fortaleza sobre quem são as pessoas inteligentes nesse mundo. O “guru” dizia que a inteligência está intimamente conectada com a sensibilidade que desenvolvemos e praticamos no nosso dia a dia. A pessoas mais inteligentes são as mais sensíveis. São as pessoas capazes fácil adaptação, de lidar com as adversidades e com as simplicidades com muito tato, muita percepção, compreensão e força. Praticar a sensibilidade, os vários ângulos de ver e perceber o mundo é uma forma de tirar o poder dos dominantes. É tomar a própria voz e gritar de volta.

Entendo então que, com esta ação de dar voz a um conhecimento sensível entramos no que podemos chamar de uma “pedagogia da descolonização do imaginário”, ou seja, adensamos essa busca da construção subjetiva do sujeito a partir de outros caminhos, pelo Sul dos imaginários. A forma escolar de legitimar o conhecimento é uma provação do conteúdo e não sua habilidade de dialogar, de ser e estar no mundo. Qual é a real utilidade desse ensino, de forma prática e existencial?

É aqui que o teatro ritual mostra-se preciso, pois nele cria-se o espaço da possibilidade para encontrarmos outra maneira de buscar o conhecimento. Estimulamos a busca, o caminho, mais do que um destino final. A meu ver, podemos incomodar com essa educação diferenciada sobre si, sobre as relações, sobre as possibilidades de existir no mundo, nesse processo de produção de conhecimento que dá espaço a expansão do ser. Me espelho nesse pensamento de Grada Kilomba, dado durante uma entrevista acerca de sua instalação “Desobediências Poéticas”13:

Quando um sistema está habituado a definir tudo, bloquear os espaços e as narrativas e nós, a partir de um processo de descolonização, começamos a adentrar esses espaços, começamos a narrar e trazer conhecimentos que nunca estiveram presentes nesses lugares, claro que isso é vivenciado como algo ameaçador. (KILOMBA apud RIBEIRO, 2019, p.11)

Aqui é quando nos tornamos desobedientes ao sistema, e ser desobediente ao sistema é ser criativamente transgressor.

13 Entrevista com Grada Kilomba: desobediências poéticas. Curadoria de Jochen Volz e Valéria Piccoli; ensaio

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6. CONCLUSÃO

Tenho visto tantos vídeos de policiais truculentos com uma violência banhada em covardia, assassinatos de jovens negros todos os dias, mulheres violentadas por todos os lados, crianças abusadas, corpos violados, memórias apagadas, que eu preciso acreditar no que eu faço. Eu acredito no Grupo Arkhétypos, eu acredito em sua força.

Não sei se você lembra, mas iniciei todo esse trabalho com uma história que meus pais me contavam quando criança, sobre o beija-flor que tenta apagar o incêndio na floresta. Então, esse incêndio estava destruindo não apenas o seu lar, mas o lar de todos os animais que ali viviam. Esse beija-flor foi questionado diversas vezes sobre o porquê de aquele bicho tão pequeno, com seu bico menor ainda, insistir em apagar um incêndio. Por que não parar? Por que não desistir? Por que não seguir em fuga como todos? E ele responde: eu estou fazendo a minha parte.

Eu acredito no que eu faço. Acredito que faço a minha parte. Mais ainda, acredito no teatro que estamos construindo ao longo dos anos. Eu acredito nesse teatro que nos disponibiliza um lugar para a leitura sensível do ser humano e que me permite um tipo de suspensão existencial, penetrando em um outro tempo e espaço. Vivemos uma construção coletiva espetacular (tanto no sentido de espetáculo quanto apresentação quanto no sentido mágico da espetacularidade), em situação tal que nos possibilita compartilhar a nossa própria existência, nos conectar com o social, com o emocional, e fisicamente com os presentes. Digo presentes, e não “participantes” pois entendo que para estar inserido no jogo ritual é impossível não estar presente, num estado de estar. No jogo ritual não existe enganação ou “fazer de conta” para estar, essa é uma arte sobre estar/ser presentes.

Para mim, esse tipo de prática ritualística é transgressora por si só. O poder que reestabeleço a mim mesma ao parar a ampulheta do tempo e respirar, ao olhar o outro e trazê-lo para perto, é revigorante. Conectar-me. Me entrego a mim mesma e a quem mais eu escolher. Compartilho com você tudo que eu tenho. Isso é poder. Isso é ver o mundo de uma forma mais sensível, e lembrando que ser sensível é ser extremamente inteligente. Assim, afirmo nossa transgressão por todos esses fatores que acabo de mencionar, e provavelmente por vários outros que ainda não sou capaz de perceber.

Referências

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