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“Desperta o Gigante Brasileiro” “Desperta o Gigante Brasileiro”

“Desperta o Gigante Brasileiro”

Brasília não é apenas uma cidade nova, surgida milagrosamente na solidão do altiplano; não é apenas técnica e arte, pioneirismo e arrojo. É antes de tudo a revolução, porventura a mais fecunda do nosso tempo: a mudança na rota de um país empenhado em transpor a barreira do subdesenvolvimento e ocupar, entre os povos do mundo, o lugar que lhe cabe pela sua extensão, pelas suas riquezas, pelo valor dos seus filhos.1 8

O sentido de tomada de posse do território aparece nos mais variados discursos sobre Brasília e a necessidade de interiorização da capital, que a antecede. Enfim, a urgência com que se apresenta a construção, ou a mudança, da capital para o Planalto Central parece dar noção da dimensão alcançada por essa discussão. Como colocado no capítulo anterior, esse debate criou uma atmosfera de expectativa ímpar no momento de

1 7 CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano: artes de fazer. 2 ed. Petrópolis, Vozes, 1994, p. 97.

1 8 PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Resenha do Governo do Presidente Juscelino Kubitschek (1956-1961). Tomo II,

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construção efetiva da cidade. Uma cidade que nascia marcada por essa antecedência e que deveria corresponder aos anseios criados por ela.

Quem observa a nova capital organizada e realizada dentro de um sistema arquitetônico não pode mais admitir dúvidas substanciais: o Brasil caminha no sentido novo da sua história futura, mostrando o que pode fazer de prático, o que pode desenvolver de objetivo, não em favor de uma geração apenas, não em favor apenas da vaidade dos homens, mas em favor principalmente daquelas linhas mestras que firmaram através dos anos o chamado milagre da unidade nacional. Quem observar a nova capital não admitirá limitações supérfluas, pois ela existe para conhecimento universal de outros países como a nova capital do Brasil.19

Brasília não poderia ser apenas uma cidade – mesmo que com a “missão” de ser a capital do país. Ela deveria se inscrever na história brasileira como um marco divisor de águas, como marco inaugural de um novo tempo – e assim ela foi pensada: ponto de partida para o desenvolvimento do país, Brasília “não será uma decorrência do planejamento regional, mas a causa dele: a sua fundação é que dará ensejo ao ulterior desenvolvimento planejado da região”, afirmava Lúcio Costa na abertura de seu relatório justificativo do plano piloto. “Brasília vem de longe-perto do mar, nas pegadas das bandeiras, em busca do Planalto. E aqui, no âmago da terra brasileira, finca o marco de uma nova era. Brasília é, sobretudo, isto: conquista e povoamento do interior, colonização retardada de séculos e, por isso mesmo, impetuosa e febril, tumultuando séculos de placidez”.20 Esse sentido é constantemente retomado nos discursos em defesa da

interiorização da capital, e é ainda mais forte e incisivo nas falas do presidente JK sobre a cidade. Ainda em 1958 ele afirmava que “este ato – a transferência da sede do Governo da República, tantas vezes recomendada e sempre procrastinada – permitiria comandar-se, do próprio centro geográfico do país, o processo de reestruturação da sociedade brasileira em bases efetivamente nacionais. Apresentando-se como imperativo da economia e da história, sobre mandamento constitucional, a construção de Brasília não podia deixar de

1 9 FRANCO, Oliveira. “O milagre nacional de Brasília”. Revista Brasília, no 39, ano 4, março de 1960. 2 0 “Brasília, um povo inteiro a procura de si mesmo”. Correio Braziliense, 21 de abril de 1967.

ser uma das metas fundamentais deste governo. (...) Podemos anunciar, nesta mensagem, que já se configuram, no Planalto Central, os contornos da metrópole que, em breve, será o eixo da vida política do país, o núcleo irradiador de sua civilização e do seu progresso”.21

É instigante ver como essa imagem vai sendo recrudescida ao longo do tempo e, como a escolha do sítio para a construção da cidade parece influenciar, ou mesmo incitar esses discursos. A imagem, apresentada na fala de Kubitschek, de Brasília ser o centro irradiador do progresso e de que a partir dela dar-se-ia a redenção do interior brasileiro é recorrente em muitas falas sobre a construção da nova capital. Já em 1959 vemos expresso esse sentimento:

com a instalação do governo federal em Brasília, deslocar-se-ão grandes forças de articulação econômica e de aproveitamento de imensos recursos naturais até hoje sem nenhuma significação na marcha expansionista do país. A alteração do meridiano político, penas suas enormes conseqüências, se transformará numa obra de desbravamento nacional.22

da nova capital, os brasileiros do litoral descortinarão uma pátria maior do que a que enxergam, nas avenidas e nas praias. O sertanejo verá o nascimento de outro Brasil, que não será o da palhoça, o das febres, o da verminose, o do analfabetismo. Para todos se abrirão as perspectivas de um Brasil integrado na unidade real da terra e no sentimento comum de que essa unidade já está viva na grande nova capital, levantada no planalto central: Brasília.23 Ou ainda como aparece descrito na fala de Dom Antônio de Almeida Morais Júnior, arcebispo do Recife, que afirma em 1960 que com a inauguração de Brasília – a nova capital do Brasil – abre-se uma nova fase de progresso para a pátria. Não há dúvida que o presidente Juscelino Kubitschek despertou grande parte do território nacional. Quem viu quase imobilizada aquela imensa região e, hoje, a contempla palpitante

2 1 PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Op. Cit., 1960, p. 329.

2 2 VELOSO, Nilton. “Brasília: uma nova era nacional” Revista Brasília, no 28, ano 3, abril de 1959. 2 3 RIBEIRO, Carlos. “Brasília” Revista Brasília, no 34, ano 3, outubro de 1959, p. 15.

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de vida e progresso, poderá imaginar o que significa tudo isso para o futuro do Brasil.24

A alvorada brasileira começa hoje com Brasília, a nova capital do Brasil! Agora sim! Nosso país tem seu coração no lugar certo! Um coração que propulsionará o sangue do progresso, através de suas colossais artérias, a todos os quadrantes do território brasileiro. Hoje Brasília existe! A hora das discussões é passada! Brasília é ponto pacífico. É uma verdade incontestável.25

As longas citações se impõem na medida em que permitem perceber o investimento na criação e no recrudescimento de algumas imagens sobre a nova capital.26

Curioso perceber como os próprios títulos dessas reportagens parecem construir um texto e uma imagem positiva para a cidade – “Brasília finca o marco de uma nova era para o Brasil”; “O milagre nacional de Brasília”; “Atuação patriótica”; “Brasília, redenção econômica do Brasil”; “Porta de um novo mundo”. Alguns destes títulos, bem como o conteúdo das reportagens, são como idéias-força que passam a compor o quadro definidor da cidade e daquilo que se espera propagar sobre ela. Imagens essas que parecem remeter ao mapa, exaustivamente utilizado pelos estudiosos daquela cidade, em que aparecem as distâncias entre Brasília e as capitais dos estados brasileiros. (Figura 03) Neste mapa

2 4 “Brasília é um marco histórico no movimento de emancipação nacional” Correio Braziliense, 26 de abril de

1960.

2 5 LOPES, João Gualberto. “Hoje Brasília existe”. Revista Brasília, no 41, ano 4, maio de 1960, p. 19.

2 6 Muitos foram os documentos encontrados na pesquisa que permitem afirmar que houve um grande

investimento na criação da imagem de Brasília como centro irradiador de progresso. Infelizmente não posso transcrever trechos de todos eles, o que possibilitaria ao leitor uma visão mais clara de minhas afirmações, mas os referencio para uma possível consulta: “Brasília finca o marco de uma nova era para o Brasil” Correio

Braziliense, 20 de abril de 1960. FRANCO, Oliveira. “O milagre nacional de Brasília” Revista Brasília, no 39, ano

4, março de 1960. “Novacap dez anos depois. (I) Espírito de trabalho que ganhou fama de ritmo de Brasília”

Correio Braziliense, 20 de setembro de 1966. “Uma resposta” Correio Braziliense, 10 de novembro de 1962. “2o

aniversário de Brasília” Correio Braziliense, 21 de abril de 1962. “Atuação patriótica” Correio Braziliense, 28 de janeiro de 1962. JOÃO FILHO, José. “Brasília nasceu num comício em Jataí” Correio Braziliense, 21 de abril de 1960. “Revolução Construtiva”. Revista Brasília, no 41, ano 4, maio de 1960. MEZZÓTERO, Rafael “Brasília,

redenção econômica do Brasil”. Brasília, no 39, ano 4, março de 1960. SILVEIRA, Peixoto da. “Porta de um novo

mundo” Brasília, no 35, ano 3, novembro de 1959. MELLO, Manuel Caetano Bandeira de. “Brasília inconteste”

Revista Brasília, no 25, ano 3, janeiro de 1959. CUNHA, Boaventura Ribeiro da. “Brasília foi sonho que se fez

realidade” Revista Brasília, no 27, ano 3, março de 1959. DUVIVIER, Ivna de Morais. “A cidade que surge”

Revista Brasília, no 29, ano 3, maio de 1959. CARNEIRO, Nélson. “Brasília” Revista Brasília, no 31, ano 3, julho de

1959. OLIVEIRA, Juscelino Kubitschek. “Força Propulsora do Brasil”. Discurso proferido em 20/04/1960 ao receber as chaves das mãos do presidente da novacap, dr. Israel Pinheiro. Revista Brasília, no 41, ano 4, maio de

vemos expressas as vias de comunicação de Brasília com os estados, e também vemos representado o centro a partir do qual o desenvolvimento e a unidade nacionais ocorreriam, o que de certa forma reiterava o sentido atribuído à cidade nas falas citadas. Se nos detivermos um pouco mais na imagem perceberemos como ela consegue comunicar esse ideal com sucesso. Passa a sensação de que Brasília é como uma “estrela” que irradia seus raios para todas as regiões do país. Uma imagem muito forte, e que tem o claro intuito de reforçar a insígnia de centro irradiador de progresso atribuída à nova capital.

Este mapa parece ter um objetivo bastante ambicioso: deixar marcada na memória visual que Brasília seria sim esse “astro” plantado no Planalto Central do Brasil, que irradiaria desenvolvimento e progresso às áreas mais distantes e desprovidas do grande território nacional. James Holston em “A Cidade Modernista”,27 afirma que esse

mapa fez parte de publicações de naturezas diversas, sendo incluído até mesmo em cartilhas de escola primária e relatórios sobre o desenvolvimento regional. Holston relata que em um manual para alunos de 1o grau a imagem ilustrava a seguinte passagem: “A

mudança da capital trouxe progresso para a Região Centro-Oeste e contribuiu para o povoamento e o desenvolvimento de grande parte do território brasileiro. A nova capital liga-se por grandes rodovias a todas as regiões do Brasil”.28 Brasília era essa “cidade-luz”,

esse foco de progresso e de desenvolvimento – símbolo da unidade nacional brasileira. É curioso ver como ao longo do tempo, mesmo após a inauguração da cidade e sua consolidação como capital brasileira, a recorrência à imagem de centro irradiador de progresso persiste: “a simples fixação de Brasília no planalto central – antes um continente deserto – significou o início de um processo desenvolvimentista e de humanização de mais de dois milhões de quilômetros quadrados, configurados no centro-oeste brasileiro. Reconquistando essa imensa área, ao implantar nela a sua capital o Brasil reencontrou-se, criando nessa cidade o eixo de sua integração política, social e econômica”.29

2 7 HOLSTON, James. A Capital Modernista: uma crítica de Brasília e sua utopia. (trad. Marcelo Coelho). São

Paulo, Companhia das Letras, 1993.

2 8 HOLSTON, James. Op. Cit., 1993, p. 26.

Diante de uma pluralidade de olhares e de possibilidades de leitura dessa cidade, como pensar essa mesma pluralidade como parte constitutiva do espaço urbano? Como ler os discursos de seus tantos interlocutores? No que se transformou a cidade racionalmente planejada?