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2. Fortuna Crítica e Elementos da Poética de Alexei Bueno

2.3. Desprezo e Alteridade

O desprezo ao vulgo, característica também afirmada por Secchin no texto “Parnaso Contemporâneo II”, não existe dessa maneira categórica, se é que existe, pois desprezo é uma expressão muito forte. Pelo contrário, o eu poético de Alexei Bueno empreende a busca da emancipação transcendente coletiva, empreende um persistente exercício de alteridade, retrata com intimidade indigentes, prostitutas, minorias como transgêneros. Nem sempre sua compreensão das pautas e reivindicações das minorias é suficiente ou mesmo muito esclarecida, mas não é porque não é completamente esclarecida que o exercício de alteridade se ofusca. Constantemente o eu poético de Alexei Bueno sente repugnância por uma sociedade decadente e hostil à poesia, mas também constantemente busca uma regeneração dela pela mesma via da poesia, dotada de um poder reintegrador e, como Secchin mesmo diz, salvífico. Sua compaixão dolorista ou atenção mimética aos socieconomicamente desfavorecidos, aos marginais e a determinadas minorias aparecem em diversos poemas, como, por exemplo, neste sobre prostitutas:

AS PUTAS

Na porta do Hotel Paris Junto à Praça Tiradentes, Sob um suor que é um verniz, Com batom até nos dentes, Elas se expõem, maus artigos De uma vitrine invisível, E os homens todos, mendigos Ou chefes, num lapso incrível

Cobrem-nas com uma mirada Que é uma consulta, e se afastam Na tarde, rumo à cansada

Treva que as horas não gastam.

2/9/2005

(BUENO, 2006, p. 104) Ou neste soneto sobre transgêneros:

NOTURNO

Sobre os seus saltos, sob a lua cheia, Os travestis desfilam como garças, Farsa carnal em meio às outras farsas Que o mundo absurdo no aéreo chão semeia.

São deusas-mães usando liga e meia, De ancas imensas, madeixas esparsas, De enormes seios, piscando aos comparsas, Buscando otários para a escusa teia.

São Vênus neolíticas chamando

Sombras confusas, entre os cães sem casa E os negros ébrios. Seu barroco bando

Volveu, pulsante, dos tetos das grutas, E anda na névoa, como num vasa, Rotundas popas balouçando enxutas.

28/10/2004

(BUENO, 2006, p. 130)

Atualmente, pela ótica da interseccionalidade transfeminista, dizer que um transgênero é uma farsa, isto é, um indivíduo com uma determinação biológica tentando se passar por outro, como um engodo, é transfobia, pois na interseccionalidade a questão de gênero é vista como uma construção social que pode ser desconstruída, levando em consideração a identidade pessoal pautada na subjetividade pessoal. Porém metáforas como a utilizada pelo eu poético de Alexei Bueno não chegam ao ponto de ofuscar o desejo de alteridade ou a empatia. Só há um poema em que o desejo de alteridade e a empatia se ofuscam, desembocando em uma espécie de conservadorismo

típico atualmente de um Olavo de Carvalho e de um Luiz Felipe Pondé, que disseminam a ideia de uma ditadura das minorias e de vitimismo das minorias, confundindo a luta pelo fim dos privilégios (e, consequentemente, luta por mais direitos), com luta pela retirada de direitos dos privilegiados. A tentação do eu poético de Alexei Bueno em ter um rompante conservador acaba produzindo o seguinte poema:

OS MAJORITÁRIOS Não és crente, judeu, nem muçulmano, Não és negro, nem índio, nem enfermo, Não vives na favela, nem no ermo, Não és mineiro, guasca, nem baiano.

Amas o sexo oposto, és carioca, És católico, branco, e classe média, Estás, pois, muito mal nesta comédia De loucos que fermenta, ferve e espoca.

11-8-2009 (BUENO, 2009, p. 29)

Trata-se de um rompante conservador, que pode recobrir discursos de falsa simetria como da “cristianofobia”, do “racismo inverso” (brancofobia), da heterofobia e o discurso do sofrimento da classe média: “Classe média sofre”, é a classe média que sofre. Discursos conservadores, que no fundo encobrem preconceitos como racismo e homofobia. Porém um rompante desse é a exceção na obra de Alexei Bueno. O desejo de alteridade e a empatia quase sempre prevalecem.

A relação com a contemporaneidade em Alexei Bueno também se verifica na retomada deslocante e “atualizada” dos mitos, como no poema “Helena”:

HELENA No cômodo onde Menelau vivera Bateram. Nada. Helena estava morta. A última aia a entrar fechou a porta, Levavam linho, unguento, âmbar e cera.

Noventa e sete anos. Suas pernas Eram dois secos galhos recurvados. Seus seios até o umbigo desdobrados Cobriam-lhe três hérnias bem externas. Na boca sem um dente os lábios frouxos Murchavam, ralo pelo lhe cobria

O sexo que de perto parecia

Um pergaminho antigo de tons roxos.

Maquiaram-lhe as pálpebras vincadas, Compuseram seus ossos quebradiços, Deram-lhe à boca uns rubores postiços, Envolveram-na em faixas perfumadas.

Então chamas onívoras tragaram A carne que cindiu tantas vontades. Quando sua sombra idosa entrou no Hades As sombras dos heróis todos choraram.

6/5/1992

(BUENO, 2003, p. 245-6)

Poema que recorda o desejo de rebaixamento do mito (no ambiente contemporâneo, mas já iniciado na modernidade, há de se confessar nesse caso, e em combate à solenidade austera parnasiana, na realidade) de um soneto de Rimbaud:

VÊNUS ANADIÓMENA

Como de um caixão verde de lata, uma cabeça De mulher de cabelos morenos e muita pomada De uma velha banheira emerge, lenta e avessa, Com seus déficits mal refeitos de uma garibada;

Vem depois o pescoço gordo e cinza, as largas omoplatas Que sobressaem, as costas curtas que entram e saem; E as redondezas dos rins querem saltar mas caem; A gordura sob a pele aparece em folhas chatas;

A coluna é um pouco vermelha, e o todo tem um gosto Horrível estranhamente; repara-se sobreposto

Algo singular que é preciso enxergar com lupa...

Os rins levam dois nomes gravados: CLARA VÊNUS; - E este corpo todo mexe sua larga garupa

Belo horrendamente de uma chaga no ânus.

27 de julho 1870.

Em seu prefácio à obra A juventude dos deuses, Secchin é mais claro em que sentido a poética de Alexei Bueno não é modernista: ela é avessa ao coloquialismo modernista, principalmente ao coloquialismo do poema piada. E novamente Secchin elenca características, mas dessa vez representativas de marcas de singularidade do poeta, a saber:

- Crença em um esplendor humano de matrizes gregas. - Gradativa intensificação de um veio religioso.

- Concepção do homem como um ser fadado à angústia e ao desespero. - Registro lexical elevado e de força metafórica.

Através da análise da Juventude dos deuses, o próprio Secchin não mais pode falar do desprezo ao vulgo de forma categórica, já que em um dos segmentos dessa obra,

Impelido ao espaço público (movimento V), o poeta se torna cúmplice da dor dos desviados e desvalidos, através da constituição de um “tu” que não se demarca com clareza do próprio sujeito lírico. A explicação do “eu” (segmentos VI, VII) faz-se acompanhar de laivos confessionais que controlam uma propensão, digamos, universalizante em prol de uma outra que talvez não o seja menos, mas ancorada na aventura sensorial, concreta e particular do poeta: “Ainda estou lá,/Lá, por certo, ainda estou,/Onde dedos de avós redemoinham nas xícaras/E confeitos e notas se espalham nas rendas da tarde”. Tebas e rua do Ouvidor se mesclam, na sensação irreversível de o “eu” ser todos. Em meio a densas reflexões sobre a atração do abismo, infiltra- se o discurso do fait divers, anedotas miúdas do desastre que desierarquizam a pompa humana: “E o vento empurra tudo, o vento afásico/Nas coordenadas para o abismo, Nossa casa./Nosso leito. Nossa muralha infranqueável”. A experiência-limite, o estar-à-beira, enfatizam a confluência entre risco e sedução, nos versos exemplares do oitavo movimento: “/.../Agora/Só resta o precipício como nossa fortaleza./É mirando/No seu fundo que entrevemos nossa face”. Se, no segmento IX, os adeptos da vertigem do abismo são alçados, pela autenticidade e pela arte, à categoria de varões assinalados (“Fomos os escolhidos para a requintada dor”), o texto, em decorrência de tal postulado, torna-se mais incisivo e peremptório, inclusive ao desqualificar os que não partilham do dom da audácia: “Aos pusilânimes, porém,/Não desce a voz. A voz/Não é assunto de alunos, quanto mais de vermes”. Antes de se invectivar contra um possível elitismo do poeta, convém salientar que sua crítica se dirige à categoria do inautêntico, e não à do popular. A ausência de riscos, a cautela pragmática, os subterfúgios apaziguadores seriam expressões

de inautenticidade, sem remeterem forçosamente a proveniência “popular”. (SECCHIN, 1996, p. 10-1)