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O Mito e a Função do Poeta Contemporâneo

3. Demonstração e Análise de algumas das Principais Vias de Acesso à Condição

3.5. O Mito e a Função do Poeta Contemporâneo

Glória. Glória remete a heroísmo. É possível um poeta contemporâneo aspirar a alguma glória ou a algum heroísmo realmente significativos? A ideia de herói sempre esteve presente no imaginário dos poetas, e alguns realmente foram heróis em vida e em obra (levando em consideração a ideia de heroísmo de cada época). Mas qual o heroísmo além do reconhecimento, dos prêmios, da fama do poeta e da obra; fama e reconhecimento cada vez mais em baixa por causa do cada vez menor status do poeta na sociedade? O poeta e seu eu poético não mais são guias, profetas, etc. e não se relacionam com a sociedade nesses termos. Os últimos laivos de heroísmo foram, cada qual a seu modo, o orgulhoso luto dandesco da modernidade fin-de-siècle e a euforia futurista das vanguardas históricas. E tais heroísmos já não eram mais heroísmos de guia, profeta ou gênio, pelo contrário: eram heroísmos que vieram para preencher o vazio do heroísmo anterior, de quando poeta e sociedade se relacionavam de modo mais direto e ativo.

O eu poético de Alexei Bueno não representa um herói na contemporaneidade, mas um poeta que também vive a decadência do heroísmo. Viver a decadência é, para ele, responder ao contemporâneo absorvendo uma experiência de contemporâneo que ultrapasse sentidos fixos. A “reatualização” da resposta baudelairiana ao presente, os jogos entre as metades da arte e entre a analogia e a ironia criados na contingência do presente, a “reatualização” de tradições que transformam o passado em uma instância temporal aberta e inconclusa, abrindo o horizonte de novas experiências temporais, tudo isso em nome de escavar a condição, a consciência e a inconsciência humanas, onde o conhecimento técnico, isto é, o “pólo construtivo, voltado para a perfeição formal do

texto, convive com o desejo de uma integração cósmica” (FERNANDES; ANDRADE; 2008, p. 128) para empreender uma busca de emancipação transcendente, é a tentativa do eu poético de Alexei Bueno de conviver com a decadência do heroísmo. Por isto o mito é tão importante para sua poética. Paz afirma:

O mito não se situa numa data determinada, mas em “uma vez”, um nó em que espaço e tempo se entrelaçam. O mito é um passado que também é um futuro. Pois a região temporal onde os mitos acontecem não é o ontem irreparável e finito de todo ato humano, mas um passado carregado de possibilidades, suscetível de atualizar-se. O mito transcorre num tempo arquetípico. E mais: é tempo arquetípico, capaz de reencarnar. O calendário sagrado é rítmico porque é arquetípico. O mito é um passado que é um futuro disposto a se realizar num presente. Na nossa concepção cotidiana do tempo, este é um presente que se encaminha para o futuro, mas que fatalmente desemboca no passado. A ordem mítica inverte os termos: o passado é um futuro que desemboca no presente. [...] O mito, assim, contém a vida humana na sua totalidade: por meio do ritmo ele atualiza um passado arquetípico, ou seja, um passado que potencialmente é um futuro disposto a se encarnar num presente. [...] Então, o que distingue o tempo mítico de todas as outras representações do tempo é o fato de ser um arquétipo. Passado sempre suscetível de ser hoje, o mito é uma realidade flutuante, sempre disposta a encarnar-se e voltar a ser. (PAZ, 2012, p. 69-70)

Nem guia nem profeta, o eu poético de Alexei Bueno tem a postura de um solitário que estimula os indivíduos através da escavação da condição humana, demonstrando que ela não é somente as próprias condições de sua contingência história, mas a permanência de vicissitudes, angústias, alegrias, desejos, plenitudes e vazios que acompanham o ser humano em cada momento da História.

O poema de Alexei Bueno mais condizente com a representação da decadência de um herói tentando estimular a humanidade é o que se encontra na obra A árvore seca e se intitula “Glória”:

GLÓRIA

Bêbado, às duas da manhã, Parei na loja de ovos e aves. Subi na grade e, em grande afã, Cacarejei, de ecoar nas traves.

Os galos todos acordaram Cheios de brio e, num só coro,

Com seu cacarejo enfrentaram O meu, mais forte, mais sonoro.

Saltavam todas as galinhas. Penas voavam loja afora. Ligavam luzes nas vizinhas Casas. Parti. Criara a aurora.

21/9/2004 (BUENO, 2006, p. 18)

Há um heroísmo no poema, mas sarcástico. É um heroísmo subterrâneo, que ninguém vê sendo realizado. O tom menor, sorrateiro e meio ridículo do heroísmo do poema condiz com a falta de voz do poeta na sociedade, sua falta de importância explícita. Ao mesmo tempo, condiz com sua insistência em tentar realizar milagres em pleno cotidiano, imerso em sua contingência histórica. A glória, o milagre e o heroísmo do poema é o eu poético conseguir, com suas parcas possibilidades na imersão cotidiana, estimular as pessoas a ajudá-lo a criar a aurora, isto é, recontar a “narrativa” fundante do nascimento do dia, recontar um mito fundamental de renovação, dando sentido a um mundo sem sentido, “clareando” um sentido para o mundo “tecendo a manhã”, para dizer como João Cabral. Em termos míticos, tal “clareamento” de sentido é a passagem das imagens do caos (morte, não-ser, natureza) para as imagens da ordem (vida/existência, ser, cultura). Figurações da aurora e de nascimento têm ligação íntima com os mitos do nascimento do herói, da derrota das trevas, da ressurreição e da criação. O eu poético de Alexei Bueno só pode realizar o mito fundamental de renovação sem ser visto, sem se mostrar para a sociedade, que de qualquer modo não o vê. Mesmo que a sociedade não perceba, ele a estimulou a ajudá-lo a recontar o mito. A voz do eu poético é um cacarejo, mas um cacarejo bem sonoro e insistente (notemos as aliterações em “c” principalmente no quarto verso da primeira quadra e no terceiro verso da segunda quadra).

A metrificação fixa das três quadras do poema “Glória” (a maioria dos versos são redondilhos maiores, sendo alguns poucos octossílabos), e a regularidade das rimas (rimas alternadas) garante aqui a estrutura rígida de muitos poemas de Alexei Bueno. A rigidez em Alexei Bueno (formas fixas e tradicionais, ora mais ora menos seguidas como sustentação compositiva de sua obra) tem a função principal, na maioria dos casos, de “racionalizar” o sonho, o delírio, a vertigem, pois em sua poética tais

instâncias dionisíacas e do inconsciente caminham junto com a razão, com a tentativa de direcionar a imaginação e a fantasia para pontos em que, um tanto paradoxalmente, elas sejam conscientes de suas intenções, que são o estímulo a uma busca da condição humana. Essa dialética do inconsciente do delírio e da forma consciente do delírio, essa tensão do acaso e da forma que procura abolir o acaso é o fenômeno na poética de Alexei Bueno que evidencia uma visão do ser humano, a saber: o ser humano é um ser em que razão e emoção, instâncias dionisíacas e apolíneas não se dissociam, mas se interpenetram de modo que umas se reconheçam nas outras. A dita rainha das faculdades humanas (imaginação) já colabora com a razão, e esta nunca se desvincula da imaginação. No poema “Glória”, o eu poético está bêbado no momento em que realiza seu sarcástico heroísmo, porém sua ebriedade está consciente de sua função, sustentada por uma forma (instrumento de “consciência”) que garante sua execução, fazendo com que a vertigem seja racionalmente construída enquanto vertigem motivada, não exercida por ela mesma, mas condizente com uma função delegada ao eu poético: função de recontar um mito fundamental de renovação com a ajuda das outras pessoas, sem que elas saibam. No fundo, a ebriedade do eu poético está mais “consciente” do que a “cegueira” ou incompreensão das pessoas acordadas e “sãs”.

Esse poema parece ser um prenúncio de outro, também na mesma obra, intitulado exatamente “Aurora”. Aqui a aurora já está plenamente realizada com a ajuda compartilhada do eu poético e dos indivíduos, sem que estes se deem conta disso por estarem com os olhos sem fé nem horizonte:

AURORA

Tudo é novo neste mundo. Toda manhã é a primeira. Que este saber sem segundo Se espalhe na terra inteira.

Nada foi feito, nem dito. Os cegos não sabem disso. Seus olhos, sem fé nem fito, Mancam num dia postiço.

Um mudo amor tudo guia. Não há hora a que ele sucumba. É hoje o terceiro dia.

1/11/2004 (BUENO, 2006, p. 140)