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CAPÍTULO 3. NORMA INFRA-CONSTITUCIONAL: O ESTADO

3.1 Desvelando os vieses ocultos no Estado brasileiro: regulado e regulador

Conforme discussão iniciada, no primeiro capítulo, entendemos, com base na conceituação de Marx (2005), que o Estado se define por uma relação de entrelaçamento com a sociedade civil, sendo, no entanto, esta última a base daquele, uma vez que as relações jurídicas dele emanadas, devem ser compreendidas como fruto das relações materiais de existência.

Assim, as relações econômicas travadas na sociedade acabam por ser o elemento de fundação, os alicerces, sobre os quais é edificada a superestrutura política – o Estado, e jurídica – a Constituição. Dessa construção, emerge a obra contraditória: o Estado tem origem com as classes – que lutam entre si. Nessa luta, a classe dominante, para se manter erguida, usa como mecanismos a propriedade privada dos principais meios de produção e o apoio do Estado, que tem auxiliado na formulação de projetos que institucionalizem sua dominação econômica e política, por meio de acessórios como estruturas jurídicas, forças repressivas e outras formas de coercibilidade. (MARX, 2005).

O projeto neoliberal vigente, não abandona completamente o Estado, como se pensava, o que relativiza a premissa do Estado mínimo. Wood (2005) nos esclarece que o capitalismo atual requer um perfil de Estado que o auxilie em seu fortalecimento.

Daí a relevância de buscarmos subsídio na teoria tridimensional do Direito – já apresentada no Capítulo 1 –, de Reale (1984), que, com base na conjugação de seus elementos, nos auxilia no entendimento da mediação necessária que ocorre entre: o fato da existência de uma relação de poder ou o fato poder (Estado), que define suas políticas públicas, com base na instauração de valores (modelo adotado pelo Estado) a serem absorvidos pela sociedade, tomando por referência, para a materialização do valor adotado (modelo capitalista neoliberal), um conjunto de normas (constitucionais e infraconstitucionais). Em resumo, o Estado, valendo-se de sua orientação axiológica, materializa suas políticas públicas por meio do ordenamento jurídico.

Assim, o modelo de Estado capitalista neoliberal, assumido pelos governos brasileiros, materializa o perfil de um Estado regulador para, dessa forma, conseguir dar conta do projeto de sociedade que incorpora, e pela qual é regulado.

Conforme acompanhamos historicamente, no Capítulo 2, o perfil do Estado e de seus governos pode ser identificado na forma como estão dispostas as normas que regulam a sociedade. As Constituições acabam, nesse sentido, sendo espelho e lâmpada do Estado que se deseja seguir, bem como as normas daquela decorrentes.

Embora a Constituição Federal, de 1988, tenha sido fruto de uma luta da sociedade brasileira pela normalização democrática, não podemos descartar por completo que ela não tenha sido concebida assentada, também, em valores capitalistas, historicamente assumidos pelo país, a exemplo do art. 170, caput, II e IV58. Apesar disso, seu grande referencial

democrático é encontrado, facilmente, na letra da maior parte do seu texto original, sendo, portanto, inegável que ela, diversamente de todos os textos constitucionais anteriores, representa os anseios da população pela mudança do regime militar, assegurado pela instauração, no campo legal, de uma Lei Magna que conferisse segurança jurídica ao Estado Democrático de Direito, tão desejado.

Constitucionalistas como Moraes (2004), Silva (2005) e Carvalho (2008), consideram que, numa Constituição democrática, a intervenção do Estado na ordem econômica só se 58 “Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: [...] II – propriedade privada; [...] IV –livre concorrência.”. Assim, ao invés de destacar o antagonismo entre patrão e empregado, o artigo harmoniza capital e trabalho, assegurando a livre iniciativa, que entendemos como o favorecimento da apropriação privada dos meios de produção.

justifica se for direcionada no sentido de condicioná-la ao cumprimento do objetivo de assegurar a existência digna a todos. Ocorre que, se houvesse um ranking que expusesse os Títulos da CF/88 que mais sofreram emendas, ele ficaria ordinalmente disposto assim:

1° - Título X – Ato das Disposições Constitucionais Transitórias; 2° - Título VII – Da ordem econômica e financeira;

3° - Título VI – Da tributação e do orçamento; 4° - Título VIII – Da ordem social.

É, de certa forma, aceitável que uma Constituição passe por emendas, posto que as leis não se devem configurar como perpétuas, em virtude das próprias modificações que ocorrem na sociedade. Também, é aceitável que os ADCT sofram alterações, apenas no sentido de que representam a tentativa de organizar a transição de um período à outro, visto que a ocorrência de uma nova Carta Política costuma se dar em momentos de extremas transformações sociais, que impliquem mudanças nas normas que as regulavam. Todavia, é inaceitável que uma Constituição como a brasileira, classificada como rígida59, em virtude de já ser analítica60, some atualmente 56 emendas61, com destaque para a ordem econômica, financeira, tributária, orçamentária e social (nessa última está inserida a educação).

Isso representa inferir que as modificações caminham no sentido de atender a um projeto especialmente associado ao campo econômico e, ao mesmo tempo, interessado em interferir na ordem social.

Para Paulo e Alexandrino (2008, p.5), no caso do Estado brasileiro,

[...] a doutrina constitucionalista aponta o fenômeno da expansão do objeto das Constituições, que têm passado a tratar de temas cada vez mais amplos, estabelecendo, por exemplo, finalidades para a ação estatal. Isso explica o alargamento dos conteúdos preocupado com os fins estatais [...].

59 Por apresentar, conforme já dito neste trabalho, a exigência de um processo legislativo dificultoso para a modificação de seu texto, visando com isso assegurar-lhe uma maior estabilidade. Para Moraes(2004) a CF/88 é super rígida, porque além de poder ser alterada somente pela via de um processo legislativo diferenciado, ela é imutável em alguns pontos (art. 60, § 4° - cláusulas pétreas).

60 Dotada de conteúdo extenso, prolixa, porque versa sobre matérias que vão além da organização básica do Estado, o que é aceitável, somente em função de ter sido precedida por uma ditadura.

61 Fruto do poder constituinte derivado reformador, altera o trabalho do poder constituinte originário, por meio do acréscimo, modificação ou supressão de normas. O poder constituinte derivado é, no entanto, condicionado, sendo submetido a determinadas limitações (art.60 c/c 5º, § 3º).

Se não bastasse isso, as normas infraconstitucionais crescem desenfreadamente, sem se preocupar, inclusive, se a materialidade de seus conteúdos está disposta de forma contrária à Constituição. Assim, têm buscado assegurar o fortalecimento do Estado capitalista neoliberal, não importando se os instrumentos normativos ferem a Lei Magna, de vez que o fundamental é assegurar interesses.

O Banco Mundial (BM), o BIRD, o FMI, dentre outros organismos internacionais, são os principais direcionadores das ações do Estado brasileiro, posto que induzem reformas com vistas a atender ao ideário neoliberal. Sobre essa questão, Silva Júnior e Sguissardi (2001) afirmam que a reforma do Estado esteve nitidamente associada com as diretrizes estabelecidas por esses organismos, que, caso sejam linearmente seguidas, facilitam a concessão de empréstimos. Tais organismos, ao concederem empréstimos, exigem, em contrapartida, que o governo adote medidas que demonstrem a garantia de pagamento. Dentre as exigências por eles impostas, o governo deve se comprometer com a adoção de medidas como a busca do equilíbrio orçamentário, via redução do gasto público; a desregulamentação interna, via extinção de instrumentos de intervenção do Estado; e a privatização, não somente das empresas, como também dos serviços públicos, dentre eles a educação.

Dourado (2002) resume as principais recomendações do BM para a educação superior, apontadas no documento intitulado “La enseñanza superior: las lecciones derivadas de la experiencia”:

1) privatização desse nível de ensino, sobretudo em países como o Brasil [...]; 2) estímulo à implementação de novas formas de regulação e gestão das instituições estatais, que permitam alterações e arranjos jurídico-institucionais, visando a busca de novas fontes de recursos junto a iniciativa privada sob o argumento da necessária diversificação das fontes de recurso;

3) aplicação de recursos públicos nas instituições privadas [...]. (DOURADO, 2002, p. 241).

Nesse sentido, os organismos internacionais emitem orientações para atender aos interesses capitalistas, e o Brasil as tem seguido. E assim, a prescrição do rumo a ser tomado pelas políticas públicas destinadas à educação superior é cumprida, e o benefício do empréstimo é alcançado, embora resultem adversidades internas, tais como: desrespeito à CF,

autonomia universitária ressignificada como liberdade de interagir com o mercado, desvinculação de receitas para garantir o pagamento da dívida externa, mercantilização da educação superior, diluição das fronteiras entre o setor educacional público e o privado etc..

Os primeiros contatos com o projeto neoliberal datam do governo Collor, passando por Itamar Franco, embora não tenham adquirido a materialidade que foi alcançada nos governos seguintes, de Fernando Henrique Cardoso e Luis Inácio Lula da Silva.

De acordo com Silva Júnior (2005), no governo de Fernando Henrique Cardoso (1995- 2002), as reformas educacionais caminhavam no sentido de formar “a população brasileira em processos cognitivos, nos necessários conteúdos postos pela mundialização do capital” (p. 14), cuja premissa exige a aptidão do cidadão para o trabalho e para o mundo globalizado.

Chaves (2005) esclarece que a política para a educação superior brasileira, implementada nesse governo, atende plenamente às proposições do BM, FMI e do grupo dos sete países mais industrializados do mundo (G7+1). A autora reforça que essas agências “passaram a exigir mudanças estruturais nos países que, já endividados, buscassem a sua integração ao sistema internacional do capitalismo financeiro especulativo.” (p. 127).

Silva Júnior e Sguissardi (2001) afirmam que o MARE capitaneou a reforma do aparelho do Estado à medida que implementou um amplo programa de ações que se justificavam nos livros do então ministro da Administração Federal e Reforma do Estado,

Bresser Pereira, cujo discurso permitia inferir que a reforma era necessária, em razão do processo de globalização que provocou a redução da autonomia do Estado e a crise econômica. Identificamos, no entanto, não apenas pontos de contato, mas uma recomendação claramente seguida e nitidamente manifesta, nos aparatos legais.

Uma das propostas da Reforma que gerou grande polêmica foi relativa a conversão das instituições de educação superior (IES) públicas, de autarquias ou fundações em organizações sociais, regulamentadas via contratos de gestão. Carvalho (2004, p.12), relata que a “reação da comunidade acadêmica a este projeto foi de tal monta que a conversão das universidades de autarquias ou fundações em organizações sociais passou a ter caráter voluntário.”. Ela ressalta, também, que as três universidades paulistas autônomas permanecem como autarquias estaduais.

Sobre as principais ações, legislativas ou não, que produziram reformas, no governo FHC, Silva Júnior (2005) discorre que nele assistiu-se à promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – Lei n° 9.394, de 1996 – a conhecida LDB; das diretrizes curriculares para cursos de graduação; da regulamentação dos cursos seqüenciais; dos processos de avaliação da educação brasileira; da descentralização ou desconcentração da gestão educacional; do autoritário decreto sobre a formação de professores, entre outras.

Em 2003, o primeiro presidente de frente popular assumiu o poder, via eleições diretas. Tratava-se de Luis Inácio Lula da Silva (2003-2006), cujo programa de governo conhecido como “uma escola do tamanho do Brasil” apresentava a defesa da educação como direito social básico, bem como criticava duramente o processo de privatização da educação superior brasileira, ocorrida no governo anterior.

Ocorre que o governo do atual presidente tem-se mostrado bastante incoerente, tanto no discurso como na prática. Kátia Lima (2004) entende que, entre as diretrizes do programa de governo de Lula e suas ações, há um imenso abismo, posto que

[...] a possibilidade de aprofundamento do processo de privatização da educação superior brasileira se dá exatamente pela afinidade política entre o projeto de sociedade e de educação, elaborado pelos organismos internacionais para os países da periferia do capitalismo e o projeto que vem sendo implementado pelo governo Lula. (LIMA, K.R., 2004, p.33).

É importante registrar que, até o momento, consideramos não ser possível nomear a ocorrência de um marco legislativo único, que comandasse as reformas na educação superior. O que vemos ocorrer é a emissão de uma série de espécies normativas ou de medidas jurídico- administrativas que, a exemplo do governo anterior, seguem as mesmas orientações, porém de forma mais incisiva. Um dos escopos normativos está configurado na redução do espaço público em favorecimento do privado e até mesmo na conjugação do que poderíamos considerar improvável: o público no privado, ou o que Kátia Lima (2004) define como o relançamento do conceito de público não estatal62.

62 Lima, K. R. (2004) considera que o conceito de público não-estatal atravessou e constituiu a reforma do Estado brasileiro, na década de 1990, e da diversificação das fontes de financiamento das universidades públicas. Assim, pautado na premissa ideológica de que o capitalismo pode ser humanizado, os intelectuais orgânicos da burguesia difundem a chamada “terceira via” para a qual, no plano econômico, é necessário equilibrar regulação e desregulação de uma economia mista, por meio de parcerias público-privadas.

Em suma, a política pública para a educação superior, nos dois últimos governos, sinaliza um maior aprofundamento dos princípios neoliberais. Observou-se, então, a institucionalização das parcerias público–privadas, tanto pela efetivação de cursos pagos com recursos públicos, na rede privada de ensino, e de extensão, pagos pelos alunos a instituições públicas, quanto pela relação estreita entre as fundações privadas e as universidades públicas, principalmente para a prestação de serviços.

O Estado brasileiro, regulado por instâncias internacionais, exerce um papel regulador, de controle e, se preciso, autoritário, com vistas à consolidação do modelo neoliberal. Para tanto, não importa se, para o alcance de seu objetivo, remende o texto constitucional ou disponha de forma contrária a ele, o que iremos verificar na análise de alguns instrumentos normativos infraconstitucionais, mais adiante.

3.2 Normas jurídicas pós-Constituição Federal de 1988: implicações para a