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PARTE II – DE LUGARES: O ATOR NA COMPOSIÇÃO DE ESPAÇOS

CAPÍTULO 3 OS ESPAÇOS QUE NOS DANÇAM: A EXPERIÊNCIA SANJOANENSE

4. Os espaços dançados: os estudos cênicos I e

4.2. Segundo fluxo de imagens e sensações: Estuco cênico II: Circuitos internos Peça

4.2.1. O desvendar da voz: uma ponte para outras camadas do invisível

Nesse segundo momento do processo com o NAPI, a prática contínua do SMAT recebeu outros focos de atenção: a manutenção da dimensão coletiva do trabalho; a produção de intensidade do gesto e da presença do ator por acúmulo de energia; o fortalecimento das quebras dos padrões e previsões rítmicas dos movimentos dos atores, com estímulo à vazão de impulsos individuais; e uma investigação mais detalhada da voz e da palavra que no treinamento Suzuki volta-se para sua clareza, vigor e articulação, assim como em relação ao corpo a partir de um grande engajamento físico durante sua

emissão.

No entanto, por sempre ter questionado o equilíbrio das forças masculina e feminina no SMAT, que para mim explora um lado mais explosivo, marcial, Yang; percussivo e volitivo, pareceu-me interessante experimentar e imprimir no treino qualidades mais leves e sutis. Decidi então trabalhar com o núcleo alguns dos elementos da escola do Desvendar da Voz (ou Canto Werbeck). Dessa forma, foi possível relativizar e também descobrir perspectivas complementares no uso das intensidades, uma vez que esta escola não se propõe à exploração de um virtuosismo do ator, forçando seus limites54. Perguntados sobre o encontro com esta escola e o trabalho com a palavra, lesson (Roda de Entrevistas, 2016) foi bastante enfático quanto às suas percepções:

Existe o que ela significa e outras coisas na própria palavra; todo um imaginário, uma potência... E esse trabalho vocal não estava pautado no trabalho mecânico do canto, ... você tem que chegar aqui [como que apontando uma nota], num Dó que existe igual para todos... O Desvendar me fez acreditar que temos outras possibilidades... também de entender e brincar com a música e as sonoridades [...].

Janaína Trindade, na mesma Roda de Entrevista (2016), disse: “[…] agora fico atenta ao cuidado em quebrar o silêncio...o treinamento me trouxe muita atenção ao vazio, ao silêncio. E falar é trazer algo”.

Além dessa relação clara com a percepção das pausas, pois para o Desvendar também é aí que a música e toda a ação do canto acontece, a ponte traçada entre este universo e o SMAT foram os estudos sobre a apreensão de katas de Hiroyuki Noguchi (apud OHNO, 2007) e a ideia do ser como um instrumento/elemento sonoro e musical (MARTINS, s/d).

54 A escola Desvendar da Voz, desenvolvida pela cantora sueca Valborg Werbeck-Svärdström (1879 - 1972) em parceria com Rudolf Steiner,visa um caminho de autodesenvolvimento baseado em três pilares: pedagógico, como meio de manutenção do instrumento do canto (a voz); terapêutico, com destaque ao elemento curativo; e artístico, que busca o equilíbrio entre pensar, sentir e querer que, num paralelo direto com o corpo físico, respectivamente representam as regiões da cabeça, do peito e do quadril.

Fig. 57 – Peça coreográfica para uma única nota. Apresentação Sala Preta CTan. Atores NAPI: Janaína Trindade, Gabriel Carneiro, Luciana Oliver, Sabrina Mendes, Romíria Turcheti. Fotografia da autora.

Assim como os fonemas, que expressam arquétipos e equilibram um lado mais estruturante e plástico (os sons consonantais) com um lado mais ressonante (as vogais), os katas são códigos, fôrmas preexistentes que carregam, em potência, formas e conteúdos. Engajando-se nos katas apropriadamente, é possível entrar em seus campos de ressonância e receber sua força, seu sopro vital. Semelhantemente, na escola do Desvendar, onde o som emitido tem uma existência prévia (na pausa), o ator/cantor conectado a este som, torna-se seu veículo durante a emissão.

Jogo que no Núcleo foi reforçado pelos tratados de Zeami (1984), uma vez que o autor chama a atenção para este diálogo ao ressaltar que o movimento do ator deve nascer de seu canto. Ou ainda: que a plateia deve ouvir o texto e ver o movimento correspondente, quando o canto é a substância e o movimento, sua manifestação. Uma ponte clara entre corpo vibrátil-geração de movimiento-voz, tendo como elo a respiração. De forma complementar, os exercícios do Desvendar se relacionam com a ideia de terapêutica ao serem utilizados também como meio para a preparação do ambiente de trabalho, despertando a concentração do grupo pela escuta e localização do som.

vetorização/espacialização do som, orientado pelas perguntas: Para quem se fala? Para onde se fala? Foi realizada investigação de vogais e consoantes, bem como da exploração desses fonemas, ora em separado ora como um conjunto silábico e também quanto à forma e articulação das palavras. Posteriormente, não mais trabalhando pequenos fragmentos sonoros, mas as frases completas do texto de Merton, baseamos a emissão da palavra no fluxo do pensamento dado pelo próprio texto, procurando estudar as tônicas (centro “vital” de cada frase) e as ações relacionadas.

Usamos verbos como apoio ao estudo, procurando desvencilhar a palavra de uma representação/significação imediata ao agregar outras qualidades a partir de sugestões colhidas em Alschitz (2005; 2013) e Schafer (2009), entre outros. No fragmento de texto dito por Zilvan Lima no Estudo II, por exemplo: “Mas eu mesmo não sei quem eu sou. Posso ser uma lâmina afiada se você se aproximar demais”, associamos o verbo cortar à ideia de lâmina afiada, o que nos possibilitou pesquisar outros verbos relacionados, como furar, perfurar, deslizar, abrir, procurando imprimir na frase emitida a tradução literal sonora, correspondente a cada um deles.

Fig. 58 – Peça coreográfica para uma única nota. Apresentação Sala Preta CTan. Atores NAPI: Zilvan Lima, lesson, Gabriel Carneiro, Sabrina Mendes. Fotografia da autora.

Fig. 59 – Peça coreográfica para uma única nota. Apresentação Sala Preta CTan. Atores NAPI: Zilvan Lima, Gabriel Carneiro, Romíria Turcheti, Sabrina Mendes, lesson, Priscila Moraes, Janaína Trindade. Fotografia da autora.

Ao mergulharmos no campo sonoro, estávamos pautados por parâmetros utilizados num diálogo musical com o emprego de variação rítmica, repetição, imitação,

contraponto, fluidez entre momentos, percepção, textura, pergunta/resposta – e por rodas de improvisação, levando à construção da partitura e do espaço musical da Peça II que, em vários momentos, dialogava diretamente com os solos dos atores e com os fluxos aos quais remetiam, como o respiratório, quando a “música tocada” foram sons de sopro, brisa e vento.

5. De alguns espaços desvelados