• Nenhum resultado encontrado

PARTE II Ŕ O CASO DOS RELATOS DE TAINE SOBRE A GRÃ-BRETANHA

2. Hippolyte Taine

2.2. O Determinismo

Para se entender o determinismo presente na obra de Taine, importa primeiro traçar uma visão geral das principais tendências da corrente de pensamento que dominaram a segunda metade do século XIX, entrecruzando-as com a metodologia de Taine.

Na centúria de Oitocentos, os binómios indivíduo/sociedade e natural/sobrenatural alcançaram grande impacte. O indivíduo foi confrontado com o problema de encontrar o seu lugar no meio social, indo, por isso, à procura de respostas na sua própria história. Deste modo, o ser humano e o seu meio tornaram-se os principais objectos de estudo por parte da ciência. Neste contexto, desenvolveu-se o Naturalismo taineano e a sua tentativa de criticismo científico. Não obstante, a defesa da religião, dos valores morais e da metafísica constitui uma oposição ao Naturalismo, mantendo-se sempre em paralelo e sendo exacerbada em França, após a derrota com a Prússia.

O CASO DOS RELATOS DE TAINE SOBRE A GRÃ-BRETANHA

55 Depois de um período romântico curto, caracterizado pela expressão da emoção, da imaginação, da fantasia, da intuição e da natureza, o realismo começou a ganhar força na literatura francesa da primeira metade do século XIX. Afirmando-se pela tentativa de representar, de forma precisa, a realidade tal como ela se apresenta, sem a idealizar, o realismo pretendia sobretudo descrever objectivamente personagens comuns, inseridas em contextos quotidianos, rejeitando, assim, as personagens heróicas e os assuntos pouco familiares. O realismo foi adoptado em França quando se sentiu que chegara o momento oportuno para registar aspectos da sociedade que, até então, tinham sido ignorados.

Como consequência do realismo, surgiu o movimento literário naturalista, marcado pela descrição minuciosa do meio, pelo retrato da vida social das classes mais desfavorecidas e, estilisticamente, pelo uso de um registo menos formal. O Naturalismo encontra-se ligado a vários factores: a teoria da evolução das espécies de Charles Darwin (1809-1882), que sublinhava o papel desempenhado pelo meio e pela hereditariedade na determinação do destino do indivíduo; o positivismo de Auguste Comte (1798-1857), que demonstrava a relevância das relações estabelecidas entre o indivíduo e a sociedade enquanto condição para o progresso civilizacional; o experimentalismo de Claude Bernard (1813-1878), de acordo com o qual as metodologias de investigação e experimentais utilizadas pela Química e pela Física em objectos inanimados deveriam ser adoptadas em seres vivos pela Fisiologia e pela Medicina, servindo de base científica para o que os precursores do naturalismo pretendiam para a literatura, isto é, um método de observação experimental que fizesse dela uma ciência; e, finalmente, o determinismo de Hippolyte Taine (1828-1893), que defendia que a partir da obra contínua de uma raça se tornava possível inferir a influência exercida pela hereditariedade, pelo meio e pela época na sua produção. Um dos precursores do naturalismo, o romancista Émile Zola (1840-1902), pretendia que este movimento se dedicasse a descrever a decadência vivida na sociedade, mediante observações científicas.

Neste contexto, o positivismo afirmou-se como uma filosofia de cariz iluminista e anti-idealista que negava a validade das causas e dos fenómenos não observáveis pela ciência, como a metafísica e o sobrenatural. O positivismo baseia-se na ideia de que o verdadeiro conhecimento apenas pode ser obtido por via de factos científicos e de leis comprovadas pelo estudo objectivo, empírico e desprovido de juízos de valor subjectivos, contribuindo para a afirmação social das ciências experimentais.

O CASO DOS RELATOS DE TAINE SOBRE A GRÃ-BRETANHA

56 Os seus precursores afirmaram que o modelo positivista, baseado na observação objectiva dos factos sociais, se afigurava o mais adequado para o estudo científico da sociedade. Assim, a observação objectiva posicionou-se em oposição à intuição e à avaliação pessoal dos fenómenos, isto é, de um lado os juízos de facto e, do outro, os juízos de valor.

De entre as várias escolas positivistas surgiu o positivismo sociológico, que se encontra na base da Sociologia moderna, permitindo, de forma descritiva, identificar factos e recolher dados a partir de três factores observáveis que determinam o comportamento humano, Ŗla race, le milieu et le momentŗ, enunciados por Taine em Histoire de la Littérature Anglaise, e estabelecer relações entre eles, como se constatará adiante.

O facto de o positivismo ser descritivo e não prescritivo, de promover a imparcialidade ao invés da parcialidade, de reduzir-se a uma mera descrição de personagens que se movem no espaço social sendo dele reféns e pela condição de desvantagem que apresentam umas face às outras, acarretou-lhe várias críticas, nomeadamente a de impedir mudanças sociais e de não contribuir para o avanço humano, promovendo apenas a perpetuação de um mesmo estado de coisas. Outra crítica importante reside na constatação de que factos isolados não falam por si próprios, têm de ser analisados, e, portanto, esta análise não se encontra livre de juízos de valor ou de modelos de interpretação.

Deve notar-se que antes de as Ciências Sociais se afirmarem, Taine já se antecipava a estas críticas modernas com o seu criticismo e empirismo. Assim, em Notes sur l’Angleterre, Taine não se coíbe de acrescentar juízos de valor ao resultado da sua experiência empírica. No seu texto, encontra-se sempre, algures, um expediente linguístico onde está impresso um juízo, sendo que, quando este não é evidente, se encontra implícito numa imagem mental ou numa representação de um objecto ou de uma situação. Ao estudar a natureza humana e a cultura para a qual escreve, o autor, antes de terminar um parágrafo, incute no entendimento do leitor um determinado juízo, obrigando-o a pousar o livro e a afirmar o que o primeiro não quis explicitamente concretizar. Atente-se o seguinte exemplo. Imagine-se que num país em que 80% da população é conservadora saía o seguinte título de jornal: ŖNeste país o legislador é que sabeŗ. Muito provavelmente, dos 80% conservadores muitos diriam: ŖQuem sabe, sabe!ŗ ou ŖSe está lá é porque sabe!ŗ. Todavia, de entre os restantes 20% provavelmente haveria alguém a dizer: ŖSabe, sabe … sabe é pouco!ŗ ou ŖSabe, … sabe a pouco!ŗ. Isto

O CASO DOS RELATOS DE TAINE SOBRE A GRÃ-BRETANHA

57 significa que o autor do título não precisou de revelar a sua verdadeira intenção para que esta produzisse os efeitos desejados, necessitando apenas de jogar com as variáveis exteriores ao texto e com a forma como estas funcionam. O valor de um texto não se encontra encerrado dentro do próprio texto, pois trata-se de algo dinâmico que vai conferindo dimensão à mensagem, à medida que esta contamina o sistema social. Obviamente que este exemplo é muito básico, tendo em conta a complexidade do tecido social, mas percebe-se a ideia. Importa aqui reter que a atitude positivista de quem sabe mais do que aparenta saber cuidará de fazer com que aquela lhe sirva para o que é, mas também para o que não lhe parece servir.

Quanto ao determinismo taineano, em específico, a melhor forma de o explicar será porventura mediante a tentativa de perceber, desde logo, o que Taine entendia por Ŗla race, le milieu et le momentŗ, recorrendo à sua Histoire de la Littérature Anglaise (1863) e transcrevendo, a partir daí, as definições que, posteriormente, foram aqui traduzidas do francês para o português. Deve ainda sublinhar-se que tanto em Histoire de la Littérature Anglaise como em Notes sur l’Angleterre, Taine põe em prática a metodologia por ele proposta no prefácio à segunda edição de Essais de Critique et d’Histoire (1866), traduzido por W. F. Rae e transposto para a sua introdução a Notes on England (1872). Esta metodologia constitui o corolário das três forças primordiais, Ŗla race, le milieu et le momentŗ, esclarecidas em seguida (Fig.14):

FR PT

Les Trois Forces Primordiales As Três Forças Primordiais Hippolyte Taine (Nossa Tradução)

Race Raça

Ce quřon appelle la race, ce sont ces dispositions innées et héréditaires que lřhomme apporte avec lui à la lumière, et qui ordinairement sont jointes à des différences marquées dans le tempérament et dans la structure du corps. Elles varient selon les peuples. Il y a naturellement des variétés dřhommes, comme des variétés de taureaux et de chevaux, les unes braves et intelligentes, les autres timides et bornées, les unes capables de conceptions et de créations supérieures, les autres réduites

A raça é composta por disposições inatas e hereditárias que transparecem no homem, e que normalmente se juntam às diferenças marcadas pelo temperamento e pela estrutura do corpo. Estas variam de povo para povo. Existem, naturalmente, espécies de homens, tal como existem de touros e de cavalos, alguns corajosos e inteligentes, outros tímidos e tacanhos, alguns capazes de conceber projectos e criações grandiosas, outros reduzidos a ideias e a invenções rudimentares,

O CASO DOS RELATOS DE TAINE SOBRE A GRÃ-BRETANHA

58 aux idées et aux inventions rudimentaires,

quelques-unes appropriées plus particulièrement à certaines œuvres et approvisionnées plus richement de certains instincts, comme on voit des races de chiens mieux douées, les unes pour la course, les autres pour le combat, les autres pour la chasse, les autres enfin pour la garde des maisons ou des troupeaux. (xxiii)

algumas mais apropriadas para certas tarefas que exigem determinados instintos, como se pode observar em raças de cães mais talentosas, umas para a corrida, outras para a luta, outras para a caça e outras para guardarem casas ou rebanhos.

• •

Lřhomme, forcé de se mettre en équilibre avec les circonstances, contracte un tempérament et un caractère qui leur correspond, et son caractère comme (xxiv) son tempérament sont des acquisitions dřautant plus stables, que lřimpression extérieure sřest enfoncée en lui par des répétitions plus nombreuses et sřest transmise à sa progéniture par une plus ancienne hérédité. En sorte quřà chaque moment on peut considérer le caractère dřun peuple comme le résumé de toutes ses actions et de toutes ses sensations précédentes, (…) (xxv)

O homem, obrigado a lidar com as circunstâncias, acaba por adquirir um temperamento e um carácter que lhe correspondem. Tanto o carácter como o seu temperamento são aquisições que se vão tornando mais estáveis, à medida que a acção externa nele se entranha de forma reiterada, sendo transmitida dos seus antepassados para os seus descendentes. De maneira que, em qualquer época, se considera o carácter de um povo como o resumo de todas as suas acções e sentimentos precedentes, (…)

Milieu Meio

Car lřhomme nřest pas seul dans le monde; la nature lřenveloppe et les autres hommes lřentourent (xxv); (…) les circonstances physiques ou sociales dérangent ou complètent le naturel qui leur est livré. (…) Tantôt le climat a fait son effet. (…) les circonstances politiques ont travaillé, (…) (xxvi) les conditions sociales ont imprimé leur marque, (…) (xxvii)

O homem não está sozinho no mundo, a natureza envolve-o e os outros homens rodeiam-no; (…) as circunstâncias físicas ou sociais vêm corromper ou complementar a sua própria essência. (…) Por vezes, o clima tem o seu efeito. (…) as circunstâncias políticas exercem a sua influência, (…) as condições sociais deixam a sua marca, (…)

Moment Época

(…) avec les forces du dedans et du dehors, il y a lřœuvre quřelles [les races] ont déjà faite ensemble, et cette œuvre elle-même contribue à produire celle qui suit. Outre lřimpulsion permanente et le milieu donné, il y a la vitesse acquise. Quand le (xxviii) caractère national et les circonstances environnantes opèrent, ils nřopèrent point sur une table rase, mais sur

(…) com as forças que vêm de dentro e de fora, existe a obra que a raça já fez em conjunto, essa obra, em si, contribui para produzir a seguinte. Além do impulso permanente e de um dado meio, há a considerar a velocidade adquirida. A identidade nacional e as circunstâncias do meio não funcionam sobre uma tábua rasa, mas antes numa tábua já marcada por

O CASO DOS RELATOS DE TAINE SOBRE A GRÃ-BRETANHA

59 une table où des empreintes sont déjà

marquées. Selon quřon prend la table à un moment ou à un autre, lřempreinte est différente; et cela suffit pour que lřeffet total soit différent. (xxix)

impressões. Em cada época em que se utiliza essa tábua, as impressões marcadas serão diferentes, o que é suficiente para que o efeito seja também ele diferente.

Fig. 13. As Três Forças Primordiais Descritas por Taine.

Neste excerto, torna-se evidente a crença de Taine na existência de traços comuns de ordem hereditária que, de forma natural, congregam determinados indivíduos em torno de um mesmo interesse Ŕ a sua obra colectiva Ŕ, num dado espaço, o qual, por sua vez, vai exercer influência na forma como aqueles constroem essa obra. À medida que o tempo passa, o grupo evolui, sendo na continuidade da sua obra que se encontra o reflexo dessa evolução. Partindo destes pressupostos, analisar-se-á, em seguida, a metodologia taineana aplicada à Literatura.