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Deus e a família

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1.3. Deus nas falas e nos desenhos das meninas

1.3.3. Deus e a família

A divindade suprema, Deus, adquire importância fundamental enquanto mediação na família dada a sua condição sagrada, capaz de oferecer por meios simbólicos orientações para convivência entre seus integrantes.

Para tanto, a circunstância em ser feliz está quase sempre associada à participação religiosa onde Deus é o conforto e a força para superação das dificuldades cotidianas, dentre elas, as que ameaçam a harmonia do lar. Também aqui, Deus tem um papel mediador, enquanto possibilidade de prover o bem estar espiritual à família. A adesão familiar à religião constitui-se, portanto, numa força para acomodar as relações interpessoais, conformar os papéis estabelecidos e orientar a estrutura desse grupo a partir dos parâmetros contidos numa determinada doutrina.

Machado (1996), em sua obra “Carismáticos e pentecostais: uma adesão religiosa na vida familiar”, observa que ocorre uma modificação comportamental no homem em relação ao alcoolismo, prostituição, violência e na mulher, na medida em que reforça atitudes de abnegação e os valores morais da família. Ressalta o elemento da “endemonização” nos pentecostais para explicar desvios de uma ordem vigente, “os pentecostais em geral interpretam os comportamentos desviantes (traição, agressão física, alcoolismo e outros vícios) como sintomas de uma crise espiritual” (p.109).

Em se tratando do abuso sexual intrafamiliar tem como uma das interpretações, atitudes ligadas à “tentação”, ao diabólico onde a resolução deixa de estar na vida terrena para se localizar na disputa Deus-Satanás. Explicações dessa ordem velam a violência presente no campo social, tendo uma de suas expressões a criança-menina.

Ao estabelecer a guerra, no campo simbólico, bem-mal, percebe-se uma relação na família que se constrói revestida nesses parâmetros, onde a aproximação com Deus indica o afastamento do diabólico. Assim, a figura paterna que comete o abuso tem sua imagem vinculada ao mal e Deus considerado Pai, simbolicamente, ocupa esse lugar não só na criança, mas na família. Parece-nos que nessa mudança de lugares a figura paterna fica subsumida à figura de Deus- Pai, minimizando o vazio do pai terreno. Mesmo que isso ocorra observa-se que as meninas almejam o pai revestido dos elementos divinos. É como se isso estivesse invertido.

Os desenhos e depoimentos das meninas mostram constituições familiares diferenciadas e o lugar ocupado por Deus. Ao remetê-los à história de vida

de cada uma delas é possível compreender porque posicionam Deus em lugares diferenciados.

Criança A,

“Amo minha família e Deus”.

A exclui de seu desenho as figuras masculinas do padrasto e do irmão mais novo, registrando as figuras femininas e Deus como masculino no alto, mantendo distância delas e protegendo-as. A família para ela aparece de forma idealizada.

Criança B,

“Esse desenho é a família de Deus que fica lá no céu. Eu vou conhecer essa família um dia”.

Em seu desenho, B traz a família que ela idealiza, substituindo a avó materna presente em sua vida pelo pai, na figura de Deus. A família aparece sorrindo.

Criança C,

“Esse é Deus e minha família (cita a mãe e o nome das irmãs e do irmão). Minha família é muito legal, muito boa e eu agradeço a Deus”.

A imagem feminina de Deus mostra que a salvação está na mulher para C.

Criança D,

“Aqui é eu, minha irmã, papai do céu meu Deus, minha mãe e meu padrasto. Deus falou assim: Vamo se arrumá pra ir na igreja porque hoje vai tê uma festa por causa que as crianças não tá fazendo mal e nem o errado, tá fazendo certo”.

Essa criança mostra a imposição de um discurso sobre Deus que não lhe é próprio. Deus é posto ao meio, fazendo a ligação familiar porque é pelo viés religioso que tem se dado a conexão no sistema parental.

Criança E,

“Esse é Deus, a gente e minha família. Ele tá achando bom porque nossa família tá unida. Ele tá alegre”.

A menina, E, desenha Deus no mesmo plano que ela e as irmãs, separando a mãe e o padrasto desse espaço. Mostra que para ela proteção está em Deus e nas irmãs e não na relação paterna e materna, revelando o que ocorre em sua vida ou seja, se organiza com as irmãs para sobreviver.

Criança F,

“Aqui tá minha família toda unida e Deus abençoando minha família. Minha família tá em paz e alegria. Eu gosto muito da minha família mas é que minha família fica só brigando. Minha mãe bate na minha irmã porque ela teima e não obedece. Minha família sei lá... só sabe brigar”.

O desenho de F mostra a hierarquia familiar e Deus, pintado na cor branca, é posto em outro lugar, fora da família. “Ele é salvador e tá acima de nós”. Em sua fala diz como é a família e como gostaria que fosse: espaço de paz e alegria.

A partir desse material, as crianças mostram o lugar que ocupam e os laços estabelecidos com as figuras adultas de seu primeiro grupo social, apontam limites nas relações intrafamiliares e dizem de como gostariam que fosse a convivência. Ao idealizarem a família, trazem as faltas vividas no cotidiano que dificilmente são colocadas a esses adultos, pois designaram às crianças a não “darem palpites”. Tal impedimento desde cedo vai ensinando-a a não dizer o que teria para ser dito se processando “lições” de silêncio.

Para as meninas que vivenciam situações de abuso sexual, o silêncio que lhe é imposto engessa sua liberdade e no esgarçamento da figura paterna que aí acontece, o pai simbólico é tido em Deus, também masculino, de infindável poder, com preponderância sobre o feminino. É esse masculino que recobre a família de proteção cuja condição é fazer o “certo”, na ótica estabelecida por ele. Deixá-lo “feliz” e agradá-lo é ter proteção cujo elemento de troca é a submissão ao seu poder. Configura-se com tais elementos uma moldura histórica de pai que pode tornar-se uma camisa de força à criança abusada.

“Deus tem cabeça, olho, tem tudo igual a gente mas ele é mais diferente porque ele é santo” (criança A).

A sociedade em que vivemos é demarcada por desigualdades sociais, fruto de uma estrutura, onde o ter se sobrepõe ao ser e as relações se convertem em mercadoria, assegurando uma determinada reprodução que se constitui a partir de sentidos e significados produzidos historicamente. O ser humano, incompleto, cria relações sociais, novas necessidades que são exteriorizadas numa dada realidade, trazendo na sua constituição conflitos, relações de poder sob o mito da unidade na formação social. Essa busca tende a ser feita como forma de controle de uma ordem social que aprisiona o “desconhecido”, evitando a violência, que se expressa na incapacidade de articular interesses num processo social. Assim, numa sociedade de classes, há um constante embate por mudanças e transformações na sua organização estrutural e na medida em que o processo se fragiliza, a possibilidade de comportamentos violentos torna-se mais presente.

Segundo Kuyumjian (1998, p.25),

“Violência por outro lado, é um ato que provoca constrangimento físico e moral, que corresponde à coação e ao uso da força e que significa que a ruptura que se estabeleceu em uma relação cujo fim depende do jogo do confronto direto, extermínio necessário do mais fraco”.

Em um sentido mais amplo, a violência se manifesta numa relação de dominação (burguês - proletário, adulto - criança, homem - mulher, branco – negro) que, embora não sendo explícita, é encontrada em determinadas culturas, normalizando o social quer no campo privado ou público. Essa forma de violência adquire visibilidade quando materializada no âmbito comunitário e familiar, na inter- relação entre grupos e nas relações intrafamiliares.

Como forma de controle dessa violência, vários mecanismos foram adotados por parte do Estado brasileiro, sobretudo ao longo do século XX, a partir da década de 30, onde a família tornou-se um dos alvos dessa política de enfrentamento seja pela integração, ou pela relação de trabalho. As políticas sociais ao darem centralidade a esse segmento, carregam para ele problemas de ordem social que, pelas condições estruturais não resolvidas, põem para a família uma série de atributos (alfabetização, desemprego, abuso), onde muitas vezes ela não dispõe de condições morais, intelectuais, culturais para enfrentar o que está colocado como responsabilidade social.

Trata-se de observar que em países cuja estrutura viola os direitos fundamentais de um povo (saúde, alimentação, habitação, educação, transporte, lazer) remete-se para dentro das relações familiares elementos que a reproduzem com diferentes contornos. Isso se dá numa relação dialética cujas contradições estruturais perpassam pelas várias dimensões da realidade humana, as quais não podem ser compreendidas isoladamente. Portanto, cabe pensar quais são as conexões que existem entre a violência estrutural e familiar cuja convivência e dinâmica vêm se modificando num processo acelerado marcadamente inscrito no individualismo em contraposição coletiva.

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