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Em Deus, o Pai

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1.3. Deus nas falas e nos desenhos das meninas

1.3.1. Em Deus, o Pai

A compreensão cristã de Deus como divindade suprema está intimamente ligada a sua condição de perfeição, poder absoluto, sagrado e, portanto, capaz de conduzir poder para as pessoas. Tais atributos possibilitam a submissão aos preceitos divinos uma vez que, Deus traz a salvação cuja conquista implica em percorrer um modo de ser. Permeia a relação com o ser supremo a noção de mistério ou seja, algo que não é possível prever, explicar e que pode surpreender.

Conforme Otto (1985, p.30), “... aquilo que nos é estranho e surpreende, o que está fora do domínio das coisas habituais, compreensíveis, bem conhecidas e portanto familiares; é aquilo que se opõe à ordem conhecida das coisas e, por isso mesmo, nos enche de surpresa e nos paralisa”.

O sobrenatural que carrega em si o mistério provoca um aprisionamento visto que, seu poder está para além da realidade dos humanos e portanto, os sentimentos de medo e insegurança passam a rondá-los. Por outro

lado, esse mesmo sobrenatural desperta para a proteção e para o fascínio do mundo transcendental, instalando, nesse contexto, o temor e a atração.

A relação bipolar cotidiana na divindade pode ser vista nos desenhos (a seguir) e nas expressões orais das crianças pesquisadas, pois ocupa um patamar superior, de grandeza, uma base. Assume traços físicos humanos e se diferencia pela potencialidade.

Dizem as crianças ao olharem para seus desenhos: Criança A,

“Deus tem cabeça, olho, tem tudo igual a gente mas ele é mais diferente porque ele é santo. Eu não tenho medo de Deus mas ele castiga. Quando alguém faz uma coisa de mal ele castiga e não leva para o céu. Deu é meu pai”.

Criança B,

“Deus parece um anjo. Ele é muito bonito e muito charmoso. Então Deus é bom e ajuda as pessoas que está acontecendo coisa ruim com elas. Eu não tenho medo de Deus. Deus castiga quem é teimoso, quem é mau. Eu sou teimosa mas eu gosto de Deus. Eu tenho medo do castigo de Deus mas eu não sou mau com Deus. Eu gosto de Deus mas um dia vou aparecer no céu e vou conhecer Deus muito mais direito. Deus é como pai para mim. Eu só não gosto do filho dele que tá lá embaixo ele tinha que ser bom, muito bom com Deus. O filho dele que tá lá embaixo é ruim. Deus parece meu pai, mas ele não é, mas quando eu chegar lá no céu um dia ele vai ser meu pai. Quando eu morrer vou levar isso aqui (desenho) para ele”.

Criança C,

“Deus está sozinho no céu abençoando os pássaros. Ele é transparente, é muito, muito bom. Tem cabelo comprido, tem uma asa muito grande e vestido que antigamente usava. Deus é meu pai, meu pai do céu. Ele castiga, mas, quando a gente passa dos limites ele castiga forte. Não pode desobedecer. O castigo dele é tipo assim: queremos, queremos uma coisa mas ele não deixa acontecer”.

Criança D,

“Esse daqui é Deus que tá alegre porque a criança ao invés de tá roubando ela tá na escola obedecendo o papai e a mamãe. Ele tem cabelo comprido até no ombro, tem barba, bigode, o cabelo dele é preto, ele é branco e tem um coração mole, não tem um coração duro. Não tenho medo de Deus, ele castiga. Se gente grande mata uma pessoa quando morrer vai para o céu, mas, quando vai entrar no céu, Deus manda para o inferno e lá ele é queimado. Quero falar pra todas as crianças do Brasil que não pode desobedecer o papai, a mamãe, principalmente os idosos”.

Criança E,

“Esse aqui é Deus. Ele tá triste. A cruz dói. Ele é do céu. Eu não vi ele. É de vestido e cabelo grande. Eu não tenho medo dele. Ele ajuda a gente quando fazemos coisa errada, mas também acho que ele castiga. Deus ajuda a gente quando alguma coisa está difícil, quando briga ele ajuda. Ele é meu pai”.

Criança F,

“Esse aqui é Deus. Ele ensina as coisas que ajuda nós, só ele que pode fazer as coisas mais ninguém. Deus é poderoso, muda a nossa vida. Ele não é igual o demônio. Ele é salvador e tá acima de nós e pode fazer as coisas por nós: se tá faltando comida em casa ele pode fazer é só você crer. Se nós quiser aceitar ele nós aceita senão ele sai. Eu não tenho medo de Deus e Deus não castiga. Deus é meu salvador”.

Observa-se que o lugar ocupado por Deus nas meninas é de proteção, de acolhimento mas também, de castigo. Isso fica condicionado ao “ser boa menina” ou não, fato este que exige obediência e submissão ao adulto dada a hierarquia que se estabelece: Deus-adulto-criança onde quem detém o saber sobre certo-errado se dá na mesma ordem. Afastar-se de Deus, do adulto implica na aproximação do mal.

Outra consideração importante é a separação feita entre “em cima e embaixo” onde o primeiro traz a promessa de tudo ser bom e o segundo trata-se do que é ruim.

Ainda, nesse sentido, alguns desenhos trazem Deus como uma imagem feminina, indicando que a salvação é feita pela mulher e não pela figura masculina. Isso aponta para o modelo patriarcal do campo simbólico onde a mãe tem como papel a ternura, o amor infinito e, portanto, a proteção, enquanto o pai tem o poder de repreensão. Essa mesma lógica é encontrada nas sociedades cujos modelos são patriarcais.

Nos depoimentos, Deus simboliza o pai cujo valor está na sua grandeza pelo poder que detém, papel este que o põe em um lugar comum, pelas crianças pesquisadas. Ao associarem Deus, como Pai, enquanto expressão simbólica, é possível que a figura paterna esteja revestida, em nossa cultura, de um código que perpetua o poder.

A relação proteção-castigo presente, na fala das meninas, como algo inerente à figura de Deus, no abuso sexual a que são submetidas, o pai também se põe, nessa direção, visto que, para seduzi-las demonstra excesso de cuidados (proteção) para que a violência fique silenciada (castigo). “Eu tenho medo do castigo de Deus mas eu não sou mau com Deus” (criança B).

Cabe também evidenciar que a consideração de Deus como salvador, (criança F), traz a compreensão de que Ele age em relação a ela e, sendo assim, as soluções do reino humano ficam remetidas para o campo transcendental, podendo ocasionar o conformismo de uma situação, no caso, o abuso, que se coloca em compasso de espera prorrogando o silêncio instalado.

Segundo Otto (1985, p.158), “o evangelho repousa na espera da redenção que Deus realizará a seu tempo e que deve ser, desde agora, experimentada. Ele repousa nesta espera na medida em que é a promessa do reino de Deus”.

Diante do exposto, a vinculação Deus-Pai pode se dar também no pai- deus revestido de um poder que dificilmente é contestado, pois amedronta e provoca uma privação: a de falar.

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