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DEVER DE PROTEÇÃO: CONTRA O QUÊ?

Como visto detidamente no segundo capítulo, os fundamentos jurídicos que embasaram a condenação das gravadoras foram essencialmente: o dever do Estado de combater qualquer forma de discriminação ou de violência contra a mulher, inclusive psicológica (art. 227, caput – Constituição Federal e art. 5º, caput e art. 7ª, inciso II – Lei “Maria da Penha”), bem como a necessidade de que os programas de rádio e televisão respeitem os valores sociais da pessoa e da família (art. 221, inciso IV e art. 220, § 3º, inciso II – Constituição Federal).

No que tange ao primeiro fundamento legal, acredita-se serem desnecessárias maiores digressões. Isto porque, conforme já frisado em tópicos anteriores, para que fosse possível invocar o dever do Estado de proteger a mulher contra a violência (inclusive psicológica) ou contra a discriminação, seria necessário que as músicas em comento de fato consistissem em atos discriminatórios ou em atos de violência (fato que, como visto, em momento algum foi comprovado nos autos).

No que toca ao segundo fundamento legal, parece-nos igualmente inviável a aplicação: não apenas porque as gravadoras claramente não são programas de rádio e televisão, mas especialmente porque a expressão valores sociais e da família é notadamente subjetiva. Então retratar cenas íntimas entre um casal desrespeita tais valores? Afinal, qual o critério? É fácil perceber que, em última análise, a interpretação dada a este dispositivo legal será sempre moral, e não jurídica.

De outro lado, se a questão é encontrar embasamento legal para a conduta das gravadoras, outros dispositivos constitucionais (mencionados no decorrer do trabalho) devem ser também trazidos à análise, abaixo discriminados:

- Art. 170, parágrafo único: que assegura a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização estatal (salvo apenas se a lei a exigir)226.

226 Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (...) Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.

- Art. 220, caput e § 2º: que dispõe que a criação e a expressão, sob qualquer veículo, não sofrerão qualquer restrição, sendo vedada toda e qualquer censura de natureza ideológica ou artística227.

- Art. 5º, caput, e incisos IV, VI, VIII e IX: que asseguram que é direito de todos os brasileiros a inviolabilidade à liberdade, sendo livre a manifestação do pensamento e a expressão da atividade artística independentemente de censura, inviolável a liberdade de consciência e de crença ou a privação de direitos por motivo de crença ou convicção política228.

- Art. 216, caput e incisos I e III: que estabelece que as formas de expressão e as criações artísticas, tomadas individualmente ou em conjunto, constituem patrimônio cultural brasileiro229.

- Art. 23, caput e inciso III: que estabelece que é competência comum dos entes federativos o dever de proteger as obras e outros bens de valor artística e cultural230.

- Art. 215, caput: que dispõe que o Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais231.

227 Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição. (...) § 2º É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.

228 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...)

IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato; (...)

VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias; (...)

VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei; (…)

IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;

229 Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:

I - as formas de expressão;

II - os modos de criar, fazer e viver;

III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas;

230 Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:

I - zelar pela guarda da Constituição, das leis e das instituições democráticas e conservar o patrimônio público; II - cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência;

III - proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos;

231 Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.

- Art. 1º, incisos I e III: que dispõe que a república federativo do Brasil constitui-se um estado democrático de direito, que tem como fundamento a soberania popular e a dignidade da pessoa humana232.

Assim, conforme é possível perceber, a escolha entre os primeiros dispositivos legais (que embasaram a condenação) ou estes últimos (que embasam a improcedência da demanda) vai depender essencialmente da interpretação dada para o caso, tal qual ocorre, como visto, com o princípio da dignidade da pessoa humana.

A nosso ver, no entanto, resta claro que os dispositivos constitucionais que defendem a liberdade artística e a liberdade de expressão, independentemente de censura e contra quaisquer formas de restrição, são aqueles que melhor se encaixam ao caso no exercício de subsunção.

Assim, finalmente superada a análise dos fundamentos da decisão (feita de maneira resumida, já que tais conclusões são apenas consequência lógica de tudo o que foi disposto nos tópicos anteriores), resta, por fim, algumas considerações a serem feitas, de ordem psicológica, sociológica e cultural (no próximo capítulo).

232 Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

I - a soberania; II - a cidadania;

III - a dignidade da pessoa humana;

IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político.

5 PONTOS A SEREM CONSIDERADOS

Superadas as questões jurídicas, existem outros questionamentos a serem feitos a partir da análise do caso em concreto, de ordem psicológica, sociológica e mesmo cultural, abaixo discriminados.