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2 APLICAÇÃO DA RESPONSABILIDADE CIVIL PELO FATO DO PRODUTO EM CONTEXTO DE INCERTEZA

2.1 DEVER DE SEGURANÇA

De início, rememora-se que antes da vigência do CDC, o consumo se dava por conta e risco do consumidor. Cavalieri Filho (2015, p. 584), inclusive, recorda que se falava em “ aventura do consumo , porque consumir, em muitos casos, era realmente uma aventura”. De fato, a ausência de proteção específica para os consumidores acarretava em uma socialização de eventuais danos, de modo que restava ao consumidor assumir os riscos dos produtos, já

que ao fornecedor era dado apenas fazer uma “oferta inocente” (CAVALIERI FILHO, 2015, p. 584-585).

No mesmo sentido que Beck (2002) já vinha propondo em seus trabalhos, Cavalieri Filho (2015, p. 219-220) ressalta que os novos inventos e tecnologias geraram cada vez mais riscos, culminando-se em uma sociedade não assegurada. Em razão disso, a gestão dos riscos se fez necessária, de modo que, para Cavalieri Filho (2015, p. 219), onde há risco deve haver um contraponto de segurança.

De fato, o dever de segurança é fundamento substancial do Código Brasileiro de Defesa do Consumidor. Todo consumidor tem direito de proteção a sua integridade física e psicológica. Nessa linha, Chaves (2015, p. 672) ressalta que o CDC alberga a incolumidade física no artigo 6º, inciso I, enquanto direito básico do consumidor:

Art. 6º São direitos básicos do consumidor:

I - a proteção da vida, saúde e segurança contra os riscos provocados por práticas no fornecimento de produtos e serviços considerados perigosos ou nocivos;

Do mesmo modo, o artigo 8º consigna que os produtos colocados no mercado de consumo não deverão acarretar riscos à saúde ou segurança dos consumidores, mas excetua aqueles riscos considerados normais e previsíveis em decorrência de sua natureza ou fruição, caso em que os fornecedores deverão oportunizar informações adequadas a seu respeito.

Esse direito básico é fundamento único do dever de segurança dos fornecedores, que deverão obedecê-lo ao colocar seus produtos e serviços no mercado. Em razão disso, o CDC quebra a dicotomia entre responsabilidade civil contratual e extracontratual, na medida em que o foco da proteção agora é a segurança dos consumidores, que deve ser assegurada por todos da cadeia produtiva, sejam eles contratantes diretos (onde haverá a responsabilidade contratual) ou não, como os fabricantes (MARQUES, 2016, p. 77).

Dessa maneira, para Cavalieri Filho (2015, p. 585), a responsabilização altera sua essência da “conduta do autor do dano para o fato causador do dano”. O ato ilícito, que antes era verificável somente através da conduta do agente, agora subsume-se ao fato que causa o acidente. No entanto, tal evolução só foi possível na medida em que se concebeu um dever de segurança, a partir da cláusula de incolumidade na atividade de risco – que pretende

alcançar a “garantia de idoneidade pelo produto lançado no mercado” (CAVALIERI FILHO, 2015, p. 585).

A mudança do foco da responsabilização da conduta do agente para o fato causador do dano culmina no reconhecimento de um vínculo jurídico direto entre fabricante e produto , de modo que a garantia inerente ao produto ou serviço deixa de ser limitada à relação

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contratual havida entre as partes e passa a alcançar diretamente a responsabilidade do fornecedor na segurança do consumidor (CAVALIERI FILHO, 2015, p. 585).

Por outro lado, tendo em mente que os danos havidos pelos riscos dos produtos ou serviços decorre, muitas vezes, de seu desconhecimento pelos consumidores, o dever de informar é o contrapeso que equilibra a balança do ato de consumir. Para Calixto (2004, p. 15), a única forma de amenizar a vulnerabilidade do consumidor é informando precisamente sobre os riscos existentes nos produtos e serviços ofertados no mercado.

Nesse sentido, o artigo 6º, III, do CDC é expresso ao dizer que todo consumidor tem direito básico “a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, (...), bem como sobre os riscos que apresentem”. Cristiano Chaves (2015, p. 659), sobre o princípio da informação, ressalta que este se biparte em direito de ser informado e dever de informar, como duas faces da mesma moeda.

Em contexto de incerteza, de fato, a informação aos consumidores sobre os riscos existentes no produto ou serviço consumidos amenizam a probabilidade de dano. No entanto, conforme ensina Lopez (2013, p. 5), risco zero não existe.

Cavalieri Filho (2015, p. 219) entende que o risco, por si só, não é capaz de gerar um dever de indenizar. Para ele, risco é “mera probabilidade de dano, e ninguém comete ato ilícito por exercer atividade perigosa, mormente quando legalmente permitida e socialmente necessária”. Dessa maneira, o dever de indenizar não surge apenas com o risco, mas sim com a violação de um dever jurídico (nesse caso, dever de segurança), que culmina em um dano a outrem. Portanto, seu fundamento não seria o risco, mas sim o dano que decorre desse risco. Dessa maneira, conclui-se que não é vedado o exercício de uma atividade perigosa, mas as vítimas têm um direito subjetivo de proteção à incolumidade física e patrimonial diante desses riscos (CAVALIERI FILHO, 2015, p. 219).

5 Cavalieri Filho (2015, p. 585) denota que no sistema francês, o fornecedor é “guardião da estrutura do produto”, de modo que se o dano havido decorrer de um defeito ou vício do produto, cabe ao fornecedor indenizar, ainda que o produto tenha se transmitido a terceiro.

Nesse caso, o fornecedor deve sempre alertar aos consumidores dos riscos presentes em seus produtos (CALIXTO, 2004, p. 127), conforme consubstanciado no artigo 9º do CDC:

Art. 9° O fornecedor de produtos e serviços potencialmente nocivos ou perigosos à saúde ou segurança deverá informar, de maneira ostensiva e adequada, a respeito da sua nocividade ou periculosidade, sem prejuízo da adoção de outras medidas cabíveis em cada caso. [...]

De acordo com Gomes (2001, p. 173), quanto maior for a periculosidade ou nocividade de um produto, maior será a obrigação do fornecedor informar, de maneira ostensiva e adequada, sobre a utilização do bem, sua conservação, seu acondicionamento, bem como sobre sua destruição e eliminação. Além disso, as informações prestadas devem ter correspondência com o produto especificamente, bem como com o consumidor alvo a que se destina.

De todo modo, o legislador só proíbe que os fornecedores coloquem no mercado produtos que apresentem riscos além daqueles que se consideram normais e previsíveis. A partir do momento em que o custo da utilização do bem extrapolar o benefício por ele produzido, sua continuidade no mercado será ilegítima. É que aqueles produtos com alto grau de nocividade e periculosidade não são admitidos no mercado, consoante artigo 10 do CDC (GOMES, 2001, p. 173):

Art. 10. O fornecedor não poderá colocar no mercado de consumo produto ou serviço que sabe ou deveria saber apresentar alto grau de nocividade ou periculosidade à saúde ou segurança. [...]

Na mesma linha, Cavalieri Filho (2015, p. 597) afirma que a lei não proibia produção ou comercialização de produtos perigosos ou de certo risco. Até porque, se assim fosse, seria absolutamente impossível a produção de inúmeros medicamentos que têm inevitáveis efeitos colaterais (desde que devidamente informados). Igualmente, não seria possível a prestação de grande parte de serviços médicos (por exemplo, quimioterapia), mesmo que realizados com toda a técnica e segurança.

Como se vê, o que diferencia se a colocação no mercado de consumo de um produto nocivo ou perigoso é lícita ou não, é justamente se sua periculosidade poderia ser previsível 6 ou se é parte da natureza de seu uso, caso em que estarão de acordo com as legítimas expectativas dos consumidores, não tendo aptidão de causar acidentes, conforme se verá adiante. Do mesmo modo, a informação anda lado a lado com a (i)licitude do lançamento de um produto potencialmente nocivo ou perigoso, uma vez que cabe aos fornecedores informar a respeito de seus riscos, de maneira ostensiva e adequada.