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Ao andar de carroça com os carroceiros, uma das experiências mais recorrentes é o impacto da presença do cavalo sobre as crianças. Seja nas ruas, nos bota-foras ou nas cavalgadas, aqueles enormes viventes parecem efetuar a “potência de matilha” (DELEUZE & GUATTARI, 1997: 17) que, por contágio, sugere um mundo inteiro de cavalos que deve existir no lugar de onde veio aquele que foi visto.

Nas três fotos da série 12, tiradas numa “cavalgada de época de eleição” realizada em uma fazenda da região de Venda Nova, em Belo Horizonte, segue-se uma história bastante recorrente: uma criança vê o cavalo, admira-se e é contagiada por uma curiosidade que se expressa ora em pedidos para chegar mais perto para tocar, sentir o pelo e o cheiro do animal, ora num êxtase de gritos quase-contidos e olhares impressionados que não deixam claro se do impacto reverbera uma empatia ou certa repulsa. Arrastadas pelo devir-cavalo, as crianças pedem para subir na carroça ou na charrete: querem saber e experimentar aquilo que os outros corpos humanos estão fazendo na aliança com aqueles corpos cavalos.

O pai da criança pediu ao Richard (aprendiz/ajudante de carroceiro no São Tomás) levasse a filha para uma volta circular na própria fazendinha, afinal, uma outra criança já estava ali, na charrete. Várias voltas se passaram e as crianças queriam continuar indefinidamente na composição do ritmo da charrete.

Nas manchas de bota-fora da Cidade: “Ocê sumiu, sô!” - Do São Tomás ao Campo Alegre.

Diferentemente dos pedaços onde os carroceiros e cavalos se reúnem com outras pessoas e outros viventes, os bota-foras espalhados pela cidade podem ser compreendidos através da noção de manchas36, isto é, áreas do espaço urbano dotadas de equipamentos que marcam seus limites e viabilizam uma atividade dominante particular. Nesse sentido, as manchas de bota-fora espalhas pela cidade são equipamentos urbanos da prefeitura administrados pela Superintendência de Limpeza Urbana para recolher os resíduos urbanos que não se enquadram na coleta de lixo convencional, tais como entulho, terra e podas de árvores, bem como pneus, colchões e móveis velhos (PORTAL PBH, s/d). Como tal, o acesso e permanência são vedados a pessoas “estranhas”, isto é, não-carroceiros e não-funcionários, com exceção para os carros particulares que estejam transportando os materiais e coisas recebidos pela instituição. Nestes equipamentos públicos os rejeitos são separados em caçambas por meio de uma rápida triagem, um trabalho realizado conjuntamente por carroceiros e funcionários do bota-fora, e recolhidos por caminhões de empresas terceirizadas com destino ao aterro sanitário de Ravena e também para as Estações de Reciclagem da Prefeitura, em Belo Horizonte. Entre as manchas de bota-fora, trajetos são estabelecidos com base na oferta de trabalho e nas afinidades entre carroceiros e funcionários. Em geral, esses trajetos não excedem 2,5km de distância entre o Curral do São Tomás e os Bota-Foras. Tal como em qualquer instituição pública, regras diferenciadas vão sendo incorporadas na regra geral que regulamenta o funcionamento das URPV, tornando-as mais ou menos agradáveis para cada um dos diferentes estilos de viver a vida carroceira.

Como passei a acompanhar os carroceiros em suas viagens de trabalho, percebi diferenças bastante fortes entre os Bota-Fora. Dentre os três que visitei com maior frequência, o do Campo Alegre é sem dúvidas o mais acolhedor para os carroceiros com quem mais me aproximei no São Tomás, onde a socialidade é fluida e o café quente é compartilhado indistintamente entre os três segmentos mais marcadamente presentes: primeiramente, os funcionários da SLU que administram a unidade e auxiliam os carroceiros na triagem dos diferentes tipos de materiais nas caçambas a

36 Estou sugerindo aqui a existência de “manchas de bota fora” para me referir às Unidades de Recebimento de

Pequenos Volumes (URPV) da prefeitura de Belo Horizonte. São dezenas desses equipamentos urbanos espalhados pela cidade com o fim de receberem os materiais transportados sobretudo pelos carroceiros. Na regiões Norte e Pampulha são 10 Bota-Foras, sendo que os mais utilizados pelos carroceiros do São Tomás são Campo Alegre (Bacuraus), Saramenha e Santa Amelia. O conceito de mancha se diferencia do conceito de pedaço principalmente pela predominância de uma atividade específica que restringe o acesso de outros grupos ao local.

eles reservados, em segundo lugar, os carroceiros de diversas localidades que por motivos diversos decidiram trabalhar naquela região e, por último, os caminhoneiros que transportam as caçambas dos bota-foras até o aterro e às estações de reciclagem. Com raras exceções, não há desentendimentos, tornando a convivência extremamente agradável. Sempre chegando com Azeitona, Babão ou Nélio, eu também fui inserido naquele ambiente de trabalho (como pesquisador) e, além da autorização para entrar e permanecer no bota-fora, entre uma viagem e outra nas pausas para o café, passei a conhecer carroceiros de outros bairros e favelas, bem como estagiárias do Projeto Carroceiro (de extensão) da Faculdade de Veterinária da UFMG, os funcionários da URPV e alguns dos caminhoneiros que transportam as caçambas.

Da Faculdade de Veterinária da UFMG aos Bota-Fora: promoção do bem estar animal

É importante destacar que a parceria entre a SLU e a Faculdade de Veterinária da UFMG transformou aquele ambiente repleto de cavalos e carroceiros em um espaço de promoção do bem estar animal e de transferência dos saberes técnicos e científicos aos trabalhadores que lidam diretamente com os cavalos. Nesse sentido, o Projeto de Pesquisa e Extensão da UFMG se insere de maneira fundamental na vida carroceira não apenas por prestar atendimentos ambulatoriais médico veterinários no campus, mas também por conduzir o registro e a vacinação dos cavalos gratuitamente nas URPV. A marcação dos cavalos e seu registro na base de dados é feita pelos próprios estagiários e o carroceiro recebe um cartão de vacinas, além do número de registro no Projeto. Embora o Projeto Carroceiro tenha sido fundamental para a promoção da saúde equina e a disseminação de informações técnicas e boas práticas de manejo entre os carroceiros, ele foi completamente ignorado no que se refere à mudança de legislação iniciada em 2011, contraditoriamente aprovada para, em tese, proteger os direitos dos animais enquanto sujeitos. Analiso essas mudanças no capítulo 3 desta dissertação.

De um lado, homens com idades entre 18 e 60 anos, vestidos calças jeans ou bermudas de

tectel e calçados com chinelos, sapatos ou tênis, de boné. Do outro, mulheres que pareciam ter entre 18 e 25 anos, com roupas, sapatos e jalecos brancos, cabelos presos. Ao fundo, o único homem da equipe, motorista do veículo do Ministério da Educação (MEC), aguardava dentro da Kombi responsável pelo transporte das estudantes entre o bota-fora e a Universidade.

Imagem 53 – Anúncio com as datas de registro e vacinação nos Bota-Fora, por meio do convênio entre a SLU e a Faculdade de Veterinária da UFMG

Série 13 – Estagiárias do Projeto Carroceiro vão aos Bota-Fora realizar a marcação dos cavalos, o registro, a

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