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em massa com imediata demolição das habitações. Note também que, na vila São Tomás, muito próximo ao córrego, o Curral torna-se praticamente a única resistência edificada após a massiva demolição das áreas consideradas desordenadas urbanisticamente.

Imagem 18 – A mesma localidade, em 2017, com destaque para o Curral, visto de Satélite. Nada dos equipamentos urbanos prometidos foi construído, sendo que menos da metade das unidades habitacionais estão prontas. Pode-se notar que as vias asfaltadas não se conectam a outras vias. Terminam sem nada conectar. O Curral, entretanto, resiste. É possível perceber que onde havia casas hoje se estendem grandes espaços “vazios” que, entretanto, são todos trazidos à vida carroceira na medida em que cavalos, carroceiros e seus amigos se apropriam do território construído por eles mesmos. A única forma de atravessar o rio segue sendo por meio da pequena ponte de ferro.

A Cidade Escrita versus A Cidade Habitada

À noite, o cheiro de fogueira perfumando o ar indicava que jovens estavam reunidos em volta do fogo. Chego mais próximo, encontro três carroceiros de cócoras, e, juntos, conversando agachados, compartilhamos o rapé. O chão é de terra e sobre nós se estende um céu estrelado. O assunto era “mudança”; a favela às vezes fica pequena demais para aqueles que a habitam, fazendo- os procurarem um destino que, no entanto, não os afaste em demasia dos companheiros, amigos e familiares que pretendem preservar. Azeitona, Paulinho e Petê vislumbravam possibilidades e ponderavam condicionantes. O movimento iria aumentar em intensidade depois que o bom negócio estivesse fechado: faltava pouco para que comprassem alguns dos lotes que estavam à venda na

ocupação do Zilah Spósito, uma ocupação de terra urbana localizada no extremo-norte de Belo

Horizonte, na divisa com o município de Santa Luzia, da Região Metropolitana, a 10km de distância da vila São Tomás. Seguiriam, sobretudo, uma dinâmica interna ao processo de fazer- cidade (AGIER, 2015; HOLSTON, 1993), cuja descrição estabelece um vínculo entre a antropologia das margens e a antropologia da cidade em meio a um conflito ambiental em torno da habitação humana e equina de baixa renda na capital de Minas Gerais.

Convencionalmente, a forma de se contar a história de Belo Horizonte é embasada na ideia de ruptura com o passado e instauração da modernidade pela via do republicanismo de vertente positivista (DUARTE, 2007). Em comemoração aos cem anos da nova capital, uma coletânea de poemas, crônicas e contos foi publicada contemplando escritos produzidos desde o fim do século XIX e ao longo de todo o século XX. A seleção organizada por Miranda (1996) registra textos de Affonso Arinos, Carlos Drummond de Andrade, Fernando Sabino, Machado de Assis, Mario de Andrade, Milton Nascimento, Olavo Bilac, Oswald de Andrade, dentre outros, e foi intitulada “Belo Horizonte: A Cidade Escrita”. Já na apresentação do livro, o organizador afirma que

construir uma cidade é abrir espaço para o novo, dar-lhe forma e sentido, torná-lo habitável. Belo Horizonte traz gravado, no próprio nome e no seu traçado panorâmico, o selo dessa promessa, ordenada com régua e compasso pelos que a planejaram (MIRANDA, 1996: 15)

Inaugurada em “substituição à colonial Ouro Preto e gestada no seio de ideais

republicanos positivistas, Belo Horizonte foi delineada como uma cidade modelo” (DUARTE,

mercadorias. Mas, no bojo de seu próprio planejamento,

A planta da cidade tinha um efeito segregacionista, dividindo a cidade em uma zona urbana e núcleo central da cidade (cujo eixo era a Avenida Afonso Pena), uma zona suburbana e uma área rural. Nesse sentido, delimitava-se muito claramente uma hierarquia de espaços por onde se dividiam pessoas e habitações. As populações pobres viviam para além dos limites da Avenida do Contorno, numa área considerada perigosa e insalubre, com sua paisagem de matos ralos entrecortados por humildes cafuas, contrapondo-se quase como uma não-cidade em relação aos espaços centrais e planejados, num exílio espacial coerente com a exclusão do exercício da cidadania efetiva (LE VEN, 1977; JULIÃO, 1996 apud DUARTE, 2007)

O contexto histórico da transferência da capital de Minas Gerais foi influenciado pela proximidade com o centenário da revolução francesa. Na segunda metade do século XIX, as reformas urbanas conduzidas pelo Barão Georges-Eugène Haussmann, em Paris, tiveram como grande objetivo a reconquista do centro da cidade pela burguesia, justificada pela ideia de circulação e pela preocupação com a segurança pública, sendo o mais alto parâmetro de instituição dos princípios da higiene e da estética no ambiente urbano (COSTA & ARGUELHES, 2008). Além disso, o estímulo pró-republicano determinou a transferência da capital também com o objetivo de superar Ouro Preto, que então simbolizava “a monarquia, a desordem e a dominação religiosa” (COSTA & ARGUELHES, 2008: 116).

Do arraial à metrópole, entretanto, desdobrou-se ao longo do tempo uma persistente matriz elitista e segregacionista. O Planejamento dividiu a cidade em áreas urbana, suburbana e rural sem prever nenhuma localização para os trabalhadores, empurrando a população pobre para as áreas periféricas, progressivamente ocupadas de modo desordenado, por meio das invasões de terra (GUIMARÃES, 1992). Nesse contexto, dois anos antes da inauguração da cidade havia duas áreas de ocupação informal: a do Córrego do Leitão e Alto da Estação, atuais bairros Barro Preto e Santa Tereza, hoje absorvidos pela cidade formal. A estratégia do poder público para lidar com a questão das invasões e habitações ilegais de baixa renda foi desde aquela época a remoção dos ocupantes (GUIMARÃES, 1992; MOTTA, 2010; 2012). Um século de favelas se passou e a estratégia de fundo permanece a mesma, isto é, remover os moradores das casas que construíram ao longo de suas vidas e impor uma estreira concepção sobre o que significa habitar.

Dos Parques Proletários às chamadas políticas de urbanização de favelas como o Programa Favela-Bairro do Rio de Janeiro ou o Programa Vila Viva de Belo Horizonte, a regra é a negação dos modos de vida singulares e dos interesses dos habitantes em favor da padronização e

do controle conduzido por alianças entre Estado e Mercado, com o amplo apoio das classes médias urbanas, apesar de serem amplamente conhecidas as críticas à transferência de populações de baixa renda para novas moradias construídas industrialmente (DAVIS, 2006). Embora existam estudos e denúncias sobre a implícita violência constitutiva exercida pelo Estado em processos de urbanização de favelas, a regra geral continua sendo retirar dos moradores a liberdade de construir e ampliar suas próprias casas por meio da imposição de um “modelo único e universal de moradia

popular” (VALLADARES, 2005) ao qual se sucedem, historicamente, efeitos imprevistos e

contraditórios àqueles esperados pela administração pública.

Na prática, das políticas habitacionais de desfavelização da Era Vargas até o contemporâneo Minha Casa Minha Vida (MCMV), duas características permanecem, a despeito da recorrência dos aspectos negativos das políticas dos grandes conjuntos habitacionais: primeiramente, subsídios públicos destinados à oferta e produção direta por construtoras privadas. Em segundo lugar, o baixo e por vezes inexistente financiamento de cooperativas e movimentos sociais atuantes nas áreas de Habitação e Reforma Urbana (MOTTA, 2010).

A História oficial diz que foi Aarão Reis, o Engenheiro Chefe da Comissão Construtora da Nova Capital, quem construiu a cidade, através de seu projeto modernista de planejamento urbano inspirado na reforma de Paris, cujo símbolo é o centro em forma de tabuleiro de xadrez. Contudo, a construção informal também delineou os contornos do município, fazendo-o expandir-se de acordo com o avanço das habitações e do movimento dos habitantes, crescendo sempre das margens ao centro.

A relação entre os carroceiros e o território urbano de Belo Horizonte pode ser vista também nos arquivos históricos. Em 1894, curioso e entusiasmado pela construção da primeira capital planejada da república brasileira, o jornalista Olavo Bilac avistou vários carroceiros enquanto percorria as regiões do então Curral d’El Rei, a fim de registrar o acontecimento da fundação da cidade, quando visitou inclusive as regiões da Serra do Curral e de Venda Nova (BILAC, 1894). Seguindo mais para o norte, percorre a cavalo a cidade de Santa Luzia5, sobre a qual descreve, em sua publicação, um cenário de lama e agitação comercial em meio a vacas, carros de boi e carroças ao redor da estação ferroviária do Rio das Velhas. No ano inaugural da cidade, Olavo Bilac referendou o momento:

(…) como deixar em silêncio este acontecimento? O fato de, em dois anos, surgir da terra, acabada e bela, uma cidade, não é fato que todo dia se dê: e é preciso que isto tenha o comentário da Crônica. Se o caso se houvesse passado na América do Norte, nessas fabulosas terras onde crianças já nascem diplomadas e onde as cidades se fazem em quatro horas incompletas, nada se poderia escrever sobre ele. Mas, não! O milagre (porque foi um verdadeiro milagre) fez-se na parte mais pacata, mais prudente, mais desconfiada, mais econômica deste mundo e dos outros: o Estado de Minas Gerais não é useiro e vezeiro nessas cavalarias altas. Daí, o espanto de todos; daí o estranho do caso.

Que vai ser a nova capital? Que ficará sendo a velha Vila Rica? (BILAC, 1897: 74)

Não obstante, é possível contar a História de Belo Horizonte desde as carroças e desde o ofício de carroceiro, apesar de terem sido sistematicamente invisibilizados pela história oficial e pelo tímido acervo iconográfico então existente6. Como forma de reconhecimento de sua presença histórica no município foram homenageados no ano de 2000 pela instituição do dia municipal do carroceiro7 : eles foram fundamentais no transporte e distribuição de materiais utilizados na construção da cidade, que chegavam pela linha de trem (LOPES, 2013). Também foram importantes ao longo de toda a estruturação e expansão urbana, prestando serviços de coleta de lixo e de transporte de água, alimentos e materiais de construção civil (ANDRADE, 2007). Para Salomão de Vasconcellos, nos primeiros anos da capital “o ambiente não passava de uma tapera

revolvida. Demolições, aterros e desaterros, montões de material de construção aqui e ali, poeira por toda a parte” (VASCONCELLOS, 1951: 93) onde carroções puxados a burro foram

imprescinvíveis para o transporte. Esse cenário é bastante parecido com o ambiente urbano pós demolições na vila São Tomás, fortemente habitada por carroceiros, objeto desta dissertação.

Atualmente, boa parte dos carroceiros de Belo Horizonte habita bairros pobres ou favelas, ocasionalmente sofrendo remoções forçadas que ignoram o modo de vida singular com o qual habitam o mundo. Isto é, “a cidade como um todo sempre viveu a articulação entre o rural e

o urbano, o tradicional e o moderno” (LOPES, 2013: 19), porém atravessou o século XX com

processos agressivos de intervenção pública como instrumento de instauração da modernidade

6 É curioso que no Arquivo Público Mineiro existam pouquíssimas fotos dos carroceiros, apesar de sua ampla presença

no Estado e no Município. Buscando por “carroça” ou “carroceiro” encontramos alguns resultados sobre calçamento de ruas imporantes do centro ou mesmo eventos comemorativos da Nova capital. Entretanto, os carroceiros jamais aparecem nas fotos como protagonistas, mas sim capturados de maneira não intencional pelo fato de estarem presentes e serem verdadeiros agentes da construção da cidade, inclusive transportando os materiais de construção antes, durante e após a construção de BH.

7 Lei municipal Nº 8093/00 de 26 de setembro de 2000, que institui o dia municipal do carroceiro, a ser comemorado

(CASTRO, 2002). Foi exatamente isso o que ocorreu na favela do São Tomás em decorrência do Programa Vila Viva/Programa de Aceleração do Crescimento para as Favelas (PAC Favelas), que removeu, entre 2011 e 2014, cerca de 1360 famílias das casas construídas ao longo de sessenta anos nas vilas São Tomás e Aeroporto (OLIVEIRA, 2014).

Essa história não é inédita, pois o acesso à terra e à moradia no Brasil é fruto da herança colonial e escravagista que concentrou as propriedades (HOLSTON, 1993). Com efeito, a

ocupação e outras modalidades de moradia ilegal foram e continuam sendo o procedimento

característico do desenvolvimento das periferias em particular e das cidades em geral. Isto é, existe uma relação fundamental entre a ocupação ilegal e sua posterior legalização, pois o primeiro movimento dá início ao povoamento que, por sua vez, desencadeia o processo de legalização da terra, tornando-se, desse modo, uma maneira “comum e segura através da qual a classe

trabalhadora pode ganhar o acesso legal à terra e à moradia, acesso esse que, de outro modo, não seria possível” (HOLSTON, 1993: 71). Enquanto isso, na cidade escrita, um modo radicalmente

distinto de concessão da terra urbana era conduzido, privilegiando, maiormente, os proprietários indenizados da antiga capital, Ouro Preto, como exemplifica o caso do Zé dos Lotes:

O próprio futuro Zé dos Lotes, que toda gente conhece e que em Ouro Preto arrastava uma vida precária de tabaréu, com um botequim engoiado ao lado da matriz do Pilar, onde só vendia rapaduras, hortaliças e cachaça, não se abalançou a vir para a Nova Capital, apesar de possuir aqui um lote à escolha, que a lei da mudança conferiu a todo proprietário de Ouro Preto. Não acreditava que a cidade fosse adiante. Só mais tarde, por obra e graça do seu compadre Monte-Verde - a varinha de condão de toda sua fortuna - encorajou-se e veio arriscar alguns vinténs nesse negócio. Veio a Belo Horizonte, e a sorte, que tem olhos vendados, fê-lo escolher uma quadra perto do compadre, na futurosa avenida Amazonas. Ia experimentar, disse, e foi o bastante. Comprou mais dois lotes em outros pontos, voltou calmamente para Ouro Preto e esperou que os terrenos valorizassem. Vieram depois as demandas com a Prefeitura por invasão de seus terrenos; ganhou quarteirões inteiros de indenização, começou a vender lotes e a aplicar o dinheiro na compra de outros e empréstimos de onzenário. Por essas e outras, acumulou a formidável fortuna que hoje possui, e granjeou, como carapuça bem talhada, o apelido de Zé dos Lotes, pelo qual se tornou popular (VASCONCELLOS, 1951: 93-94)

Todo esse contexto ocorrer na Nova Capital é emblemático e provoca a derrubada do

mito ainda amplamente difundido de que o padrão excludente da urbanização do Brasil seria resultado da “falta de planejamento urbano”, Belo Horizonte é um dos exemplos mais contundentes da natureza perversa das relações historicamente estabelecidas no país entre direito, planejamento territorial e mercados imobiliários. (FERNANDES & PEREIRA, 2010: 178)

Mesmo as políticas desenvolvimentistas mais recentes trazem, sub-repticiamente, efeitos que provocam o empobrecimento de determinados grupos sociais ao executar projetos de

modernização que valorizam economicamente certas regiões a partir de critérios excludentes e homogeneizantes para solucionar problemas sociais tais como as áreas de risco de enchentes e a informalidade das ocupações consolidadas. Por exemplo, “as obras do PAC têm gerado aumentos

expressivos nos preços de terrenos e o interesse renovado de agentes imobiliários e outros grupos socioeconômicos em áreas tradicionalmente ocupadas pelas comunidades pobres.”

Guerra: “O mundo é diferente da ponte pra cá”

Faz da quebrada o equilíbrio ecológico E distingue o Judas só no psicológico Hó, filosofia de fumaça, analise: Cada favelado é um universo em crise Quem não quer brilhar, quem não? Mostra quem! Ninguém quer ser coadjuvante de ninguém (...) Andar com quem é mais leal, verdadeiro Na vida ou na morte o mais nobre guerreiro. “Da ponte pra cá”, Racionais MCs.

Apesar da crise econômica e política que sacudia o país em 2016, certas esferas da sociedade viviam com ares de normalidade. Naquele contexto, em meio à suspensão de algumas das normas institucionais da república, chegara o dia da celebração de abertura dos Jogos Olímpicos no Rio de Janeiro, uma festa global. Na favela do São Tomás, aquela sexta-feira 5 de agosto parecia um dia relativamente comum. Durante a tarde, adolescentes e adultos circulavam agitados procurando Pokémons por meio de seus smartphones conectados à internet no aplicativo

Pokémon Go.

À noite, recolhido em casa para escrever no diário de campo, ouvi uma sucessão de disparos rápidos. “Serão tiros?” cogitei brevemente. Mas foram tantos, e com intervalos tão diferenciados que convenci a mim mesmo de que se tratava de um novo tipo de foguetes. Continuei escrevendo.

Em seguida, um silêncio agradável reinou no ambiente por cerca de 5 minutos, enquanto, ao longe, continuavam os estouros dos fogos de artifício em comemoração ao início das Olimpíadas no Brasil. Com o passar do tempo, porém, ouvi burburinhos e choros soluçantes, e percebi que algo de grave havia acontecido. Fechei o caderno, guardei alguns cartões de visita dos carroceiros em uma pasta plástica e saí na rua para observar. Mal abri o portão e fui interpelado pelo Carlim- carroceiro: “Ô filmador, meu amigo! Pega a câmera lá, ó! Essa é a hora de’ocê tirar foto aqui na

favela! Mataram mais um na favela! Hoje tem mais um caído ali no chão! Vai lá procê ver!”.

Respondi que estava fazendo uma pesquisa sobre a vida dos carroceiros, e não da vida toda na favela, no que ele me contestou, “mas cê já viu muito carroceiro morando fora de favela?!”

isolamento colocadas pelo Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP) da Polícia Civil. Vi muitos rostos conhecidos: carroceiros, filhos dos carroceiros, vizinhos e comerciantes. Era a guerra entre as gangues da parte alta do São Tomás e as da Ilha, que retomava com força total. Sete guerreiros alvejaram o jovem, que atuava em sua função na parte baixa do São Tomás havia pouco mais de um mês. O dono da boca é que estava marcado para morrer, mas o jovem de 17 anos acabou sendo morto para deixar o aviso. Em meu caderno de campo registrei minha surpresa:

Meu espanto não ressoava em ninguém! Todos agiam como algo corriqueiro, mas, ainda assim, fonte de curiosidade. Era um acontecimento do cotidiano, que não mudaria o dia seguinte. Não foi um evento capaz de alterar a estrutura. Pelo contrário, foi um aspecto constitutivo dela! Alguns diziam na hora que isso acontece porque ninguém quer ouvir palavra de Jesus, que todo mundo na favela tem escolha, mas que ainda assim alguns preferiam o crime. Eu gostaria de discutir mais sobre o tráfico e o consumo daquelas substâncias, mas o debate sobre a legalização das drogas e o fim do genocídio da juventude e do povo negro me pareceu simplesmente um delírio a partir daqui… Que contribuição eu poderia trazer?

Minha angústia era decorrente do incômodo com a “visão estreita do problema da violência

como estando associada ao tráfico nas favelas” (ALVITO, 2006: 255), a despeito das múltiplas

violações de direitos humanos sofridas por aquela população habitante, até mesmo por meio da justificativa de Estado de combater a própria violência e o tráfico de drogas ilícitas, contexto que coloca os moradores diante de dois fogos: de um lado a violência oficial da polícia, e do outro a violência paralela do tráfico. Nesse sentido, as forças do Estado se apresentam como intrinsecamente ambíguas, dado que “a percepção dos favelados – na verdade, da maioria da

classe operária – de que a justiça formal não funciona levou uma parcela dessa população a aceitar um sistema de justiça alternativo” (LEEDS, 2006: 243). De tal modo que atribuir às favelas

a ideia de perigo é o mesmo que “reafirmar os valores e estruturas da sociedade que busca viver

diferentemente do que se considera ser a “vida na favela”” (RINALDI, 2006: 306).

Essa “vida na favela”, enunciada quando se refere à favela no singular imprime, retoricamente, a “homogeneidade como pressuposto e o desinteresse pela diversidade, de tal

maneira que as diferenças internas ao mundo das favelas se tornam automaticamente secundárias”

(VALLADARES, 2005: 152), o que provoca frequentemente, junto ao ocultamento da pluralidade das formas, das relações e das situações sociais, uma identidade social pautada pelas ideias de miséria, criminalidade e delinquência.

no cotidiano, a confluência entre a forte heterogeneidade social com diversidade cultural e o estabelecimento da convivência entre pessoas e coletivos bastante diferentes, abarcando, nessa convivência interespecífica, os cavalos, os porcos, os cabritos, os pastores, os “traficantes” e os próprios carroceiros. O tráfico internacional de drogas é uma estrutura supralocal que obviamente não envolve apenas os pobres, embora a ponta mais visível publicamente se localize nos becos e vielas das favelas.

Toda a situação me fez lembrar das pesquisas etnográficas de Gabriel de Santis Feltran

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