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Capítulo V: Contos tradicionais portugueses

V. 3. Os Dez Anõezinhos da Tia Verde-Água

O terceiro dos contos da série é Os Dez Anõezinhos da Tia Verde-Água, realizado apenas por Ricardo Neto, e tem novamente cerca de 7’. Este é o conto alentejano e narra a história de uma senhora que não conseguia cumprir os seus deveres de dona de casa e recorre, por isso, à ajuda de uma velha tia, que lhe promete a ajuda de dez anõezinhos.

A música tradicional e a panorâmica inicial sobre a paisagem voltam a repetir- se. Neste caso, o que mostra é a planície alentejana, caracterizada através de ervas de tons amarelos e, mais atrás, pequenos montes onde existem, espalhados, alguns pares de sobreiros. A panorâmica revela três casinhas pequenas de paredes brancas, perdidas atrás de um par de montes de feno.

As primeiras imagens que se seguem à introdução conduzem o espectador ao interior de uma das casas, onde as paredes estão esborratadas, os cortinados rasgados e todos os objetos parecem desarrumados. Entre toda esta confusão, está uma mulher que ressona enquanto dorme, sentada numa cadeira. Muito lentamente, e entre bocejos, a mulher tenta depois varrer o chão da casa, mas não aguenta o esforço e volta a sentar-se na cadeira para dormir.

O resultado da preguiça da mulher é que o seu marido, ao chegar a casa do trabalho, já ao anoitecer, chateia-se e abandona-a. A consequência é uma imagem que vem a revelar-se recorrente: a mulher fica sentada no degrau, a chorar, à espera dele, iluminada pelo luar. E é assim que, no dia seguinte, decide procurar a tia para ajudá-la a resolver este problema.

Através da situação descrita, o realizador retrata o dia-a-dia desta família: o homem, que é quem trabalha, zanga-se severamente com a mulher que deveria ficar em casa a cuidar da casa em vez de dormir. Nas referências escritas aos contos que encontrei (tal como recolhido por Teófilo Braga em Oliveira e Ferreira, s/d; Fonseca, 1963), o motivo de preocupação maior da personagem feminina é que o marido lhe batia. Ricardo Neto expressou a violência do homem apenas através de um pontapé que dá num jarro que se encontrava caído no chão. A explicar esta ausência está a adaptação do conto com vista ao público infantil.

Estão também por esta altura introduzidas as três personagens da história. A mulher preguiçosa tem vestida uma roupa colorida e leva um lenço na cabeça. Quando sai à rua, por cima do lenço cor-de-laranja, leva um chapéu, numa alusão ao traje da ceifeira. A sua tia está vestida de forma muito similar, mas usa óculos.

Além da caracterização física, há um elemento psicológico incontornável nesta personagem: a preguiça. A mulher está sempre a dormir, numa brincadeira com a ideia de senso comum de que o alentejano é lento e preguiçoso. Nos exemplares escritos do conto já referenciados, a explicação para o desleixo que a mulher tem na casa é apenas a sua incapacidade de se concentrar numa tarefa, deixando todas elas a meio.

À semelhança dos filmes anteriores, os discursos encontram também marcas regionais, sendo que desta vez é explorado o sotaque alentejano com enfâse na acentuação do “ê”, do recurso ao gerúndio, e expresso através do uso de expressões como “o mê home anda muite afanade comigo” ou “vossemecê é que me podia valer nesta aflição”, palavras proferidas pela mulher preguiçosa, ou “prantas a comida ao lume” e “inté co teu marido chegue”, como profere a tia.

O homem, numa alusão ao pastor alentejano, tem vestido um colete de pele de carneiro, um lenço vermelho ao pescoço e um chapéu castanho com uma faixa preta na cabeça. As suas calças, também castanhas, têm um remendo. Enquanto caminha,

transporta uma vara com um pequeno tacho coberto por um pano e a ela atado na ponta, denunciando que passa o dia no campo, ausente de casa.

Os dois cenários interiores – a casa do casal e a casa da tia – estão adornados de objectos muito semelhantes. Na casa do casal, apesar de desarrumada, é possível ver que a mobília é feita de madeira e adornada com flores pintadas à mão e que há um leito de ferro no quarto. A vassoura com que a mulher varre é feita de palha. Em cima da mesa está um naperon de crochet, um pano e outros objetos caídos. Há também um escaparate torto na parede, onde apenas residem três objetos espalhados, um tapete dobrado no chão e a lenha está espalhada pela casa.

Por oposição, a casa da tia não podia estar mais arrumada. Numa panorâmica, o realizador mostra a sua sala ampla, onde há uma janela com portadas de madeira pintada a verde, uma moldura na parede, uma cadeira azul com tampo de palha e motivos florais pintados. Acima da lareira onde se confecciona a comida, estão expostos três pratos pintados. Lá dentro está uma caldeira em cima da lenha e o resto dos troncos que não estão em uso estão dispostos de forma organizada num compartimento abaixo do fogareiro. Há também um armário com os mesmos motivos florais que adornam as cadeiras de madeira em torno da mesa, semelhantes aos da casa anterior. Ao centro desta, está um naperon de crochet com uma jarra de flores. Há depois um tapete de riscas coloridas que está cuidadosamente colocado em frente à zona da lareira, junto à qual está também um tarro de cortiça. O objectivo de tal caracterização é a representação da típica casa alentejana.

Haverá depois, no decorrer da narrativa, uma alteração no cenário antes desarrumado. Uma das novidades em relação ao décor dos outros espaços antes caracterizados é a mesa onde o casal janta. Numa mesa alentejana não falta pão e vinho. A comida é trazida num tacho de barro e os pratos são do mesmo material. A iluminar a refeição está um candeeiro a petróleo.

Para completar este conceito de paisagem, a acompanhar o trajeto que a mulher preguiçosa faz entre a sua casa e a da sua vizinha, escuta-se canto alentejano.

Regressando à narrativa, a tia Verde-Água prometeu à mulher preguiçosa que lhe ia enviar dez anõezinhos para ajudá-la a agradar o seu marido mas, em contrapartida, a mulher tinha que se levantar cedo e ir realizando várias tarefas, como acender o lume, fazer a cama, encher o cântaro de água, varrer a casa, limpar o pó,

remendar a roupa que precise de arranjo e colocar a comida ao lume. Se a mulher realizasse tudo isto antes do marido chegar, os dez anõezinhos iriam ajudá-la sem ela perceber.

A jovem mulher correu para casa e fez tal como a tia lhe disse. O resultado é que, no final do dia, tinha a casa tão arrumada que lhe valeu o comentário do marido (que até aqui só havia vociferado urros sem nexo quando estava chateado com a mulher), surpreendido com a situação “Oh mulheri, tão limpa que tu te tornastes, como tu eras e como tu te fostes(?), mulheri”.

No dia seguinte, a rapariga correu até casa da tia para agradecer-lhe novamente e para pedir para ficar com os dez anõezinhos de vez. Foi então que a tia lhe explicou que os dez anõezinhos eram os dez dedos das suas mãos e que, consequentemente, a concretização do trabalho caseiro só dependia do seu esforço.