CAPÍTULO 2 – DOM CASMURRO E O ETERNO MARIDO EM DIÁLOGO
2.6 Diálogos da memória
Em Dom Casmurro, toda a ação é transmitida por meio da escritura
memorialista. O narrador e autor secundário Casmurro resolve escrever o livro,
contando sua própria história na esperança de reviver seu passado, de algum modo.
Assim, toda a narrativa se baseia na memória do narrador, como se fosse sua
autobiografia.
O discurso memorialista e em primeira pessoa de Dom Casmurro contribui
para a construção da dúvida, já que a veracidade dos fatos narrados depende do
leitor confiar no discurso do narrador, o que se torna difícil quando ele próprio
declara a falta de credibilidade de seu relato:
Foi então que os bustos pintados nas paredes entraram a falar-me e a
dizer-me que, uma vez que eles não alcançavam reconstituir-me os tempos
idos, pegasse da pena e contasse alguns. Talvez a narração me desse a
ilusão, e as sombras viessem perpassar ligeiras, como ao poeta, não o do
trem, mas o do Fausto: Aí vindes outra vez, inquietas sombras?… (pp. 810
e 811)
Ao confessar “Talvez a narração me desse a ilusão, e as sombras viessem
perpassar ligeiras”, o narrador sugere uma narração fictícia, ilusória, sem
compromisso em relatar fatos verdadeiros, mas sim, em construir um passado com
base nas ilusões, nas sombras que o atormentam.
Pela escritura da memória, o autor secundário busca reviver o que viveu, mas
a memória é narrada não mais pelo Bentinho do passado, que “viveu o vivido”, mas
pelo Casmurro do presente, atormentado pelas “inquietas sombras”, frustrado pela
incapacidade de “atar as duas pontas da vida e restaurar na velhice a adolescência”
(p. 810).
O tema da ausência de voz é recorrente na fala do narrador Casmurro e
evidente nas ações de Bentinho, que já entra em cena se escondendo atrás da
cortina ao ouvir seu nome e permanecendo em silêncio diante da decisão da mãe de
mandá-lo ao seminário. O narrador utiliza a figura do velho tenor italiano, Marcolini,
no Capítulo IX – A Ópera -, para ilustrar a si próprio. O trecho - “Já não tinha voz,
mais teimava em dizer que a tinha” (p. 817)
- pode ser atribuído ao próprio
Casmurro, um narrador sem voz própria que insiste em narrar e reconstruir seu
passado.
No enunciado – “Que é demasiada metafísica para um só tenor, não há
dúvida; mas a perda da voz explica tudo” (Cap. X, p. 819) -, o narrador sinaliza ao
leitor, mais uma vez, a ambigüidade de sua narrativa: afirmando que “a perda da voz
explica tudo”, ele se permite recriar o passado narrado como bem entender,
transformando-se de “tenor desempregado” em filósofo.
Analisando o trecho da fala do narrador, no Capítulo LXVIII, no qual justifica
sua forma de escrever não seus gestos, mas sua própria essência, percebe-se que
a ambigüidade característica da narrativa memorialista soma-se à construção
dialógica da citação, na qual as vozes de dois autores – o autor secundário e
Montaigne, o autor citado – apresentam-se dialogicamente intertextualizadas:
Eu confessarei tudo o que importar à minha história. Montaigne escreveu de
si: ce ne sont pas mes gestes que j’escris; c’est moi, c’est mon essence.
Ora, há só um modo de escrever a própria essência, é contá-la toda, o bem
e o mal. Tal faço eu, à medida que me vai lembrando e convidando à
construção ou reconstrução de mim mesmo. (p. 880).
Ao apoiar-se na citação de Montaigne, o discurso do narrador apropria-se da
voz do outro para subverter sua significação, atribuindo, ao texto citado, suas
próprias premissas. Assim, quando recupera a voz de Montaigne em seu discurso, o
autor secundário e personagem-narrador não apenas a faz ressoar, mas reveste-a e
utiliza-a tanto como ferramenta discursiva de persuasão - “Ora, só há um modo de
escrever a própria essência, é contá-la toda, o bem e o mal” – como recurso de
construção da ambigüidade. Isso permite ao leitor “ruminante” fazer uma leitura
investigativa, partindo das palavras do próprio Casmurro: “Eu confessarei tudo o que
importar à minha história.” – logo, nada além do que interessar para a construção da
narrativa, sejam fatos verdadeiros ou não, será revelado.
Em O Eterno Marido, o tempo predominante da narrativa é o presente, o
momento de crise em vivência. Entretanto, o passado é constantemente evocado
pelas consciências das duas personagens masculinas, Vieltchâninov e Trussótzki, já
que os fatos que motivam a reaproximação dos dois, ocorreram nove anos antes do
presente reencontro.
O reviver de um passado longínqüo ocorre a Vieltchâninov de forma não
arbitrária, diferentemente do que se dá com Casmurro. Enquanto Casmurro se
dedica a reviver sua vida passada, construindo uma réplica do casarão dos tempos
de infância e se dedicando a reescrever sua história (sem comprometer-se com a
veracidade dos fatos), Vieltchâninov é assaltado por imagens que lhe surgem à
memória sem terem sido voluntariamente resgatadas por ele.
Os “acontecimentos remotos” (p. 13)
que se apresentam “de certo modo
peculiar” (p. 13), substituem a memória recente da personagem, desconectando-a
da realidade exterior vivida no tempo presente e reinserindo-a num tempo passado,
supostamente esquecido. A “tão surpreendente exatidão de impressões e
pormenores” (p. 13), que lhe dá a sensação de viver novamente as lembranças que
lhe surgem à mente, contribui para dar maior veracidade às recordações de
Vieltchâninov que, ao contrário de Casmurro, não decide contar suas memórias com
o intuito de revivê-las. Vieltchâninov tem sua vida presente invadida por imagens
exatas e detalhadas de seu passado, tempo no qual Natália Vassílievna era sua
amante e Páviel Trussótzki o marido traído.
Por meio desse reviver do passado, “agora sob um ângulo inteiramente novo,
como que preparado por alguém, inesperado e, sobretudo, inconcebível” (p. 13), dá-
se a relação dialógica entre as vozes de Vieltchâninov e Trussótzki. Nos monólogos
interiores de Vieltchâninov, no final do capítulo 1, o embate entre essas duas vozes
é levado ao extremo, no qual o eu já fragmentado da personagem luta contra a
interferência dos valores estranhos à sua consciência, próprios da voz de Trussótzki.
Enquanto em Dom Casmurro, a escritura memorialista em primeira pessoa
centra a dúvida na credibilidade do narrador e, conseqüentemente, na veracidade
dos fatos do passado narrados por ele, em O Eterno Marido a dúvida se alicerça na
fronteira entre as consciências de Vieltchâninov e Trussótzki, no que o discurso de
um revela e oculta do outro, na tensão dialógica que se mantém entre as
personagens durante todo o romance.
Acrescentando à figura ambígüa de Vieltchâninov “uns longes de dor e
tristeza” (p. 10), que surgiam nos momentos de solidão buscados pela própria
personagem, podemos encontrar traços casmurros no amante de O Eterno Marido.
Bento Santiago, já como o narrador casmurro, decide contar sua “história” quando
se encontra num contexto emocional semelhante ao vivido por Vieltchâninov:
vivendo de forma solitária após uma intensa vida em sociedade, não por culpa de
circunstâncias exteriores, mas por vontade própria.
A casmurrice compartilhada por Bento Santiago e por Vieltchâninov marca o
início de um retorno ao passado, em busca do resgate de questões mal resolvidas.
Contudo, diferentemente de Casmurro, que reconta seu passado da forma que bem
lhe parece, Vieltchâninov, ainda inconscientemente, prepara-se para confrontar-se
com esse passado diretamente, por meio do reencontro com Trussótzki, o marido de
sua antiga amante, Natália Vassílievna.