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CAPÍTULO 1 – O REALISMO EM MACHADO DE ASSIS E EM DOSTOIÉVSKI

1.2 Dostoiévski e o “realismo no sentido superior”

Nem o herói, nem a idéia e nem o próprio princípio polifônico de construção do todo cabe nas formas do gênero, do enredo e da composição do romance biográfico, psicológico-social, familiar e de costumes, ou seja, não cabe nas formas que dominavam na literatura da época de Dostoiévski e foram elaboradas por contemporâneos seus como Turguêniev, Gontocharóv, L. Tolstói. Comparada à obra destes escritores, a obra de Dostoiévski pertence a um tipo de gênero totalmente diverso e estranho a eles. (BAKHTIN, 2005, p. 101)

Dostoiévski (apud BAKHTIN, 2005, p. 60) define as particularidades do seu

realismo da seguinte forma: “Com um realismo pleno, descobrir o homem no

homem… Chamam-me psicólogo: não é verdade, sou apenas um realista no mais

alto sentido, ou seja, retrato todas as profundezas da alma humana.”

O realismo proposto por Dostoiévski visa à plenitude da expressão da

realidade, da revelação da real imagem do homem, que só se atinge com foco nas

camadas mais profundas de sua consciência. Assim como em Machado, esse

realismo parte do homem e privilegia as personalidades, a interação entre elas,

tendo a realidade exterior apenas como reflexo dos caracteres humanos.

Bakhtin (2005, p. 61) destaca três pontos de atenção, na definição que

Dostoiévski faz do seu realismo próprio:

Em primeiro lugar, Dostoiévski se considera realista e não um romântico subjetivista, fechado no mundo de sua própria consciência: sua nova tarefa – “retratar todas as profundezas da alma humana”- ele resolve “com um realismo pleno”, isto é, vê essas profundezas fora de si, nas almas dos

outros.

Em segundo lugar, Dostoiévski acha que para a solução dessa nova tarefa é insuficiente o realismo no sentido comum, ou o realismo monológico, conforme nossa terminologia, mas requer um enfoque especial do “homem no homem”, ou seja, um “realismo no mais alto sentido”.

Em terceiro lugar, Dostoiévski nega categoricamente que seja um psicólogo. (…) Dostoiévski tinha uma atitude negativa em face da psicologia de sua época nas publicações científicas, na literatura de ficção e na prática forense. Via nela uma coisificação da alma do homem, que o humilha, despreza-lhe a liberdade, a inconclusibilidade e aquela especial falta de

definição e conclusão que é o objeto principal de representação no próprio

romancista; sempre retrata o homem no limiar da última decisão, no momento de crise e reviravolta incompleta – e não-predeterminada – de sua alma.

No primeiro ponto de destaque, Bakhtin anuncia o posicionamento do autor,

Dostoiévski, em relação às consciências criadas por ele em suas obras. Buscando

revelar “todas as profundezas da alma humana”, o autor realista não mergulha em si

mesmo, ao contrário, posiciona seu olhar sobre o outro, por meio da criação de

personagens dotadas de consciências próprias, imiscíveis, que interagem com o

autor e com as demais consciências-personagens presentes no texto sem perder

sua individualidade. Esse ponto, bastante esclarecedor para o entendimento da

construção da dúvida em O Eterno Marido (1870), será desenvolvido no Capítulo 2

deste estudo.

No segundo ponto, quando Bakhtin se refere ao realismo no sentido comum,

o “realismo monológico”, percebe-se que, para ele, este tipo de realismo objetifica a

realidade, reproduz uma imagem estática do homem e do seu entorno, negando às

personagens vozes e consciências próprias, construindo-as como formas conclusas

e reificadas. A visão de Dostoiévski para a expressão da realidade vai muito além

desse retratar de cenas, paisagens e personagens definidos, conclusos, sem vida.

Nesse ponto, cabe fazer um aparte para uma aproximação entre Dostoiévski e

Machado: a forma como ambos vêem esse realismo no sentido comum é muito

semelhante. Numa crítica a Eça de Queiroz, publicada originalmente em 1878,

Machado (2005, pp 904 e 913) condena as superficialidades do realismo e defende

a existência de verdades mais profundas, que não podem ser reveladas pelo mero

descrever e detalhar de cenas, de maneira fotográfica:

Ora bem, compreende-se a ruidosa aceitação d’O Crime do Padre Amaro. Era realismo implacável, conseqüente, lógico, levado à puerilidade e à obscuridade. (…) Não se conhecia no nosso idioma aquela reprodução

fotográfica e servil das coisas mínimas e ignóbeis. Pela primeira vez,

aparecia um livro em que o escuso e o – digamos o próprio termo, pois tratamos de repelir a doutrina, não o talento, e menos o homem, - em que o escuso e o torpe eram tratados com um carinho minucioso e relacionados

com uma exação de inventário. A gente de gosto leu com prazer alguns

quadros, excelentemente acabados, em que o Sr. Eça de Queirós esquecia

por minutos as preocupações da escola; e. ainda nos quadros que lhe destoavam, achou mais de um rasgo feliz, mais de uma expressão verdadeira; a maioria, porém, atirou-se ao inventário. Pois que havia de

fazer a maioria, senão admirar a fidelidade de um autor, que não esquece

nada, e não oculta nada? Porque a nova poética é isto, e só chegará à perfeição no dia em que nos disser o número exato dos fios de que se compõe um lenço de cambraia ou um esfregão de cozinha.

(…) Ora, o realismo dos Srs. Zola e Eça de Queirós, apesar de tudo, ainda

não esgotou todos os aspectos da realidade. Há atos íntimos e ínfimos, vícios ocultos, secreções sociais que não podem ser preteridas nessa exposição de todas as coisas. (grifos meus)

Privilegiando a verdade estética, tanto Machado quanto Dostoiévski puderam

recriar a realidade sem as limitações impostas pela escola realista convencional,

sem se aterem ao propósito reducionista de fotografar e descrever, à extenuação, os

fatos exteriores.

Voltando ao terceiro ponto destacado por Bakhtin (2005, p. 61) na definição

que Dostoiévski faz do seu realismo - no qual a psicologia é vista como teoria

cosificante do homem, que lhe priva da inconclusibilidade “que é o objeto principal

de representação no próprio romancista” - encontra-se o conceito bakhtiniano de

inacabamento, inspirado na escritura de Dostoiévski e, aqui, apresentado como

contrário aos preceitos da psicologia da época. Por serem inacabados os diálogos,

as idéias, as situações e, principalmente, as consciências em ação nos romances de

Dostoiévski, suas personagens representam a imagem do homem vivo, em

movimento, agindo, interagindo e reagindo num mundo em devir. Conhecendo a

psicologia de sua época e vendo nela, segundo Bakhtin (2005, p. 61), “uma

coisificação da alma do homem, que o humilha, despreza-lhe a liberdade, a

inconclusibilidade e aquela especial falta de definição e conclusão (…)”, Dostoiévski

constrói a “realidade” romanesca com a mesma indefinição, com o mesmo

dinamismo e inconclusibilidade próprios da realidade do mundo extra-romanesco.

Nada é definido, nenhuma personalidade é conclusa, nenhuma consciência,

no romance dostoievskiano, é objetificada. No realismo de Dostoiévski, assim como

na vida, tudo se encontra inacabado, em movimento, num processo de definição que

só se conclui com a morte. Segundo Bakhtin (2005, p. 62), “(…) a ênfase principal

de toda a obra de Dostoiévski, quer no aspecto da forma, quer no aspecto do

conteúdo, é uma luta contra a coisificação do homem, das relações humanas e de

todos os valores humanos no capitalismo.”

Em algumas ocasiões, como no lançamento do romance O idiota (1868), essa

concepção de realismo gerou críticas negativas, que levaram Dostoiévski (apud

FRANK, J. 2003, p. 408) a expor e defender seu credo estético da seguinte forma:

tenho uma concepção da realidade e do realismo totalmente diferente da de nossos romancistas e críticos. Meu idealismo – é mais real que o realismo deles. Deus! Exatamente narrar com sensibilidade o que nós russos temos vivido nos últimos dez anos de nosso desenvolvimento espiritual – sim, os realistas não bradariam que isso é fantasia! E, ainda assim, isso é realismo genuíno, existente. Isso é realismo, só que mais profundo; enquanto eles nadam em águas rasas. (…) O realismo deles – não consegue iluminar uma centésima parte dos fatos que são reais e estão ocorrendo. E com nosso idealismo, prevemos fatos. Aconteceu.

Segundo Bakhtin (2005, p. 8), o crítico Vyatcheslav Ivánov foi o primeiro a se

aproximar de uma abordagem mais acurada da escritura realista de Dostoiévski:

Vyatcheslav Ivánov foi o primeiro a sondar – e apenas sondar – a principal peculiaridade estrutural do universo artístico de Dostoiévski. Ele define o

realismo dostoievskiano como realismo que não se baseia no conhecimento (objetivado) mas na ‘penetração’. Afirmar o ‘eu’ do outro não como objeto mas como outro sujeito, eis o princípio da cosmovisão de Dostoiévski.”

Por meio da “penetração”, o realismo dostoievskiano não descreve a imagem

do homem, do outro, como objeto conhecido. Ao contrário, penetra nas profundezas

da alma do outro, mostrando o quanto ela é desconhecida, revelando aspectos

encontrados nas camadas da consciência, sem preconceber o que está oculto sob

cada uma delas. Essa primeira sondagem da crítica, segundo Bakhtin, ainda não

chega aos diferenciais mais importantes da obra de Dostoiévski.

O crítico B. M. Engelgardt é apontado por Bakhtin como o que entendeu, com

maior profundidade, o que existe de mais peculiar na escritura dostoievskiana. No

ensaio “Ideologuítcheskiy roman Dostoievskovo” (O Romance Ideológico de

Dostoiévski), incluído em F. M. Dostoiévski. Stati I materiali, Engelgardt define o

herói dostoievskiano como “homem de idéia” – nesse herói, a idéia ganha força de

sujeito da ação, determinando e deformando a consciência do herói e sua própria

vida. Segundo Bakhtin (2005, p. 22), “a idéia leva uma vida autônoma na

consciência do herói: não é propriamente ele que vive mas ela, a idéia, e o

romancista não apresenta uma biografia do herói mas uma biografia da idéia neste”.

Por ser a idéia que o domina, o herói dostoievskiano não se configura num

tipo biográfico comum, como Bakhtin (2005, p. 22) classifica os heróis de Tolstói e

Turguêniev, por exemplo. Por essa característica, Engelgardt (apud BAKHTIN, 2005,

pp 22-23) define o romance de Dostoiévski como ideológico, não no sentido comum

do gênero, em que uma única idéia é representada, mas no sentido de que as idéias

assumem o papel de heroínas no romance:

Dostoiévski representa a vida da idéia na consciência individual e na social, pois a considera fator determinante da sociedade intelectual. Mas não se deve interpretar a questão de maneira como se ele tivesse escrito romances de idéias e novelas orientadas e sido um artista tendencioso, mais filósofo do que poeta. Ele não escreveu romances de idéias, romances filosóficos segundo o gosto do século XVIII mas romances sobre idéias. Como para outros romancistas o objeto central podia ser uma aventura, uma anedota, um tipo psicológico, um quadro de costumes ou histórico, para ele esse objeto era a ‘idéia’. Ele cultivou e elevou a uma altura incomum um tipo inteiramente específico de romance, que, em oposição ao romance de aventura, sentimental, psicológico ou histórico, pode ser denominado romance ideológico. Neste sentido a sua obra, a despeito do caráter polêmico que lhe é peculiar, nada deve em termos de objetividade à obra de outros grandes artistas da palavra: ele mesmo foi um desses artistas;

colocou e resolveu em seus romances problemas antes e acima de tudo genuinamente artísticos. Só que a matéria que manuseava era muito original: sua heroína era a idéia.

Daí depreende-se que o realismo de Dostoiévski expressa um mundo

ideológico, no qual as idéias agem sobre o homem e não só por meio dele.

Dominado pela idéia, o herói circula em um mundo que se revela pelo prisma

ideológico. A realidade que ele vê, o ambiente que o cerca e as relações sociais que

ele trava são determinadas pela idéia dominante, o que, segundo Bakhtin (2005, p.

23), “leva à desintegração do mundo do romance em mundos dos heróis, mundos

esses organizados e formulados pelas idéias que os dominam”.

Essa desintegração é responsável pela pluralidade de planos de realidade,

que caracteriza o mundo romanesco criado por Dostoiévski e, conseqüentemente,

define peculiaridades fundamentais de seu realismo. Se o mundo se apresenta

desintegrado, em planos independentes que se configuram em função da idéia

dominante do herói, a realidade, no romance dostoievskiano, não pode ser retratada

por meio de descrições detalhadas e objetivas de ambientes, caracteres e situações.

Assim como em Machado, a função descritiva, típica do romance realista comum,

não se aplica ao realismo dostoievskiano:

O princípio da orientação puramente artística do herói no ambiente é constituído por essa ou aquela forma de atitude ideológica em face do

mundo. Assim como o dominante da representação artística do herói é o

complexo de idéias-forças que o dominam, exatamente do mesmo modo o dominante na representação da realidade circundante é o ponto de vista sob o qual o herói contempla esse mundo. A cada herói o mundo se apresenta num aspecto particular segundo o qual constrói-se a sua representação. Em Dostoiévski não se pode encontrar a chamada descrição objetiva do mundo exterior; em termos rigorosos, no romance dostoievskiano não há modo de vida, não há vida urbana ou rural nem natureza mas há ora o meio, ora o solo, ora a terra, dependendo do plano em que tudo é contemplado pelas personagens. Graças a isso surge aquela multiplicidade de planos da realidade na obra de arte que, nos continuadores de Dostoiévski, leva amiúde a uma singular desintegração do ser, de sorte que a ação do romance se desenrola simultânea ou sucessivamente em campos ontológicos inteiramente diversos. (B. M. ENGELGARDT. Ideologuístcheskiy roman Dostoievskovo, apud BAKHTIN, 2005, p. 23)

Engelgardt, apesar de aproximar-se das peculiaridades da estrutura do

romance de Dostoiévski, revelando sua pluralidade de planos de realidade e

definindo o papel da idéia como dominante, também não chega, segundo Bakhtin

(2005, p. 24), ao mais importante diferencial de sua obra. Sua visão de como

Dostoiévski combina esses planos no romance é monologante, usando a

terminologia própria de Bakhtin, já que o crítico acredita que os “planos e os temas

que lhes correspondem, vistos em inter-relação, representam etapas isoladas do

desenvolvimento dialético do espírito.” Para Bakhtin (2005, p. 26), “em nenhum

romance de Dostoiévski há formação dialética de um espírito uno, geralmente não

há formação, não há crescimento, exatamente como não há na tragédia.

A estrutura do romance dostoievskiano, baseada na multiplicidade de planos

de realidade determinados pela idéia dominante de cada personagem, retrata os

fundamentos do seu realismo. É com base no quadro social de sua época, em que

coexistem realidades múltiplas e contraditórias, que Dostoiévski constrói seu

universo romanesco:

(…) o romancista encontrou a multiplicidade de planos e a contrariedade e foi capaz de percebê-los não no espírito mas em um universo social objetivo. Neste universo social, os planos não são etapas mas estâncias, e as relações contraditórias entre eles não são um caminho ascendente ou descendente do indivíduo mas um estado da sociedade. A multiplicidade de planos e o caráter contraditório da realidade social eram dados como fato objetivo da época. (BAKHTIN, 2005, p. 28)

Desse olhar para uma realidade em que convivem verdades contraditórias e

simultâneas, surgem as maiores peculiaridades da escritura realista dostoievskiana.

Para Bakhtin (2005, p. 28),

Dostoiévski procura captar as etapas propriamente ditas em sua simultaneidade, confrontá-las e contrapô-las dramaticamente e não estendê-las numa série em formação. Para ele, interpretar o mundo implica em pensar todos os seus conteúdos como simultâneos e atinar-lhe as inter- relações em um corte temporal.

Malcon V. Jones (2005, p. 29), em seu livro Dostoyevsky after Bakhtin, define

o realismo dostoievskiano como fantástico, por meio de uma concepção bastante

peculiar desse modelo:

Fantastic realism (…) is not simply a matter of individual fantasy, the mental aberrations of individuals under conditions of material stress. It is the product of social interaction, and, as we shall see, of the strategies people consciously or unconsciously employ not only to enrich each other’s

consciousness but also to disorientate one another. Strong emotional impulses (deriving from what Freud called the Oedipus complex, for example, or the urge to raise oneself in the dominance hierarchy) may focus and give dynamic direction to these fantasies, and also lead to the opposition and conflict between persons engaged in dialogue.5

Esse conceito de realismo fantástico, ligado, essencialmente, à interação, ao

diálogo e ao conflito entre pessoas movidas por impulsos emocionais, é coerente

com as teorias do dialogismo e da polifonia de Bakhtin. Considerando o realismo

fantástico um produto das “estratégias que as pessoas consciente ou

inconscientemente empregam não somente para enriquecer a percepção de cada

um, mas, também para desorientar o outro”, é possível relacionar o escritura realista

fantástica de Dostoiévski com as estratégias que ele e Machado de Assis utilizam

para construir a dúvida em seus romances, o que será abordado no próximo

capítulo.

5 Realismo fantástico (…) não é, simplesmente, um caso de fantasia individual, as aberrações mentais de

indivíduos sob condições de stress. É o produto da interação social, e, como nós veremos, das estratégias que as pessoas consciente ou inconscientemente empregam não apenas para enriquecer a percepção de cada um, mas, também, para desorientar o outro. Fortes impulsos emocionais (derivados do que Freud chamou de Complexo de Édipo, por exemplo, ou o ímpeto de elevar-se na hierarquia dominante) podem focar e dar direção dinâmica a essas fantasias, e também levar à oposição e ao conflito entre pessoas envolvidas em diálogo – (minha tradução)

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