• Nenhum resultado encontrado

Diário de Campo: o registro dos fatos, vivências e sentimentos dos colaboradores

Foto 3 Local de realização das reuniões formativas

2 A PESQUISA QUALITATIVA COMO POSSIBILIDADE DE ANÁLISE DO SER E

2.3 Os Instrumentos de Coleta de Dados

2.3.2 Diário de Campo: o registro dos fatos, vivências e sentimentos dos colaboradores

Nas pesquisas de abordagem qualitativa, os registros dos fatos, vivências e sentimentos dos colaboradores de pesquisa podem ser “eternizados” através do uso do diário de campo, “que é uma espécie de diário pessoal” (SAMPIERE; COLLADO; LUCIO, 2013, p. 392). As emoções evidenciadas através dos olhos cheios d’água de um entrevistado, seus gestos, o silêncio perante uma pergunta que evoca seus sentimentos (seja de alegria ou de dor), as lembranças que, ao serem narradas, se manifestam marcadas por um sorriso ou por um olhar pensativo, são elementos que constituem fontes importantes de informações que podem ser descritas através de comentários feitos pelo pesquisador.

Para Bogdan e Biklen (1994, p. 150), “depois de voltar de cada observação, entrevista, ou qualquer outra sessão de investigação, é típico que o pesquisador escreva, de preferência num processador de texto ou computador, o que aconteceu”, organizando uma descrição dos acontecimentos, suas impressões, sentimentos, dúvidas e descobertas. Isso significa registrar por meio de notas de campo “uma descrição das pessoas, objetos, lugares, acontecimentos, atividades e conversas.” Sampiere; Collado e Lucio (2013, p. 388) afirmam, ainda, que o pesquisador pode “elaborar anotações durante os eventos ou acontecimentos” e que seria uma segunda alternativa elaborar os registros após os fatos.

Frequentemente utilizado por pesquisadores da área da Educação, o Diário de campo é um recurso metodológico muito utilizado pela etnografia com o objetivo de registrar o cotidiano do processo de investigação (LOPES et al., 2002). Sua construção não obedece a normas pré-estabelecidas; trata-se de um conjunto de registros, denominados notas de campo, que reúnem o encontro da subjetividade do pesquisador e demais participantes da pesquisa.

No caso de uma observação participante, conforme propusemos neste estudo, todos os dados recolhidos são considerados notas de campo: “as notas de campo, transcrições de entrevistas, documentos oficiais, estatísticas oficiais, imagens e outros materiais” (BOGDAN; BIKLEN, 1994, p. 150).

As notas de campo podem ser divididas em dois tipos de materiais: “o primeiro é descritivo, em que a preocupação é a de captar uma imagem por palavras do local, pessoas, conversas e ações observadas.” O segundo é reflexivo, explicitando “a parte

que apreende mais o ponto de vista do observador, suas ideias e preocupações”. Nesse sentido, durante a coleta de dados, espera-se que as notas de campo, tanto descritivas como reflexivas, possam compor o conjunto de dados organizados pelo pesquisador, expressando, assim, tanto a descrição dos fatos e acontecimentos como o seu ponto de vista (BOGDAN; BIKLEN, 1994, p.152).

Para a compreensão do conteúdo das notas de campo, Bogdan e Biklen (1994, p. 152-158) reproduzem um conjunto de notas de campo recolhidas de parte de um estudo dirigido a estudantes com necessidades educativas especiais de uma escola secundária urbana. A partir da observação da aula da Professora Marge, esses autores descrevem com riquezas de detalhes cada acontecimento observado. As notas de campo produzidas nos trazem a compreensão de quantas pessoas estão na sala, como também suas vestimentas e comportamento. Explicitam também as atividades propostas para os estudantes, por exemplo, a construção da lista de perguntas para a visita da classe a uma empresa. Revelam os desafios de aprendizagem para o desenvolvimento da leitura e da escrita desses estudantes a partir da atividade de preenchimento de um recibo de depósito.

A partir do exemplo de Bogdan e Biklen (1994) sobre a utilização de notas de campo e seu conteúdo, entendemos que, durante a pesquisa qualitativa em um espaço formativo no qual se reúnem os professores que desenvolvem a educação escolar em prisões, podemos utilizar as notas de campo para registrar o explícito, aquilo que é evidenciado por meio de ações dos colaboradores de pesquisa, e o implícito, ou seja, aquilo que o gravador não pode captar, como a descrição de um sorriso, a lágrima silenciada, o semblante alegre ou triste.

Destarte, considerando que o “gravador não capta a visão, os cheiros, as impressões e os comentários extras” (BOGDAN; BIKLEN, 1994, p. 150), acreditamos que a construção do Diário de Campo é uma técnica importante, principalmente para registrar as ações formativas dos professores e o que pensam sobre esse processo e, ainda, as suas expectativas de aprendizagem. No decorrer da coleta de dados, registramos e traduzimos esses momentos por meio de incansáveis anotações.

De acordo com Sampiere; Collado e Lucio (2013, p. 388), “nas anotações é importante incluir nossas próprias palavras, sentimentos e condutas”. Para esses autores, “as anotações podem ser de diferentes tipos”: aquelas resultantes da observação direta, anotações interpretativas, anotações temáticas, anotações pessoais e, finalmente, anotações sobre as reações dos participantes.

À luz do pensamento de Sampiere; Collado e Lucio (2013), no decorrer da coleta de dados, fizemos diversas anotações, incluindo as descrições das ações e reações dos colaboradores de pesquisa mediante as propostas de Formação Continuada, os slides das apresentações desses professores com os apontamentos sobre os aulões que gentilmente eles cediam a nós, os apontamentos da escuta do outro, do ambiente, além de comentários de natureza interpretativa. Organizamos anotações de cunho pessoal, incluindo, assim, os sentimentos da pesquisadora, suas impressões e os processos educativos por ela vivenciados, como também os comentários referentes às entrevistas realizadas. Ao todo, foram produzidos 14 Diários. O último deles é composto pelas transcrições e comentários referentes às entrevistas. A seguir, apresentamos a técnica escolhida para a sua realização.

2.3.3 O Uso da Entrevista Narrativa Como Técnica de Coleta de Dados

Utilizamos as entrevistas narrativas como um dos instrumentos de coleta de dados, como uma das ferramentas que nos auxiliasse na construção de um conjunto de informações de modo a alcançar o nosso objetivo de pesquisa: analisar as necessidades formativas de professores que atuam em salas de aula nas unidades prisionais de Cuiabá e Várzea Grande-MT. Essa “técnica recebe o seu nome da palavra latina narrare, relatar, contar uma história” (JOVCHELOVITCH; BAUER, 2015, p. 93).

Flick (2009, p. 172) explica que “antes de escolher esse método, deve-se decidir de antemão se é de fato o curso (de uma vida, da trajetória de um paciente, de uma carreira profissional) que consiste no componente central da questão de pesquisa.” No caso deste estudo, nos interessou a trajetória formativa dos professores e professoras que atuam nos espaços de privação de liberdade em Cuiabá e Várzea Grande, com ênfase em sua participação no processo de Formação Continuada que acontece no espaço escolar, o PEFE. Desse modo, as questões gerativas de narrativas, contidas no Apêndice D, foram formuladas com essa finalidade.

De acordo com Jovchelovitch e Bauer (2015), a preparação da entrevista narrativa inclui a exploração do tema que se pretende pesquisar com o objetivo de conhecê-lo e, ainda, a preparação das questões que refletem o interesse do pesquisador. Essas questões são denominadas “pergunta gerativa de narrativa”

(RIEMANN; SCHUTZE, 1987, p. 353). Flick (2009, p. 165) adverte de que “é fundamental certificar-se de que a questão gerativa seja realmente uma questão narrativa”. À vista do exposto, organizamos o roteiro narrativo com perguntas que estimulassem as narrações feitas pelos colaboradores, desse modo, iniciando-as com verbos do tipo: conte-me, relate, descreva, entre outros.

Além da utilização de verbos no modo imperativo, os quais demonstram uma espécie de solicitação, um pedido, um convite por parte do entrevistador para a participação do entrevistado na entrevista narrativa, esta técnica, por sua vez,

[...] tem em vista uma situação que encoraje e estimule um entrevistado a contar a história sobre algum acontecimento importante de sua vida e do contexto social (JOVCHELOVITCH; BAUER, 2015, p. 93).

À luz das orientações de Jovchelovitch e Bauer (2015) e Flick (2009), evitamos, no decorrer das entrevistas, a interrupção dos colaboradores durante as narrações dos acontecimentos; apenas fazíamos alguns sinais ou interjeições que os encorajassem a continuarem as narrações, do tipo “hum” ou um simples gesto corporal de modo que demonstrássemos a eles empatia com o acontecimento narrado. Evitamos, também, comentários que remetessem a julgamentos ou desaprovação. Pelo contrário, no momento de início das entrevistas narrativas, buscamos “oferecer aos entrevistados um espaço para que contem suas histórias (se necessário, por várias horas) e solicitar que assim o façam” (FLICK, 2015, p. 170). Sempre no local de trabalho, os colaboradores partilharam suas trajetórias formativas, de modo a explicitar suas conquistas, desafios, anseios e necessidades.

Posto isto, a realização das entrevistas narrativas seguiu as seguintes fases descritas por Jovchelovitch e Bauer (2015):

A) Iniciação: inclui a “formulação do tópico inicial para narração” (JOVCHELOVITCH; BAUER, 2015, p. 97).

B) Narração Central: momento em que o entrevistado faz a narração. Jovchelovitch e Bauer (2015, p. 97) sugerem que não devemos interromper, procedendo somente com o “encorajamento verbal”.

C) Perguntas: após o entrevistado dar sinal de finalização do assunto narrado (“coda”), o entrevistador faz perguntas com o objetivo de “completar as lacunas da história” (JOVCHELOVITCH; BAUER, 2015, p. 99).

D) Fala conclusiva: momento de descontração no qual o pesquisador desliga o gravador e prossegue com uma conversa informal. Essa fase pode auxiliar o pesquisador na “interpretação da narração no seu contexto” (JOVCHELOVITCH; BAUER, 2015, p. 100).

Ao final das entrevistas, ao desligar o gravador, fazíamos o seguinte questionamento aos entrevistados: você gostaria de acrescentar alguma informação? Esse momento foi marcado por risos, descontração, troca de experiências e agradecimentos pela participação voluntária nas entrevistas; essa iniciativa os faz também autores desse estudo.

A opção pela entrevista narrativa se deu pela possibilidade da utilização “de uma entrevista qualitativa de estrutura e de experiências responsivas” (FLICK, 2015, p. 170), que traria a oportunidade de ir além “do esquema pergunta-resposta” e ainda “porque ela emprega um tipo específico de comunicação cotidiana, o contar e escutar história” [...] (JOVCHELOVITCH; BAUER, 2015, p. 95).

Valendo-nos das vantagens da técnica narrativa, primeiramente, explicávamos ao entrevistado o objetivo do estudo; não utilizávamos recursos visuais, mas procurávamos instigá-los verbalmente. De posse do roteiro narrativo que fora enviado previamente por e-mail aos entrevistados, iniciávamos as entrevistas. Contudo,

Não foi possível prever um itinerário para a condução de nossas entrevistas narrativas. Sendo assim, o roteiro nos serviu apenas como o ponto de partida para a realização das entrevistas narrativas [...] comecei explicando que as histórias de vida dos docentes têm muito a dizer sobre o seu fazer na sala de aula. Ao ouvir a minha afirmação, logo, o professor Zeus discordou e justificou que embora fosse educado em um lar católico, hoje é umbandista e que seu modo de agir e pensar pouco tem a ver com a sua criação familiar. E assim se iniciou a nossa entrevista (DIARIO DE CAMPO XIII, 21 de agosto de 2018, p. 160).

A ultrapassagem do esquema pergunta-resposta pode ser identificada no momento inicial da entrevista com o professor Zeus. Nem sempre os colaboradores seguiam o roteiro narrativo, conforme o previsto. Em alguns momentos, eles narravam livremente e até mudavam de assunto durante as narrações dos acontecimentos. Desse modo, a escolha pela técnica de entrevista narrativa conferiu aos participantes a liberdade no modo de dizer a sua palavra para o mundo e sobre o mundo.

Em vista do exposto, organizamos uma transcrição detalhada do material resultante das entrevistas narrativas:

Características paralinguísticas, tais como o tom da voz ou as pausas, são transcritas a fim de que se possa estudar a versão das histórias

não apenas quanto ao seu conteúdo, mas também quanto a sua forma retórica (JOVCHELOVITCH; BAUER, 2015, p. 106).

À luz do pensamento desses autores, no momento da entrevista, tornamo-nos ouvintes e observadores. Assim sendo, registramos no Diário de Campo as pausas durante as narrações e até mesmo a emoção que brotava no brilho do olhar dos colaboradores, por meio da demonstração de tristeza, alegria e, ainda, o registro do silêncio em alguns momentos, foi possível identificar detalhes importantes para a etapa de análise dos dados obtidos, conforme trataremos a seguir.