• Nenhum resultado encontrado

3. Um método de transcrição musical

3.3. Diários de transcrição

Um tradutor que não tem dúvidas não pode ser um bom tradutor: meu primeiro julgamento sobre a qualidade de um tradutor decorre do tipo de questões que ele me faz. (CALVINO, 2015, p. 82).

Ana Helena Rossi, ao relatar suas experiências tanto na prática tradutória quanto no ensino de tradução, enfatiza que “a redação do diário de tradução torna- se um instrumento metodológico fundamental para o tradutor não se esquecer dos problemas encontrados, nem das respostas dadas, nem das possíveis inter-relações existentes nas escolhas tradutórias” (ROSSI, 2014, p. 81). Inspirado na existência de diários de tradução, decidi fazer algo semelhante e escrever a respeito do cotidiano ligado às transcrições musicais. O primeiro experimento ocorreu ao trabalhar com o

Rudepoema, onde anotei as dúvidas que foram surgindo durante o estudo das

partituras e as respectivas soluções que posteriormente encontrei, ao longo dos dois anos de trabalho que a transcrição me exigiu.

Em transcrições feitas anteriormente, eu vinha me habituando a escrever nas próprias partituras informações ligadas aos trabalhos em progresso. Não posso

classificar essas anotações como “diários” pois os textos sempre foram bastante curtos ou apenas se restringiam ao uso de tópicos ou palavras-chave que demonstravam de maneira sucinta as minhas maiores preocupações concernentes a uma determinada transcrição. É sabido que forma influencia conteúdo (e vice-versa) e essa correlação provou-se mais uma vez válida com a criação desse diário. Ao optar pelo formato de um diário propriamente dito, o simples fato de ter mais espaço para anotar as ideias e criar uma certa rotina para me dedicar ao texto fez com que as inserções textuais se tornassem mais longas e complexas (se comparadas com a prática anterior de fazer apenas anotações curtas, diretamente nas partituras).

Uma das muitas vantagens de escrever um diário desse tipo é poder perceber a recorrência de certos elementos relativos a transcrições e orquestrações. Ao constatar essas recorrências, pude selecionar com maior clareza quais parâmetros eu poderia focar para a escrita do método de transcrição musical que aqui se apresenta.

A escrita de diários de tradução eventualmente viabiliza, na forma de diálogos ou correspondências, um processo de colaboração entre o escritor e o tradutor. Cito uma publicação desse tipo que reforçou positivamente as minhas impressões relativas a esse tipo de colaboração. Trata-se da correspondência entre o escritor João Guimarães Rosa com o tradutor Eduardo Bizzarri. Destaco um trecho das missivas, na qual Guimarães Rosa manifesta tremendo entusiasmo em relação ao trabalho de Bizzarri, que estava traduzindo as novelas integrantes do Corpo de

Baile para o italiano:

Fiquei feliz. Em tudo constante, V. é sempre o mesmo - tudo em que toca, toma valor. Sua carta, ela própria, e a lista de ‘dúvidas’, trazem, em cada linha, trazem, digo, a marca da inteligência sem cochilar e esse jeito de agarrar as coisas com mão sutil e firme. Já me vejo, enfim, vantajosamente traduzido. Sem piada, mas sincero: quem quiser realmente ler e entender G. Rosa, depois, terá de ir às edições italianas. (BIZZARRI, 2003, p. 37).

Em um outro trabalho de transcrição musical que eu fiz, quase concomitantemente à transcrição do Rudepoema, a escritura de um diário e o dialogo com o compositor da peça do ponto de partida provaram-se igualmente frutíferos. Ao transcrever Agnus Dei from Polish Requiem, de K. Penderecki, originalmente composto para coro a capela e transcrito por mim para banda

sinfônica , o diário de transcrição foi útil, entre outras razões, porque possibilitou 30 que eu levasse ao compositor questões precisas referentes a essa empreitada e assim pudemos conversar a respeito das impressões dele concernentes aos resultados alcançados na transcrição.

O mesmo processo de consulta direita ao compositor (obviamente) não é possível no caso de Villa-Lobos, que nos deixou em 1959. Porém, a manutenção de um diário de transcrição do Rudepoema foi, de certa forma, um estímulo para pesquisar por respostas eventualmente contidas no próprio legado do compositor e me guiar por uma revisita aos repertórios de referência (partituras, livros, teses, artigos, gravações etc.) a partir dessas anotações diárias.

3.4. Tessitura (e adequações)

A tessitura empregada em uma transcrição musical está duplamente condicionada ao uso que era feito desse parâmetro na música tomada como ponto de partida e à disponibilidade encontrada no meio expressivo para o qual a peça for transcrita.

É relativamente mais fácil expandir a tessitura do que comprimí-la. Por exemplo: uma música que foi inicialmente escrita para violão e é transcrita para orquestra pode receber dobramentos de oitavas ou ter elementos constitutivos parcialmente deslocados, uns em relação aos outros. Com a disponibilidade de uma tessitura ampla, é possível ao compositor-transcritor aumentar a variedade de oitavas nas quais os materiais serão escritos. Um exemplo simples: a reescrita de uma repetição frasal em oitava diferente da que era encontrada na peça tomada como ponto de partida é um caso corriqueiro desse tipo de expansão da tessitura.

A compressão da tessitura é uma operação mais delicada pois frequentemente os elementos constitutivos poderão, de certa maneira, se chocar. Por exemplo: duas linhas melódicas que eram facilmente diferenciáveis devido às distâncias intervalares que as separavam podem perder consideravelmente a distinção caso a compressão de tessitura implique em um menor âmbito intervalar onde essas linhas melódicas coabitarão. Umberto Eco, ao falar a respeito das técnicas tradutórias e estabelecer paralelos com outras artes, relata um

Transcrição feita durante o primeiro semestre de 2015 e publicada pela editora Schott Music no 30

procedimento análogo a este da compressão da tessitura presente em gravuras que se baseiam em pinturas (ilustrativas de livros e catálogos, quando ainda não existiam outras técnicas para reproduzir essas imagens impressas). É frequente que, nessas gravuras, os objetos que estavam relativamente distantes entre si serem aproximados e as proporções dos componentes serem alteradas pelo incisor, se compararmos com a forma que esses elementos originalmente se inseriam na pintura que foi gravada. Eco também comenta que alguns elementos da pintura original às vezes simplesmente desapareciam na versão gravada porque não havia espaço suficiente para eles e isso prejudicaria a clareza da composição geral da gravura (ECO, 2007. p. 299).

Se ao escrever uma transcrição for inevitável comprimir a tessitura e isso comprometer a clareza dos diferentes elementos, o compositor-transcritor tem de lidar com a “lei das compensações” - tomando emprestada a expressão de Haroldo de Campos, que é endossada por Boris Schnaiderman - e será necessário recorrer 31

a diferenciação timbrística (e, quem sabe, articulatória) para se compensar a perda que aconteceu na tessitura, de forma que a diferenciação que anteriormente as grandes distâncias intervalares garantiam aos materiais se torne mais nítida, a partir de outros parâmetros.