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3.1 – Diacronia e aparelho psíquico

Para a teoria, a dimensão diacrônica é constitutiva em dois sentidos. O primeiro e mais fundamental é o que diz respeito à sucessão como forma em que se dão as vivências e a necessidade decorrente de retê-las. O segundo visa certa universalidade e fixidez da

seqüência em que a experiência psíquica acontece ao longo da vida do indivíduo. Começamos com esse último desde seu esboço na Auffassung.

Uma vez apresentada a noção de representação, Freud detalha pormenorizadamente a aprendizagem da fala, da leitura e da escrita. Na virada do capítulo VI, a opção por uma

explicação genética obedece à procura por uma alternativa à neurofisiologia, o que abre caminho para a criação da psicanálise. Na descrição do processo de aprendizagem da

linguagem, ficam evidenciadas a relação entre percepção e associação e a ordem em que tal relação vai se construindo.

Em primeiro lugar, associamos uma imagem sonora da palavra com a imagem da inervação da palavra. A imagem sonora da palavra falada inicialmente não coincide com a imagem sonora da palavra ouvida. Depois, adequamos nossa imagem sonora produzida com a imagem sonora que serviu de estímulo, quando aprendemos a repetir.

Em terceiro lugar, aprendemos a soletrar associando imagens visuais das letras com novas imagens sonoras que nos evocam sons já conhecidos. A seguir, aprendemos a ler conectando reciprocamente uma sucessão de imagens de inervação da palavra e impressões cinestésicas da palavra percebidas ao enunciar individualmente as letras. Surgem novas imagens cinestésicas que, pelas suas imagens sonoras correspondentes, reconhecemos como já familiares.

Anexamos às imagens sonoras soletradas, os significados dos sons reconhecidos e começamos a ler com compreensão. Por último, aprendemos a escrever reproduzindo as imagens visuais das letras com ajuda das imagens cinestésicas da mão. A escrita é comparativamente mais simples e menos vulnerável do que a leitura ([1891] 1992, p. 117 – 121; 1973, p. 87 – 90).

Por que a descrição detalhada da aprendizagem? Qual é o seu papel na articulação do pensamento? Ela fornece razões, primeiro, para sustentar a tese acerca do processo associativo da linguagem e a estrutura da representação; segundo, para defender o primado da imagem sonora na organização do complexo de palavra e, terceiro, para estabelecer a dimensão diacrônica das organizações associativas. Em relação ao processo associativo, com certeza explicitar como aprendemos a falar, ler e escrever faz manifesto o entremeado de associações em jogo em cada uma dessas atividades.

Quanto à imagem sonora, Freud defende o seu primado na organização da função lingüística argumentando ─ além das evidências fornecidas pela observação das conseqüências dos diversos tipos de lesões ─ que é através dessa imagem, justamente, que começamos nossa aprendizagem ([1891] 1992, p. 135 – 136; 1973, p. 103 - 104). Ao contrário, Charcot41 nega que haja uma regra geral de preferência em relação às formas de

associação. Todos os elementos teriam direitos funcionais iguais, dependeria da organização individual decidir qual fator seria central para coordenar os outros ([1891] 1992, p. 143 - 144; 1973, p. 110 – 111).

Como observa Gabbi Jr., se assim fosse, não teríamos nenhuma regularidade para pensar a questão da afasia, nem para estabelecer diagnósticos, o que seria uma forte objeção para a classificação proposta por Freud (1991, p. 193 - 194). Baseada na noção de representação, ela determina três formas de afasia: verbal, assimbólica e agnósica, segundo quais associações sejam afetadas, as da palavra, as da união da palavra com o objeto ou as do objeto (FREUD, [1891] 1992, p. 148; 1973, p. 116). Se não há um padrão no procedimento associativo, não se pode fundar nele uma classificação. E tal padrão determina-se pela maneira de apreendermos o uso da linguagem.

No que tange à diacronia, a aprendizagem dar-se-ia segundo estágios associativos de crescente complexidade até dominar fala, leitura e escrita. Essa sorte de princípio evolutivo que Freud toma emprestado de Hughlings Jackson permitirá explicar os distúrbios da linguagem como “retrogressão funcional”, nos termos do autor. As diferentes atividades da linguagem realizam-se por meio das mesmas associações pelas quais as aprendemos. Nos casos de deterioração orgânica que atinge a totalidade do aparelho de linguagem, então podemos supor que se volta a uma forma primitiva de associação. Por exemplo, na afasia motora voltamos ao estágio no qual ainda não apreendemos suficientemente a pronunciar os sons ouvidos.

Isso significa que no curso da aprendizagem se estabelecem configurações associativas que vão se sucedendo, mas que, no entanto, não desaparecem ao serem substituídas por outras mais novas. Ao contrário, tais configurações representam estágios nos quais os mais recentes supõem os mais antigos, que permanecem disponíveis, caso necessário. Em outras palavras, a afasia é uma patologia que desintegra a unidade complexa da palavra constituída por seus quatro componentes fundamentais (a imagem sonora, a imagem visual da letra, as imagens glossocinestésicas e quirocinestésicas), retornando a um dos estágios anteriores à aquisição definitiva da linguagem.

Freud segue a Hughlings Jackson no princípio de retrogressão funcional de um aparelho altamente organizado a formas anteriores de ordenamento de suas associações. À visão evolucionista do funcionamento do aparelho de linguagem, em que se sucedem patamares de organização dos mais simples aos mais complexos, corresponde a idéia de involução, processo contrário àquele, como causa da patologia. De modo que o aparelho de linguagem funciona evolutivamente. Na medida em que aprendemos as funções de linguagem, adquirimos graus de complexidade maior nas associações em jogo. O distúrbio

é um retrocesso a formas inferiores que permanecem latentes, mas disponíveis junto com as formas mais evoluídas.

A noção de aprendizagem introduz, então, a idéia de um processo cumprido em estágios ou fases, ou seja, segundo uma seqüência fixa. Enquanto no texto sobre as afasias este diz respeito à aquisição da linguagem, no Projeto aplica-se ao curso excitatório e ao amadurecimento sexual. Por uma parte, o caminho da excitação tem um sentido progressivo entre ϕψω, de modo que os processos psíquicos apresentam também caráter diacrônico com uma orientação estabelecida. Por outra, no Projeto e nos Estudos a noção de desenvolvimento refere-se ao surgimento da sexualidade na puberdade. A Carta 52 parece reunir ambas as idéias para falar de um desenvolvimento psicológico e outro, paralelo mas não totalmente coincidente, sexual.

A maneira de pensar o aparelho de linguagem na Auffassung prefigura a concepção do aparelho psíquico constituído por estratificações sucessivas de associações. Como no caso das afasias, a diacronia dos processos psíquicos outorga a matriz sobre a qual explicar a patologia. A tese de H. Jackson acerca da patologia é adotada por Freud primeiro para as afasias e depois para dar conta das psiconeuroses. Assim como a afasia supõe a volta a um estágio anterior da aquisição da linguagem, as psiconeuroses obedecem ao retrocesso a estádios de organização psíquica anteriores e os sonhos a formas mais primitivas de representação.

A semelhança com o aparelho psíquico envolve também uma noção de representação muito próxima, baseada no processo perceptivo-associativo, a relevância dada à intensidade emocional das vivências, a tese da continuidade entre o normal e o patológico no caso das parafasias (FREUD, [1891] 1992, p. 52; 1973, p.29). Todas essas

noções indicam em seu conjunto que Freud já dispunha de um esboço do funcionamento da memória, o que equivale a dizer que já se encontrava elaborando uma idéia de aparelho psíquico42. Elaboração que, partindo do horizonte teórico do evolucionismo funcional de H.

Jackson e mediada pela Carta 52, desemboca no capítulo VII da Interpretação dos sonhos, onde a memória ganha sua descrição fundamental.