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Em relação ao tratamento na Auffassung acerca de representação, há uma outra diferença a salientar: o tratamento dado à questão do afeto. Embora Freud se refira ao afeto como possível fator de alteração do complexo da representação, ele não aprofunda nessa direção. Freud menciona casos de afásicos motores que retêm, além do “sim” e “não”, blasfêmias e expressões que pertencem à linguagem emocional antes do que à intelectual, como indica Hughlings Jackson ([1891] 1992, p. 105; 1973, p. 75).

Em outros casos, resgata o significado emocional em resíduos afásicos, tal como o do homem que só podia dizer “quero proteção”. A sua afasia devia-se a uma briga em que recebeu um golpe na cabeça. “Lista completa” era a expressão de um empregado que teve um ataque imediatamente depois de ter completado com muito esforço um catálogo. Nas palavras de Freud: “Me inclino a explicar a persistência dessas últimas modificações por sua intensidade se acontecem em um momento de grande excitação interior.” Esse mesmo princípio serviria para outros fenômenos como o exemplo da situação em que ele, encontrando-se em perigo, ouviu como se alguém gritasse “este é o fim” ao mesmo tempo em que viu as palavras como se estivessem escritas em um papel que flutuava ([1891] 1992, p. 105 - 106; 1973, p. 76).

Nos escritos freudianos da época, percebe-se uma ênfase crescente no que diz respeito a afirmar a solidariedade entre representação e afeto para pensar as vivências. Em

Algumas considerações para um estudo comparativo das paralisias motoras orgânicas e histéricas lemos:

Cada acontecimento, cada impressão psíquica, é provido de um certo valor afetivo (Affecktbetrag) da qual o eu se desembaraça ou por meio de uma reação motora ou por uma

atividade psíquica associativa. (FREUD, [1893] 1952, GW, I, p. 54; 1976, AE, I, p. 209)

A solidariedade entre um conteúdo representativo e seu correlato afetivo é indicado, por uma parte, com o termo “Affecktbetrag”, que Freud traduz por “valeur affective”32 no texto

francês; por outra, pela afirmação de que a atividade associativa é uma via de tramitação do afeto (GREEN, 1982, p. 27).

A introdução da perspectiva quantitativa, no Projeto, abre o caminho para pensar a representação em relação com o corpo e, portanto, insere teoricamente a dimensão do afeto. Este, entendido como quantum, apresenta uma dupla origem: externa, ocasionada pelas impressões de objetos, e interna pela liberação dos neurônios secretores (GABBI JR. 2003, p.58-59, n. 107-9). De modo que o esquema conceitual da representação adquire, de pleno direito, uma nova dimensão além da ideativo-semântica da Auffassung.

Ora, o afeto abrange mais de uma conotação. Uma diz respeito à liberação de quantidade. Outra se refere à reprodução de vivências que acarreta essa liberação de quantidade. Ainda uma outra remete às sensações que esse processo desperta. De início, no

Projeto, o termo apenas designava a reprodução de uma vivência dolorosa. Depois passa a

indicar qualquer reprodução que implique irrupção de quantidade, incluindo a da vivência de satisfação. Neste sentido, “afeto” se refere a um complexo associativo de representações, vinculado às vivências dolorosas e de satisfação (GABBI JR. 2003, p.58-59, n. 107-9).

Nos Studien e na segunda parte do Entwurf, a concepção etiológica põe o afeto lado a lado com a representação, fazendo parte das vivências, de modo que o trauma é a representação cujo afeto correspondente não pode, por algum motivo, ser ab-reagido. O

32

A respeito, Green observa que a palavra “valor” abrange tanto a nuança de quantidade quanto a de qualidade (1982, p. 87n).

afeto represado encontra o caminho da conversão. Na Comunicação Preliminar, encontramos a explicação do funcionamento da psicoterapia catártica:

Cancela a ação eficiente da representação originariamente não ab-reagida, porque permite ao seu afeto estrangulado o decurso através do dizer, e leva até sua retificação associativa ao introduzi-la na consciência normal (em estado de hipnose leve) ou ao cancelá-la por sugestão médica, como ocorre no sonambulismo com amnésia. (BREUER e FREUD, [1892] 1952, GW, I, p. 97; 1976, AE, II, p.42)

A mera recordação não basta; deve ter lugar a expressão, que também é descarga, do afeto estrangulado. Como observa Monique Schneider, o afeto é uma noção bifronte patogênica e, ao mesmo tempo, curativa. Na verdade, tratar-se-ia de duas acepções diferentes: afeto como impressão, ou seja, do lado da passividade, e afeto como expressão, do lado da atividade. O afeto do trauma produz um choque psíquico “mais próximo de um golpe sobre a nuca do que de uma emoção forte. É a experiência de um estrangulamento que está além ou aquém do experimentado e do representável” (SCHNEIDER,1993, p. 26-7).

Qualquer vivência pode tornar-se traumática se suscitar afetos penosos como horror, vergonha, dor psíquica, sem a possibilidade de uma reação motora ou verbal adequada. Para Schneider, a saída não reside apenas em revelar o afeto, mas em “permitir-lhe tomar corpo”. Nesse sentido, ela interpreta o conselho freudiano: “despertar o afeto”. A catarse é cumprida na expressão do afeto (SCHNEIDER,1993, p. 27). A essa função catártica da

talking cure corresponde uma concepção de linguagem que não separe os aspectos ideativo

e afetivo como propõe Jakobson (SCHNEIDER, 1993, p. 31). Lemos nos Ensaios de

lingüística geral:

Se se analisa a linguagem do ponto de vista da informação que veicula, não se tem o direito de restringir a noção de

informação ao aspecto cognitivo da linguagem. Um sujeito, utilizando elementos expressivos para indicar a ironia ou a fúria, transmite visivelmente uma informação, e é certo que este comportamento verbal não pode ser assimilado a atividades não semióticas como àquela nutritiva, que evocava, a título de paradoxo, Chatman [...] (JAKOBSON, 1963, p. 215)

Para Jakobson, os fatores da comunicação verbal (emissor, destinatário, contexto, mensagem contato e código) originam as diversas funções lingüísticas. A diversidade das mensagens reside nas diferenças de hierarquia entre tais funções, não no monopólio de uma destas. Mesmo que a função cognitiva seja a preponderante em muitas mensagens, a participação secundária das outras funções deve ser tomada em consideração (JAKOBSON, p.214).

Freud concebe a linguagem como substituto da ação motora, quase tão eficiente quanto à própria ação, para ab-reagir o afeto ([1893 – 1895] 1952, GW, I, p. 87; 1976, AE, II, p. 34). Na terapia catártica, “a linguagem liga associativamente a recordação ao acontecimento, assim como liga a carga estrangulada de afeto às representações” (GREEN, 1982, p. 27). A verbalização envolve algo mais que uma operação intelectual, ela opera uma descarga através das palavras:

A linguagem não se reduz a permitir que a carga se desbloqueie e seja vivida, ela é, em si mesma, ato e descarga pelas palavras. O procedimento utilizado permite ao afeto

verter-se verbalmente; além disso, transforma essa carga

afetiva e leva a representação patogênica a se modificar por via associativa atraindo-a para o consciente normal. (GREEN, 1982, p. 28)

Essa forma de conceber a linguagem não apenas concede à função expressiva ou emotiva um lugar tão importante quanto à informativa ou denotativa, senão também supõe a co-

presença do conteúdo representativo e do afeto. A condição do sucesso da terapia reside na interação recíproca. Como salienta Green, o trauma, sua recordação e as representações patogênicas que dela derivam, o afeto não descarregado e a verbalização acompanhada de emoção ligam-se em uma rede indissociável na qual não se pode privilegiar o elemento representacional visto que o reaparecimento do afeto é fundamental (1982, p. 28 – 29).

No capítulo VI da Traumdeutung, na seção acerca dos afetos no sonho, encontramos a reivindicação dos afetos como os elementos que não enganam, uma vez que as representações sofrem deslocamentos e substituições enquanto que aqueles permanecem inalterados ([1900] 1972, SA, II, p. 444; 1976, AE, V, p. 458). Após essa afirmação inicial, surpreende encontrar, alguns parágrafos embaixo, a lista das transformações que sofreriam os afetos no sonho: desaparecimento, deslocamento, empobrecimento, inversão e reforço dos afetos permitidos substituindo os proibidos.

É verdade que Freud faz a ressalva de que o afeto não muda na qualidade, mas que é inibido. Isso combina com o desaparecimento e o empobrecimento, porém é incompatível com os outros tipos de transformação. Na opinião de Green, o que Freud teria querido dizer é que apesar da presença de mecanismos semelhantes para representações e afetos, estes sempre permanecem menos suscetíveis de desfiguração em relação àquelas, pois eles não podem ser fragmentados nem reunidos em novas totalidades inteiramente irreconhecíveis (1982, p. 45 – 46).

Em todo caso, do complexo psíquico submetido à censura, os afetos são a parte mais resistente. Desse modo, quando afeto e representação não parecem compatíveis, a psicanálise reconhece no primeiro um indício mais seguro, enquanto que enxerga na segunda uma substituta da representação recalcada. Se Freud pode dizer que o trabalho de interpretação, assim orientado, parte da premissa de que a unidade de afeto e representação

não é indissolúvel, também é verdade que pressupõe que há uma correspondência originária que precisa ser reencontrada.