II. Da Perda
2.5 Dialética dos vários mecanismos de perda
Após termos visto regimes díspares que regulam substancialmente as mesmas áreas – perda de bens – questões de interação/aplicabilidade dos vários mecanismos entre si podem surgir. Como resolver a questão do regime em concreto a aplicar, quando por exemplo mais do que um surgir capaz de regular, é o que se pergunta aqui. Se estivermos a falar de um crime de tráfico de estupefacientes, em teoria, três regimes podem configurar-se como aptos a uma futura declaração de perda de bens - Código Penal, Decreto-Lei 15/93, de 22 de janeiro, e na Lei 5/2002, de 11 de janeiro -.
Hélio Rodrigues a propósito da aplicação dos regimes do Decreto-Lei 15/93, de 22 de janeiro, e da Lei 5/2002, de 11 de janeiro, parece defender uma prevalência do regime especial de perda de bens da Lei 5/2002 sobre aquele. Diz-nos este autor que,
“Com efeito, no que concerne ao regime de perda de bens a favor do
Estado no âmbito da criminalidade contemplada no Decreto-Lei n.° 15/93, de 22 de janeiro, é necessário que se tenha presente um sistema jurídico
organizado em três camadas verticais, que funcionam como filtros sucessivos, que apenas deixam para as camadas inferiores o tratamento
das matérias não compreendidas no regime anterior. Em primeiro lugar, o esforço do realizador do direito no âmbito da recuperação das vantagens
deverá ser canalizado para a aplicação do regime previsto no artigo 7.º da Lei n.° 5/2002, de 11 de Janeiro, diligenciando pela recolha de
elementos que permitam accionar a presunção de incongruência patrimonial. Isto não implica que, concomitante ou sucessivamente se
aplique o regime do artigo 36.º do Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro,
contando que se encontre demonstrado o nexo ou vinculação exigidos legalmente entre o activo que se quer declarar perdido e a prática do facto.”217
Porem não estamos em acordo tout court com esta posição. Para resolver este assunto parece-nos que devemos apelar aos princípios reguladores para os conflitos aparentes de normas. Diz-nos Germano Marques da Silva que,
“O Código Penal não contém quaisquer directrizes sobre a
inaplicabilidade de uma das normas convergentes sobre o mesmo facto e
217 Hélio Rigor Rodrigues, “Perda de bens no crime de tráfico de estupefacientes (..)”, op. cit.
sobre a aplicabilidade de outra norma convergente que sobre a primeira prevalece e a exclui; remete para a doutrina a discussão e apresentação dos critérios necessários.”218
Tereza Pizarro Beleza, a este propósito, diz-nos que,
“Normalmente considera-se que as normas que estão entre si numa
relação de concurso aparente podem estar designadamente em três tipo de relação umas com as outras: relação de especialidade; relação de subsidiariedade; ou numa relação de consunção;”219
O princípio da especialidade diz-nos que a lex specialis sobrepõe-se à lex
generalis, ou seja, a lei especial derroga a lei geral. Ora, assim sendo, constituindo o
regime previsto na Lei 5/2002 um regime especial onde se regula, entre outras matérias, a perda de bens, tal faria supor que as normas do Código Penal seriam preteridas. Como dissemos não concordamos com este autor e o motivo é pelo facto do regime especial da Lei 5/2002, relativamente à aplicação do regime da perda alargada, exigir uma condenação. Nos termos da lei o regime aplicar-se-á após a decisão da condenação e depois da questão da declaração de perda ao abrigo dos outros regimes estar decidido. Daqui retiramos que não existe um conflito de aplicação das normas relativas à perda.
Se o conflito for entre as normas do CP e da Lei 5/2002 aplica-se primariamente o CP e só supletivamente as normas da Lei 5/2002 serão chamadas a aplicar após a decisão da culpa e dos bens. Este entendimento resulta indiretamente da leitura do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) para fixação de Jurisprudência de 22 de Outubro de 2014.220 Neste acórdão o STJ foi chamado a pronunciar-se sobre o recurso
com fundamento numa aparente oposição de decisões. No caso haveria um acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 10 de Abril de 2014, (acórdão recorrido) que atribuiria um carácter supletivo ao regime de perda de bens da Lei 5/2002 face ao regime do CP e DL 15/93, e haveria um acórdão do Tribunal da Relação Porto, de 14 de Dezembro de 2005, (acórdão-fundamento), que alegadamente atribuiria um carácter imperativo ao regime previsto na Lei 5/2002 quando em confronto com os outros regimes de perda de bens. Para que fique claro o STJ não se pronunciou sobre o carácter
218Germano Marques da Silva, “Direito Penal Português I”, Lisboa, Editorial Verbo, 1997, pág.
309
219 Teresa Pizarro Beleza, “Direito Penal 1.º volume”, publicação Associação Académica da
Faculdade Direito Lisboa, 2ª Edição, Lisboa, 1984, pág. 451
220Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) para fixação de Jurisprudência, de 22 de
supletivo ou imperativo do regime da Lei 5/2002, o que disse foi que inexistia oposição entre o acórdão recorrido e o acórdão-fundamento porque neste último em lado nenhum vinha a defesa da imperatividade do regime especial. Contudo, o acórdão do STJ dá como assente que o acórdão recorrido confere carácter supletivo ao regime da Lei 5/2002. Por isso, importa trazer para a presente discussão, julgamos nós, o que foi decido nesse acórdão de fixação de jurisprudência do STJ (isto na impossibilidade de aceder diretamente ao acórdão recorrido que não estava disponível para consulta). Assim, diz-nos o acórdão do STJ,
“IV - O acórdão recorrido entendeu que no caso de perda de bens a favor
do Estado só intervém a Lei 5/2002, por revestir carácter supletivo, quando o CP e o DL 15/93, de 22-01 forem insusceptíveis de aplicação. O acórdão-fundamento em parte alguma afirma que quando está em causa qualquer um dos crimes constantes do catálogo do art. 1.º da citada lei 5/2002 é sempre aplicável à perda de bens e vantagens ilícitas o regime dessa lei, nem é afirmado o carácter imperativo desse regime. Consequentemente, não há qualquer contradição entre os 2 acórdãos sobre a questão da imperatividade/supletividade da aplicação da disciplina da Lei 5/2002 aos crimes de catálogo neste previsto.” Mais diz
o acórdão do STJ que “Analisando o acórdão recorrido, constata-se que
ele declarou perdida a favor do Estado certa quantia de dinheiro apreendida a um arguido, quantia essa que se provara ser proveniente de tráfico de estupefacientes, fundando-se no regime previsto no art. 111º do CP e no art. 36º do DL nº 15/93, de 22-1, por entender que esses são os diplomas aplicáveis, só intervindo o disposto na Lei nº 5/2002, por
revestir caráter supletivo, quando aqueles diplomas forem insuscetíveis de aplicação.”
Pelo que se disse, temos para nós que, havendo vários regimes aplicáveis para uma futura declaração de perda de bens haverá que aplicar o princípio da especialidade da
lex specialis derroga a lex generalis. Nesse sentido o regime especial do Tráfico de
Estupefacientes previsto no Decreto-Lei 15/93, de 22 de janeiro, derroga o regime geral de perda de bens do Código Penal, mas só relativamente aos bens que estejam conexos com as infrações deste diploma. Todos os outros objetos que não estejam conexos com as infrações daquele Decreto-Lei, mas que mesmo assim se destinassem a ser
declarados perdidos por estarem conexos com outros ilícitos, aplicar-se-ia o CP. Após a condenação e consequente declaração de perda dos instrumentos, produtos e vantagens se ainda houver uma incongruência aplicar-se-á o regime da perda alargada da Lei 5/2002. Este regime, conforme entendimento do acórdão recorrido e por nós sufragado, “por revestir carácter supletivo” aplicar-se-á “quando o CP e o DL 15/93, de 22-01
forem insusceptíveis de aplicação” (e claro está após a condenação).
Ora a Lei n.º 30/2017 veio criar mais um regime dentro do regime no sistema jurídico. Ou seja, esta lei veio criar o artigo 12.º-B à Lei 5/2002, o qual não exige a condenação para que se aplique a perda dos instrumentos. A redação da norma refere que os instrumentos de “facto ilícito típico” relativamente aos crimes do art.º 1 são declarados perdidos independentemente da existência do requisito perigo. Pelo facto de naquele artigo 1.º da Lei 5/2002 estarem previstos (alguns) crimes de Tráfico de Estupefacientes, parece-nos que existem agora no que à perda dos instrumentos destes crimes diz respeito duas normas no mesmo plano especial e que poderão ser aplicadas, o art.º 12.º-B da Lei 5/2002 e o art.º 35.º do DL 15/93.
Por último, não poderíamos deixar de falar dos direitos do lesado face aos vários regimes de perda. O autor João Conde Correia remete-nos para a norma da perda das vantagens que nos diz que a declaração de perda não prejudica os direitos do ofendido, nas palavras do próprio, “O confisco das vantagens do crime não pode, obviamente,
prejudicar os direitos do lesado.”221 Quando este autor se pronunciou sobre este tema a
norma do CP que previa a proteção dos direitos do ofendido era o art.º 111.º n.º 2, estando, agora, norma idêntica prevista no art.º 110.º n.º 6, na redação dada pela Lei n.º 30/2017.222
221João Conde Correia, “Da proibição do confisco à perda alargada”, op. cit., pág. 99
222 A propósito da problemática da articulação dos direitos do lesado e da perda das vantagens
pronunciou-se Hélio Rigor Rodrigues, em 26 de Fevereiro de 2016, no âmbito de uma conferência no CEJ, com o tema “Recuperação de Ativos do Crime” nos seguintes termos “(..)
a vantagem patrimonial obtida pelo autor de determinados crimes como furto, burla ou abuso de confiança corresponde, inversamente, ao prejuízo patrimonial da vítima, e coloca-se, por isso o problema da articulação prática entre o confisco das vantagens do crime e o eventual
pedido de indemnização civil. A vítima pode ver-se na contingência de não poder fazer valer os seus direitos e, noutro extremo, o arguido pode ser constrangido a «pagar» duas vezes. É,
portanto, imprescindível encontrar um critério justo, capaz de resolver o concurso entre os interesses estaduais e os interesses individuais. Como conciliar os interesses do lesado com a necessidade de decretar o confisco das vantagens? Para estes efeitos é necessário distinguir duas situações: 1- As vantagens constituem coisas/objectos que pertencem ao lesado e que foi
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