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CAPÍTULO 3. A NATUREZA DO LÓGOS PIRRÔNICO

3.1 A dialética negativa dos céticos

Como já havíamos sublinhado neste trabalho, a crítica cética sempre foi direcionada aos filósofos dogmáticos ( α ), identificados por Sexto Empírico como aqueles que declaravam ter descoberto ( α ) a verdade, ou pelos que, presunçosamente, julgavam conhecer com exatidão ( ) a real natureza das coisas (P.H., II, 11). Os dogmáticos, que jamais dissimularam a pretensão de apresentar suas doutrinas filosóficas como as únicas vias legítimas para a verdade, fizeram da argumentação a ferramenta mais sublime e prestigiada do seu exercício pensante, transformando-a no dispositivo por meio do qual presumiam tornar manifesta a verdade dos seus sistemas doutrinais. Desse modo, então, os dogmáticos passaram a conceber o procedimento argumentativo como a chave para o desvelamento da mais recôndita verdade. Eis a síntese da divinização do .

Seja como for, qualquer um que examine a história do pensamento ocidental pode verificar que a racionalidade filosófica, desde a Antiguidade, sempre esteve comprometida comΝ aΝ ideiaΝ deΝ queΝ elaΝ “deveΝ serΝ pensadaΝ aΝ partirΝ deΝ umaΝ exigênciaΝ demonstrativa”ΝΥLOPES,Ν2ŃŃ6,Νp.Ν2ń4). Esse caráter lógico do discurso filosófico – que Aristóteles em seu Da Interpretação denominou de ἀπ α 131 –, tornou-se o emblema distintivo do discurso dogmático, que cada vez mais comprometido com os princípios da argumentação e da prova, convenceu-se da possibilidade de traduzir a totalidade do ser no domínio do dizer.

Se essa interpretação é correta, então podemos deduzir que a convicção de que o pensamento ( ῥ ) poderia apreender o Ser e comunicá-lo através do foi um dos fatores mais relevantes para que o otimismo ontoepistemológico dos dogmáticos pudesse avançar com a mais profunda segurança. A partir do momento que se cristaliza a concepção segundo a qual o discurso filosófico necessita inexoravelmente articular-se sob uma rígida estrutura lógica, pois essa é a forma legítima da demonstração, nasce, no coração das doutrinas dogmáticas, a mais abissal paixão pela argumentação. Como muitoΝ bemΝ notouΝ Porchat:Ν “aΝ filosofiaΝ dogmáticaΝ argumenta,Ν elaΝ essencialmenteΝ argumenta”ΝΥPORCHAT,Ν2ŃŃ7, p. 148).

Curiosamente, se dependêssemos tão-somente dos textos de Sexto Empírico para atestar que pertence à essência da filosofia dogmática o ímpeto pela argumentação, nós

nos surpreenderíamos com a prolífica quantidade de exemplos que disporíamos. No afã de estabelecer positivamente suas ideias, os filósofos dogmáticos argumentaram a favor da existência de um critério para a verdade (cf. P.H., II, 18; A.M., VII, 27-28, 46-47), criaram teses sobre o verdadeiro e o falso (cf. P.H., II, 85; A.M., VIII, 4), chegaram a instituir distinções teóricas entre as coisas evidentes (π α) e não-evidentes ( α) (cf. P.H., II, 97; A.M., VIII, 141), alegaram, ainda, que as coisas evidentes são conhecidas por si mesmas, ao passo que as não-evidentes o são através de signos (P.H., II, 99).

Além disso, os dogmáticos também se pronunciaram sobre os deuses, e não só lhes conferiram diferentes noções (cf. P.H., III, 3; A.M., IX, 14-28), mas também divergiram quanto a sua existência ou inexistência (cf. A.M., IX, 49). Por conseguinte, não faltou fôlego aos dogmáticos para que inclusive estabelecessem o que é bom, mal e indiferente (P.H., III, 168; A.M., XI, 3), nem mesmo para que proclamassem, presunçosos, em que consiste a arte de viver (P.H., III, 239; A.M., XI, 168). Os exemplos da grandiloquência argumentativa dos dogmáticos se multiplicam.

Contudo, se a famosa sentença do sofista GórgiasΝqueΝdiziaΝqueΝ“oΝdiscursoΝéΝumΝ grande senhor / α ”132 parece ter ressoado forte nos ouvidos dos dogmáticos, podemos dizer, em contrapartida, que nenhuma outra escola filosófica a interpretou em sua mais profunda acepção do que os membros da . Sabendo do caráter antinômico do – e ciente de que a razão que constrói é a mesma razão que destrói –, o ceticismo empreendeu sua crítica ao dogmatismo no seu terreno mais familiar, combateu-o no campo da argumentação.

Eis a razão da imensa maioria das páginas dos escritos de Sexto Empírico133 serem voltadas exclusivamente à elaboração de argumentos negativos, os quais são alinhados contra cada uma das teses positivas dos dogmáticos. Esse procedimento argumentativo, que representa o exercício sistemático de uma dialética negativa, ressalta aΝ noçãoΝ mesmaΝ daΝ “via cética” ( π ), entendida, sobretudo, pela capacidade de oposição ( α ἀ ), cujo derradeiro fim, uma vez instaurada a indecibilidade irredutível entre os discursos, é conduzir à suspensão do juízo.

Devemos agora, contudo, render tributo à dialética negativa dos pirrônicos e buscar entendê-la apropriadamente na observância do seu uso. Mas antes de tocar

132 Cf. GÓRGIAS, Elogio de Helena , VII. 133

Referimo-nos aos livros II e III das Hipotiposes e os cinco últimos livros dos Adversus Mathematicos (também conhecido pelo nome de Contra os Dogmáticos).

propriamente nesse quesito, é particularmente importante que esclareçamos dois pontos: primeiramente, em que sentido nós falamos de uma dialética no pirronismo; em segundo lugar, o porquê dessa dialética ser classificada como negativa.

A julgar pelos antigos eleatas, por Platão e pelo próprio Aristóteles, é impossível não admitir que a dialética deteve um lugar proeminente na filosofia. Também é inconteste que, desde a Antiguidade, muitos sentidos diferentes (embora possuindo um núcleo comum de significado) foram conferidos ao termo, de modo que hoje é notável seu caráter polissémico. Entretanto, não é do interesse deste trabalho averiguar os diferentes sentidos que a palavra dialética assumiu nas diferentes doutrinas filosóficas, mas sim fornecer, à luz de uma acepção mais abrangente e comum do termo, uma conceptualização que contribua para o entendimento da dialética cética.

De antemão, advertimos que a concepção moderna (comentada por Kerferd)134 que visa reduzir o sentido de dialética ao de diálogo, ou composição literária de diálogos, não nos auxilia em nada na tarefa de caracterizar a dialética cética. Mas útil, decerto, embora não suficiente, é a indicação que a etimologia do termo dialética nos oferece. O verbo α α , doΝ qualΝ derivaΝ aΝ palavraΝ “dialética”,Ν possui, dentre os seus significados, os termos falar, disputar e raciocinar, e todas essas acepções, em certo sentido, estão presentes na dialética cética, porém, são organizadas metodicamente e convergem para um fim específico.

Analiticamente falando, devemos pensar a dialética pirrônica como a articulação de um raciocínio que antagoniza com um juízo oposto; trata-se, no fundo, de uma práxis argumentativa orientadaΝ peloΝ princípioΝ deΝ queΝ “aΝ todaΝ razãoΝ seΝ opõeΝ umaΝ razãoΝ equivalente”Ν ΥP.H., I, 202) e que tem por finalidade revelar a necessidade de suspendermos os nossos juízos. É a própria α cética que se manifesta no uso da dialética, pois é no seu exercício que a oposição e o equilíbrio entre as teses disputadas se instauram, mostrando-nos que não devemos nos inclinar mais a favor de uma afirmação do que de sua negação, porém, suspender todo assentimento.

A estratégia [cética] consiste em agenciar, com base em uma série de modos ou tropos argumentativos, uma quantidade suficiente de argumentos que permitam expor o estado de eqüipolência ou equilíbrio entre duas reivindicações téticas opostas e igualmente dogmáticas, de forma a produzir o estado suspensivo que caracteriza a peculiaridade desta tradição filosófica (LOPES, Por que o cético não abdica da argumentação?, p. 216).

Quando levamos esses elementos em consideração, podemos notar que o procedimento dialético pirrônico, que firmemente mantém-se focado no horizonte da

π , reforça ainda mais a denominação da filosofia cética, a qual não se constrói, como já aludimos, em torno de um sistema de afirmações, mas sim, conforme nos assegura Sexto, através de uma rigorosa capacidade de oposição (P.H., I, 8). Na guerra dos ἀπ α (discursos apofânticos), o cético lança-se no campo de batalha munido de sua α ἀ , que no geral assume a forma de uma dialética negativa, eΝessaΝ“arma”Νestabelece, ao chocar-se com as teses contrárias, a mais aguda incerteza quanto ao que se discute.

É precisamente por esse motivo, devemos advertir, que qualquer reflexão sobre o sentido da dialética pirrônica jamais pode prescindir do entendimento de que a dialética cética representa o instrumento lógico-argumentativo pelo qual o cético busca erigir, no seio dos em conflito, as mais profundas antíteses e equivalências. Além disso, não podemos esquecer que o fim para o qual tende todo o procedimento dialético é, obviamente, a suspensão do juízo.

Cabe perguntar, todavia, por qual razão a dialética pirrônica carrega consigo esse atributo negativo e se ela coaduna-se com a sképsis, afinal o negativismo epistêmico é visto pelo cético como uma postura tão dogmática quanto às outras posturas filosóficas mais esperançosas135. De qualquer modo, embora o esclarecimento do porquê de a dialética cética ser negativa não se configure como uma tarefa tão difícil – uma vez que ela pode ser explicada como o resultado inevitável do combate às teses positivas dos dogmáticos –, é preciso que toquemos em alguns pontos.

O problema maior nesse quesito da negatividade do discurso pirrônico são as conclusões que uma leitura mais descuidada das obras de Sexto Empírico pode acarretar. Em geral, a impressão equivocada de um leitor mais relapso é esta: “ora, se no combate ao dogmatismo o ceticismo elabora teses destrutivas, então essas teses são teses céticas,ΝlogoΝoΝceticismoΝéΝtambémΝdogmático”. Nada mais falso, pois não há teses céticas. Essa leitura é apenas “parcialmente” correta.

Se tão somente observarmos os esclarecimentos de Sexto acerca das expressões céticas (P.H., I, 187-209), veremos que apenas um malabarismo hermenêutico mal-

135 Sexto Empírico, ao comentar as diferenças entre pirrônicos e acadêmicos, nos oferece um exemplo

claro de que o cético não assume o negativismo epistemológico como postura filosófica. O motivo disso, obviamente, é que, segundo os pirrônicos, a posição epistemologicamente negativa também compreende

uma forma de dogmatismo. Por isso nos escreve Sexto: “Os membros da Nova Academia, se eles dizem

que tudo é inapreensível, sem dúvida diferem dos Céticos precisamente nesta mesma afirmação de que tudo é inapreensível”ΝΥSEXTO,ΝP.H., I, 226).

intencionado poderia imputar aos pirrônicos alguma adesão a teses negativas. Isso se torna muito claro quando Sexto Empírico relata que:

εἀε ῖθκ ξλ ηθβηκθ δθ δ ηβ θ δγ θαδ ηβ ἀθαδλ ῖθ αη θ θ εα βζκθ κΰηα δε μ ζ ΰκη θκθ (΢ΕΞΣΟΤ ΕΜΠΕΙΡΙΚΟΤ, Π.Υ., I, 193).

Deve-se recordar, também, que dizemos não admitir nem recusar o que é dito dogmaticamente acerca das coisas obscuras (SEXTO EMPÍRICO, P.H., I, 193).

Na verdade, quando observamos Sexto argumentar que “a verdade é irreal /

ἀ πα α” (P.H., II, 80), que “nada é verdadeiro /

” (P.H., II, 94; A.M., VIII, 31), que “não há nenhum critério [de verdade] /

α ” (A.M., VII, 439), que “não existe signo / α ῖ ” (A.M., VIII, 275) ou que “a demonstração é inexistente / α π α

ἀπ ”ΝΥP.H., II, 170), embora devamos reconhecer o caráter destrutivo ou negativo da argumentação pirrônica, não podemos imputar ao cético tais teses, pois esse procedimento dialético é apenas a práxis de sua α , que instrumentalmente se vale do discurso antinômico para denunciar a precipitação dogmática.

Em última análise, o que podemos dizer sobre a argumentação pirrônica é que ela é desenvolvida seguindo os mesmos cânones dos dogmáticos, porém, como já assinalamos, ela não pretende estabelecer nada positivamente, mas apenas revelar a ambiguidade existente nos discursos dogmáticos136. Em outras palavras, a dialética pirrônica é a ferramenta pela qual o cético procura anular a força tética da argumentação dogmática; sua efetividade, como a entendemos, reside na demonstração do

136

A elaboração de argumentos antitéticos, os quais são dirigidos contra as teses positivas das doutrinas filosóficas dogmáticas, são entendidas pela grande maioria dos estudiosos como uma característica peculiar do ceticismo pirrônico. Como bem assinalou Lopes, toda essa série de argumentos contrários às alegações teóricas dos dogmáticos, representaria, na realidade, como repetida vezes mencionamos, “aΝ

dimensão dialética negativaΝouΝpolêmicaΝdoΝceticismo”ΝΥLOPES, 2006. P. 216). Brochard interpretou que

a parte mais importante da obra de Sexto Empírico seria justamente essa parte destrutiva. Para o erudito francês, o cético estaria menos preocupado na explicação sistemática da sua dúvida, do que no combate às convicções daqueles que não duvidam (BROCHARD, 2009, p. 339). Isso explicaria o imenso trabalho de Sexto, que, ao longo de suas obras (especificamente nos dois últimos livros das Hipotiposes e nos Contra os Dogmáticos), problematiza exaustivamente as teorias filosóficas, ocupando-se minuciosamente de cada uma das partes da filosofia (lógica, física e ética) e opondo-lhes, dialeticamente, contra-argumentos. Em contrapartida, não devemos considerar que o cético busque, com seus argumentos, demonstrar que as teses dogmáticas são falsas, mas apenas deseja mostrar que as razões oferecidas para afirmar algo não são melhores do que as oferecidas para negá-la;ΝporΝisso,ΝcomoΝescreveuΝBrochard,ΝoΝcéticoΝ“nãoΝrefutaΝosΝ dogmáticos porque quer provar que eles estão errados: isso seria uma tese afirmativa. Contenta-se em mostrar que eles não têm razão, ou, pelo menos, que às suas razões pode-se opor razões iguais: limita-se a

antagonismo e da equipotência dos , que, inevitavelmente, leva à suspensão do juízo ( π ).

OsΝ argumentosΝ „destrutivos‟Ν sãoΝ construídosΝ noΝ melhorΝ estiloΝ dogmático,Ν seguem os padrões da lógica e demonstração dogmática, são argumentos dogmáticos, sob esse prisma em nada se distinguem em natureza dos argumentosΝdogmáticosΝ„construtivos‟ΝcomΝosΝquais se fazem conflitar. Por que o que importa aos pirrônicos mostrar é precisamente essa ambivalência fundamental e constitutiva da argumentação dogmática, que implica sua autodestruição, graças à manifestação da isosthéneia e à subsequente inevitabilidade da epokhé (PORCHAT, Rumo ao ceticismo, 2007, p. 158- 159).

Na medida em que refletimos com o devido discernimento sobre a argumentação cética, logo nos damos conta que a postura pirrônica, longe de aderir a qualquer conclusão epistemológica negativa, pretende, nomeadamente, fazer brotar as dúvidas, aprofundar as incertezas do espírito e fazer ruir as fortalezas das convicções dogmáticas, de modo que o homem, ante as perplexidades que as aporias originam na alma, abdique das opiniões temerárias e reconheça a suspensão do juízo como o seguimento natural do exame crítico do universal antagonismo das filosofias.

De qualquer modo, é preciso seguir adiante e aprofundar nossa investigação sobre a natureza do cético, para que possamos esclarecer, de modo mais tangível, seu real estatuto. Nesse sentido, é imprescindível que retornemos à questão do procedimento dialético pirrônico e pensemos mais uma vez na razão da sua ausência de dogmatismo. Quando fazemos esse recuo, logo perceberemos que somado ao caráter instrumental da dialética cética – o qual representa um fator fundamental no processo de problematização gnosiológica –, há outro componente sútil que afasta o discurso cético do caráter dogmático, esse elemento, com o qual passaremos agora a nos ocupar, é o elemento do auto cancelamento das proposituras pirrônicas.