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CAPÍTULO 2. O QUE A SOFÍSTICA LEGOU À SKÉPSIS?

2.4 A sofística diante do tribunal pirrônico

Se evocássemos do Hades os pirrônicos e lhes pedíssemos uma ponderação sobre a sofística, seria provável que obtivéssemos algum tipo de admoestação desse movimento. O velho Pirro, mais preocupado em viver tranquilo e indiferente, era avesso às disputas erísticas, na realidade, como nos diz Diógenes (IX, 69), Pirro “era hostil aos sofistas”ΝΥἦ π ώ α αῖ ). Seu afastamento das discussões causara, inclusive, admiração de seu discípulo Tímon, que acabou por nutrir o mesmo sentimento de aversão às polêmicas dos sofistas,ΝdeΝmodoΝqueΝindagava:Ν“Ó velho, ó Pirro, como e por onde descobriste uma fuga da adoração e das palavras vazias dos

sofistas?” (Ὦ , , πῲ π α

ῲ ;)118

. Pirro e Tímon, ao que tudo indica, jamais possuíram qualquer simpatia pelos hábeis sofistas.

Contudo, apesar da hostilidade dos primeiros céticos aos sofistas, devemos averiguar se essa antipatia perdurou até os tempos de Sexto Empírico, para que assim possamos avaliar melhor como os pirrônicos tardios enxergaram os erísticos. Antes de tudo, é preciso dizer que estamos nos referindo, até então, ao movimento sofista como um todo, mas, como seria esperado, reservaremos um momento exclusivo para ajuizar, pelo prisma cético, acerca de Protágoras e Górgias, já que ambos são, sem dúvida, um caso à parte no domínio da tradição sofística.

No caso da atividade sofística em geral, fundamentalmente aquela que se caracterizava pelo uso da arte retórica nos tribunais e nas assembleias, ela não deixou de receber reprovações de Sexto. Na verdade, no seu livro Contra os retóricos, Sexto Empírico sequer considera a retórica como arte ( ), mas sim um artifício pernicioso (A.M., II, 49). A condenação sextiana da figura do retórico é bem clara, pois, para Sexto,ΝassimΝcomoΝ“osΝprestidigitadores enganam a vista de seus espectadores graças a seus rápidos movimentos de mãos, assim também os retóricos, por meio do seu ardil, turvam o entendimento dos juízes e lhes arrebatam seus votos surrupiando asΝ leis”Ν (SEXTO, A.M., II, 39)119.

Por outro lado, o teor da crítica cética a Protágoras e Górgias é menos ácida, embora ela não deixe de existir. Podemos dizer que a ponderação de Sexto sobre suas 118 Ibidem. 119 “ α παῖ α α π , πα α α α α ἀ α α π ”Ν (΢ΕΥΣΟΤ ΕΜΠΕΙΡΙΚΟΤ, Π.Μ., II, 39).

ideias não é tão distante – por mais curioso que possa parecer –, das apreciações platônico-aristotélicas. Para sermos sintéticos, diríamos que o cético confere dignidade e respeita as ideias filosóficas dos dois grandes sofistas, tais como Platão e Aristóteles respeitaram-nas. No entanto, para manter-seΝ fielΝ aosΝ “princípios”Ν daΝsképsis, e assim não incorrer em contradição,Ν SextoΝ nãoΝ absolveΝ doΝ “pecado dogmático” as posições filosóficas de Protágoras, e, por analogia, Górgias.

Em Protágoras, essa compreensão se justifica textualmente, pois nas Hipotiposes, ao avaliar a doutrina protagórica, Sexto conclui que a posição filosófica do sofista culmina em dogmatismo. Em primeiro lugar, Sexto Empírico esclarece que ProtágorasΝ afirmaΝ queΝ “aΝ matériaΝ éΝ fluídaΝ eΝ que,Ν aoΝ fluirΝ constantemente,Ν deΝ suasΝ emanações se formam os compostos, e os sentidos se transformam e alteram segundo as idadesΝeΝasΝdiversasΝconstituiçõesΝdosΝcorpos”ΝΥSEXTO,ΝP.H., I, 217)120. Esse fluxo da qual se refere Sexto já estava descrito no Teeteto de Platão, e ele representava, nas palavras de Sócrates, a doutrina secreta de Protágoras, o qual ensinava, aos iniciados, queΝ“tudoΝéΝmovimento”ΝΥń56a)ΝeΝqueΝ“todasΝasΝcoisasΝeΝtodasΝasΝespéciesΝseΝformam, a partirΝdoΝmovimento”ΝΥń57a).Ν

Ao ter elaborado uma doutrina que se pronuncia acerca da dinâmica da realidade, Protágoras não poderia ser identificado por Sexto senão como um filósofo dogmático. SuaΝ“teseΝfluxista”ΝlevouΝSextoΝaΝescreverΝqueΝProtágorasΝ“dogmatizaΝsobreΝ a matéria estar em fluxo e sobre a presença nela das razões para todas as coisas aparentes”ΝΥP.H., I, 219)121. Esse postulado não poderia, em qualquer circunstância, ser endossado pelos céticos,Νafinal,ΝcomoΝescreveΝSexto,ΝosΝcéticosΝconsideramΝqueΝ“estas coisas são obscuras e nós [os pirrônicos] suspendemosΝoΝjuízoΝacercaΝdelas” (ibidem).

O caso de Górgias, todavia, é singular; nós não possuímos nenhuma declaração escrita de Sexto que o defina, ipsis litteris, como dogmático. Isso, todavia, não significa que o sofista de Leontinos não possa ser contado, considerando a natureza do seu discurso, entre os pensadores que os pirrônicos classificariam como dogmáticos. Para não parecermos precipitados, é preciso explicar em que sentido nós podemos falar de dogmatismo em relação às ideias de um pensador como Górgias.

120“[...]Ν ἀ α , ῤ α π ἀ ῲ ἀπ α α α ῖ α α ἀ ῥ α πα α α πα α α α ”ΝΥ΢ΕΥΣΟΤ ΕΜΠΕΙΡΙΚΟΤ, Π. Υ., I, 217). 121“Ὁ ῲ α π ῥ α α π ῥ ῲ α π α π ῖ α α ”ΝΥ΢ΕΥΣΟΤ ΕΜΠΕΙΡΙΚΟΤ, I, 219).

Classificar Górgias como dogmático só faz sentido à luz da sutil distinção que os pirrônicos fazem entre o seu discurso, um lógos não-tético, dos demais discursos dogmáticos, considerados téticos. Para sermos mais claros, todo o discurso que afirma ou nega alguma coisa, o que Aristóteles chamava de discurso apofântico, é, para os céticos, dogmático. Por isso que Górgias, ao dizer queΝ“nãoΝexisteΝverdade”,Νcompara- se, no sentido de postular uma tese positiva sobre a realidade, aos céticos acadêmicos, que declaravam que a verdade é inapreensível (ἀ α α π ), incorrendo, assim, num negativismo epistemológico tão dogmático, aos olhos dos céticos, quanto às teses contrárias que afirma que alcançaram a verdade122.

Nesse sentido, podemos conjecturar que seja qual for a estima que Sexto tenha tido pelos dois grandes expoentes da sofística, para o bem da coerência interna dos próprios princípios da sképsis, Sexto jamais poderia contá-los como pensadores equivalentes aos pirrônicos no sentido de uma filosofia não-dogmática, pois, aos dois grandes sofistas, lhes faltaram atingir tal condição, uma vez que não introduziram em suas doutrinas o princípio da suspensão do juízo ( π ).

122

No terceiro capítulo deste trabalho, como anteriormente já mencionamos, trataremos de maneira detalhada sobre a especificidade do discurso pirrônico.