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Enquanto os estudos lingüísticos desenvolvidos até o início do século vinte enfocam ou o sistema da língua (objetivismo abstrato) ou a sua realização individual (subjetivismo individualista), Bakhtin (2000) investiga a natureza sócio-ideológica da linguagem, concebendo-a como um fenômeno dialógico, em que diversos acentos sociais se entrecruzam, confrontando-se ou associando-se. Nessa perspectiva, enfatiza a necessidade de se observar as reais produções discursivas, considerando o enunciado24 como o meio pelo qual se materializam as diversas interações sociais.

Para Bakhtin, todo enunciado é um elo da corrente de comunicação verbal ininterrupta e, como tal, está diretamente vinculado aos discursos que o precederam e aos que irão lhe

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Utilizamos o termo enunciado, em vez de discurso, a fim de manter a coerência com a terminologia do autor, conforme as traduções das obras a que tivemos acesso.

suceder. Esse diálogo se estabelece em dois planos: a troca verbal entre sujeitos situados num dado contexto histórico, se bem que o interlocutor possa ser apenas uma virtualidade representativa, e a troca entre discursos que refletem as consciências, as vozes e os pontos de vistas de sujeitos distintos em uma dada conjuntura ideológica.

O conceito de diálogo dessa teoria não se restringe à troca de turnos entre dois interlocutores na conversação face a face, tal como estudado pela Análise da Conversação, nem à forma composicional de alguns textos escritos, mas abrange todas as formas de interação verbal. A citação de Voloshinov (1930:3) esclarece essa afirmação:

“os enunciados, ainda que emanados de um interlocutor único (como, por exemplo, o discurso de um orador, a aula de um professor, o monólogo de um ator, os pensamentos em voz alta de um homem sozinho) são monológicos em razão da sua forma exterior, mas, dada a sua estrutura semântica e estilística, eles são, na realidade, essencialmente dialógicos”.

Segundo Faraco (2003), a dialogicidade é apresentada na teoria bakhtiniana em três dimensões: todo dizer é orientado para a resposta; todo dizer se orienta para o já dito; todo dizer é internamente dialogizado, em escalas infinitas de alteridade e assimilação da palavra alheia. A primeira dimensão diz respeito ao fato de todo enunciado ser concebido em função de um destinatário, ou melhor, das expectativas quanto à sua compreensão e posterior réplica. Voltemo-nos, agora, para as outras dimensões das relações dialógicas.

Os enunciados se formam numa esfera verbal socialmente estratificada, não só em inúmeras linguagens (variedades diatópicas, diastráticas, diafásicas e diacrônicas), como também em inúmeras vozes sociais, recobertas de índices de valores conflitantes. Parafraseando Bakhtin (2000), o enunciado não é o adão bíblico a abordar pela primeira vez um tema, mas já encontra seu objeto polemizado, censurado, enaltecido, obscuro ou até decifrado por outros discursos. Logo, não se orienta diretamente para o objeto, mas para o já

dito, posicionando-se frente aos comentários apreciativos de outrem acerca do tema.

Essa problemática da inter-relação entre os discursos foi, durante muito tempo, ignorada pela lingüística. A teoria estrutural, se bem que tenha se dedicado ao estudo dos elementos formais no nível da morfologia e da fonologia, relegou o estudo das formas de discurso reportado a segundo plano (assim como todos os tópicos referentes à construção sintática do enunciado), uma vez que essa análise só é possível a partir das condições reais de discurso (Bakhtin/Voloshinov, 2004).

Bakhtin/Voloshinov (e os outros pesquisadores do Círculo) foram os primeiros a se preocupar com a interação entre os discursos ao formular uma teoria sobre o funcionamento

da linguagem numa perspectiva enunciativa. Essa teoria postula a dialogicidade constitutiva de todo enunciado, ou seja, o fato de que ele encerra em sua construção outras vozes. Dessa forma, o discurso citado não é concebido apenas como tema do enunciado, mas também como unidade composicional, uma vez que integra sua construção sintática. Assim, os autores o definem (2004:144):

“o discurso citado é o discurso no discurso, a enunciação na enunciação25, mas é, ao mesmo tempo, um discurso sobre o discurso, uma enunciação sobre a enunciação.” Os estudos de cunho estruturalista e gramatical observam o discurso citado de forma isolada, divorciando-o da situação concreta em que é reportado. Por isso, cuidam apenas de descrever os elementos lingüísticos utilizados para introduzir a voz alheia (verbos discendi, conjunções subordinativas, dois pontos, travessão, aspas etc.) e de categorizar de forma mecânica e cristalizada as formas de citação em três tipos de discurso (discurso direto, discurso indireto, discurso indireto livre).

No entanto, Bakhtin/Voloshinov (2004) advogam que esses esquemas de transmissão do discurso se realizam concretamente na forma de variantes e de modificação das variantes. Nessa perspectiva, o foco da análise é a compreensão dos efeitos de sentido produzidos pela relação entre as múltiplas vozes inscritas no seio do enunciado, ou melhor, pela relação do discurso citado com o citante e com o contexto de transmissão, o que inclui o modo como essas vozes são representadas.

Conforme a avaliação que o discurso citante faz dos enunciados outros, Bakhtin/Voloshinov (2004:148-150) caracterizam duas orientações da dinâmica da inter- relação entre as vozes: o estilo linear e o estilo pictórico. O primeiro diz respeito ao modo mais marcado de reportar a palavra alheia, em que o enunciado procura delimitar o espaço do outro, traçando fronteiras nítidas entre os discursos e, por conseguinte, marcando certo distanciamento hierárquico entre eles. O discurso de outrem reportado pelo estilo linear conserva sua autenticidade e integridade, diante dos comentários apreciativos do contexto citante. O segundo se refere ao modo menos marcado, em que os discursos se imbricam, apagando as delimitações entre eles. Nesse estilo, as vozes sociais não são claramente definidas, pois o discurso citante infiltra suas réplicas e comentários no discurso citado, representando-a por modelos híbridos e formando novas vozes sociais.

Na caracterização desses estilos, os autores (2004) mostram que os enunciados não são só dialógicos em relação aos discursos de outrem, mas também são internamente dialogizados, pois reverberam em sua construção vozes distintas que podem ser

explicitamente marcadas (caso do discurso bivocal) ou veladas e representar ou não uma mesma visão de mundo.

Esse incessante diálogo com o discurso de outrem revela o diálogo entre os sujeitos. O ato de enunciação traz a visão de um sujeito que se forma na relação ativa com as vozes dos outros, a qual, em linhas gerais, se dá pela associação ou pela oposição ao ponto de vista de outrem. No primeiro caso, a convergência das visões de mundo se dá pela assimilação da palavra alheia nas diversas formas de estilização. Já, no segundo, a divergência de pontos de vistas é decorrente da subversão do enunciado através da paródia. Em suma, na teoria bakhtiniana, o sujeito perde o papel de centro, sendo apreendido a partir das vozes que enuncia e do seu comentário apreciativo.

Esse sujeito heterogêneo difere do psicológico, que exterioriza verbalmente suas intenções e controla o sentido do discurso, e do universal, submetido às estruturas, que repete os discursos e sentidos impostos pelas instituições, reproduzindo as ideologias. Também não se confunde com a noção de sujeito psicanalítico, postulada pela Análise do Discurso de linha francesa, pois o autor não admite a dimensão do inconsciente. Um ponto em comum entre essa teoria e a perspectiva bakthiniana é a noção de um sujeito não-autônomo, que ocupa diferentes posições e se faz representar por diversas vozes sociais.

Segundo Faraco (2003), o sujeito bakhtiniano é social e singular ao mesmo tempo, pois sua consciência sociossemiótica responde às condições objetivas de modo singular na

interação viva com as vozes sociais. O outro é a condição de existência do ser no mundo, é a forma pela qual o eu se reconhece humano. Para usar um truísmo, a identidade é construída na alteridade. Bakhtin (1993: 383) enuncia essa tese:

“vivo no universo das palavras do outro. E toda minha vida consiste em conduzir-me nesse universo, em reagir às palavras do outro (as reações podem variar infinitamente), a começar pela minha assimilação delas (durante o andamento do processo do domínio original da fala), para terminar pela assimilação das riquezas da cultura humana (verbal ou outra)”.

O dialogismo consiste, portanto, num princípio fundamental para a formação do sujeito e do discurso. É no meio tenso da interação entre os discursos que se formam a consciência e visão de mundo do sujeito, bem como a orientação social dos enunciados.

Embora Bakhtin conceba o dialogismo como princípio constitutivo da linguagem e como a condição de sentido do discurso, há enunciados em que as vozes sociais se ocultam sob a aparência de uma única voz. Neles predominam as forças centrípetas (Bakhtin, 1993),

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de centralização do pensamento verbal-ideológico e de apagamento das diferenças. Operam tanto na estratificação social das variedades, estabelecendo o mito da uniformidade lingüística, como no nível da estratificação axiológica, estabelecendo o mito do pensamento único, global. Essas forças encontram correspondência com a ideologia oficial, que procura controlar os sentidos da produção discursiva.

Assim, o discurso de outrem é percebido pelo sujeito como a palavra autoritária que se impõe à sua consciência, exigindo seu reconhecimento e assimilação. Sendo transmitida através do estilo linear, ela não permite uma compreensão livre do sujeito nem a inserção de seus comentários efetivos no enunciado. Essa palavra evoca um discurso legitimado no passado, que não é posto em discussão, mas aceito como tal. Nos sistemas ideológicos constituídos, há presença significativa da palavra autoritária, como os textos que contêm dogmas religiosos e científicos. A forma de representação dessa voz, nos termos da Análise do Discurso (Orlandi, 2002), tende aos movimentos parafrásticos.

Tal monologismo é representado hoje pela cultura da modernidade, caracterizada pela supremacia da hegemonia neoliberal e das diversas formas de globalização cultural e econômica. Um exemplo são os pronunciamentos políticos que defendem o desemprego como uma fatalidade, causado pela revolução tecnológica, e que sua solução depende apenas do esforço do indivíduo para se adaptar às mudanças. Esse é o posicionamento ideológico das classes dominantes, que desenvolvem a atividade mental para si.

Em oposição a esses enunciados aparentemente monofônicos, há a palavra

internamente persuasiva que deixa entrever muitas vozes (Bakhtin, 1993). Ela penetra em

nossa consciência de tal modo integrada ao discurso interior, que, segundo o autor, no princípio da sua independência ideológica, o sujeito não consegue distinguir as suas palavras das de outrem. Não se impõe ao sujeito como a palavra autoritária, mas possui uma interpretação livre, aberta, que se renova a cada contexto. A memória reportada, nesse caso, só pode ser a do presente, já que essa palavra pode receber novos acentos apreciativos a cada interação entre os interlocutores. Nos termos da Análise do Discurso (Orlandi, 2002), os efeitos de sentido decorrentes da representação dessa voz tendem à polissemia.

Essa dialogicidade é representada pela pluralidade cultural, que valoriza as diferenças e as identidades locais. É o caso dos discursos artísticos e literários que põem em cena o conflito entre as vozes sociais, ou melhor, entre os pontos de vista dos sujeitos de diferentes faixas etárias, classes e posição econômica. Representam o posicionamento tanto dos grupos marginalizados quanto das classes dominantes, que desenvolvem a atividade mental do nós e

Nele, atuam as forças centrífugas que promovem a estratificação social e verbo- axiológica da linguagem, ou seja, a diversificação das linguagens (plurilingüismo) e dos pontos de vista (Bakhtin, 1993). Essas forças admitem a pluralidade de sentidos, a paródia (subversão do enunciado) e culminam com a carnavalização (suspensão da ordem comum). Desse modo, corroboram com os processos de mudança social que se formam na esfera ideológica do cotidiano.

Vemos que há uma intensa luta entre as vozes sociais na qual atuam as forças centrípetas e centrífugas. Stam (1992), apoiado na teoria bakhtiniana, afirma que o mundo da cultura se caracteriza pela intensa cadeia de responsividade: todo discurso é uma resposta a outro e é capaz de produzir novas réplicas, pois sua fala pressupõe a existência de vozes anteriores com as quais estabelece alguma relação e as respostas presumidas dos que lhe sucedem.

Por isso, o tema da palavra alheia é importante na caracterização dos gêneros discursivos. Bakhtin (1993) mostra que o que se cita, o como se cita e o porquê se cita se diferenciam em relação aos gêneros. Quanto aos textos da área política, corpus com que trabalhamos, o autor assim se posiciona:

"Todos os temas do discurso retórico são acompanhados pelo tema da palavra de outrem, assim como o sujeito falante. O discurso na retórica política apóia, por exemplo, uma candidatura, evoca a personalidade do candidato, expõe e defende seu ponto de vista, suas promessas verbais ou, em caso diverso, ele protesta contra um decreto, lei, ordem, declaração, intervenção, ou seja, contra enunciados verbais precisos, sobre os quais ele está dialogicamente orientado". (Bakhtin, 1993:152).

“O discurso retórico diferentemente do literário, pela própria natureza de sua orientação, não é tão livre na sua maneira de tratar as palavras de outrem. Ele tem de forma inerente um sentimento agudo dos direitos de propriedade da palavra e uma preocupação exagerada com a autenticidade”. (Bakhtin/Voloshinov, 2004:153).

Verificamos, nessas citações, duas características dos gêneros da esfera retórica política: 1) eles se apóiam em outros discursos verbais para defender um posicionamento; 2) eles circunscrevem essas vozes alheias em traços limítrofes, transmitindo-as pelo estilo linear. Tais teses serão retomadas no capítulo dedicado à análise do corpus. No capítulo a seguir, faremos uma breve discussão teórica sobre os gêneros na teoria bakhtiniana e a caracterização do guia eleitoral como um gênero discursivo.